Arquivo de Argentina - Fair Play

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Marcial CortezMaio 8, 20205min0

No final do mês de abril de 2003, a pequena e desconhecida equipa do Paysandu, de Belém do Pará, venceu o poderoso Boca Juniors em sua casa, a temida arena conhecida como “La Bombonera”.

Pra se ter uma ideia do tamanho desse feito, seria como se o Paços, ou o Moreirense, com todo o respeito devido a estas equipas, encarasse o Bayern no Allianz, em Munique, e voltasse pra casa com a vitória.

Mas essa história começa um ano antes, em 2002, quando a equipa do Paysandu Sport Club, de Belém do Pará, que em 2020 irá disputar a Série C do Brasileirão assim que a bola voltar a rolar no relvado após a pandemia, ganhou o extinto certame chamado “Copa dos Campeões”.

Paysandu Campeão da Copa dos Campeões. Foto: José Leomar / Placar

A Copa dos Campeões existiu somente por três temporadas – 2000, 2001 e 2002. E foi justamente na época de 2002, quando o certame teve o maior número de participantes, que o Paysandu surgiu para o cenário nacional. O torneio era composto por campeões das Copas Regionais.

As Copas Regionais foram uma tentativa de substituição dos campeonatos estaduais. O país foi dividido em regiões, da seguinte forma: Torneio Rio-SP, Copa Sul-Minas, Copa Nordeste, Copa Norte (também conhecida como Copa Verde por causa da Amazônia) e Copa Centro-Oeste. Alguns destes torneios obtiveram sucesso absoluto, como a Copa Nordeste e a Copa Verde, que são disputadas até os dias atuais, e outros foram definitivamente eliminados do calendário do futebol brasileiro.

A Copa dos Campeões fazia parte do calendário oficial da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), e o título dava ao campeão uma vaga na Copa Libertadores do ano seguinte. E foi aí que o pequeno Paysandu fez bonito. Na primeira fase, a equipa brigou com Corinthians, Fluminense e Náutico, obtendo o primeiro lugar em seu grupo. Logo em seguida, eliminou o Bahia nas quartas de final, o Palmeiras na semifinal e conquistou o título na finalíssima contra o Cruzeiro, embrião da super equipa de Vanderlei Luxemburgo que ganharia todos os títulos no ano seguinte em 2003.

Na Libertadores da América, o Paysandu continuou firme no caminho das vitórias. Num grupo que contava com Cerro Porteño (PAR), Sporting Cristal (PER) e a poderosa Universidad Católica (CHI), o “azarão” paraense ficou em primeiro lugar, com uma campanha fantástica: abriu seis pontos de vantagem sobre o segundo colocado Cerro Porteño, com quatro vitórias e dois empates, incluindo uma goleada por 6 a 2 na casa do time paraguaio. O Paysandu classificou-se para as oitavas de final de modo invicto.

Velber comemora golo na vitória por 6 a 2 contra o Cerro Porteño. Foto: Jorge Saenz/AP

E foi aí que as coisas se complicaram. Ou não, como diria Caetano Veloso. Pelo sorteio das oitavas de final, o Paysandu teria que enfrentar o Boca Juniors. Primeiro jogo no temido estádio “La Bombonera”, em Buenos Aires, e jogo da segunda mão em sua casa, Belém do Pará.

Dia 24 de abril de 2003. Estádio La Bombonera. Boca Juniors (ARG) x Paysandu (BRA). O jogo corre tenso, como todo jogo decisivo de uma copa continental. Aos 21 minutos do primeiro tempo, uma disputa de bola causa uma dupla expulsão e elimina um jogador de cada lado: Robgol pelo Paysandu e Clemente Rodriguez pelo Boca Juniors. O primeiro tempo termina zero a zero.

Na segunda etapa, outro baque contra o “Papão da Curuzu”, como é conhecido o Paysandu em Belém do Pará: aos 10 minutos, o jogador Vanderson é expulso após uma cotovelada criminosa no jogador Schelotto do Boca. Paysandu com nove jogadores em campo, contra o Boca com 10 e jogando na Bombonera. Um cenário típico para uma goleada argentina…

Mas é nesse momento que o futebol mostra porque é considerado o esporte rei: contra todas as estatísticas e análises lógicas possíveis, aos 23 minutos, o Papão faz o seu gol com o craque do time, Iarley: Paysandu 1 x 0 Boca Juniors.

O técnico do Boca, Carlos Bianchi, ainda tentou colocar um jovem jogador que estava no banco de reservas, um tal de Carlitos Tevez, mas mesmo assim não adiantou. Quando o árbitro apitou o final da partida, a equipa do Paysandu entrava para a História, igualando um feito que somente o Santos de Pelé e o Cruzeiro de Ronaldo Fenômeno conseguira até então – ganhar do Boca na Bombonera.

Alguns dias depois, no jogo de volta, a lógica prevaleceu e o Paysandu caiu em casa, bravamente, pelo placar de 4 a 2. O time, mesmo derrotado, foi aplaudido de pé por 60 mil pessoas. A equipa do Boca Juniors seguiu até o final da competição, sagrando-se campeã, enquanto que ao Paysandu restou guardar o seu nome na história do futebol brasileiro. Destaque para o autor do gol da equipa paraense, Iarley, que foi contratado pelo Boca Juniors e sagrou-se campeão mundial no mesmo ano, desta vez vestindo a camisa dos argentinos.

 

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Marcial CortezMarço 20, 20205min0

Hoje vamos falar de uma inusitada experiência que tive recentemente, quando pude assistir ao vivo um dos clássicos mais enigmáticos e emocionantes do futebol sul-americano: Racing X Independiente.

Nestes tempos de reclusão, quarentena e suspensão do futebol, nada como relembrar grandes histórias envolvendo este esporte que movimenta as multidões.

Quando se fala em Argentina, imediatamente o jogo entre Boca e River vem às nossas cabeças. Sim, é verdade, estamos a falar de um clássico gigantesco, que até já decidiu a Libertadores em terras europeias. No entanto, Boca x River não é o único clássico argentino. Há muito mais jogos interessantes nas terras portenhas do que sonha a vossa vã filosofia.

Racing x Independiente é um deles. A rivalidade começa na localização geográfica. Avellaneda, uma pequena cidade da região metropolitana de Buenos Aires, tem pouco mais de 30 mil habitantes, que se dividem em adeptos do Independiente (El Rojo) e do Racing Club (La Academia). Os dois estádios ficam a poucos metros de distância e a cidade respira futebol. No entorno das arenas, vários bares e restaurantes ficam lotados nos dias de jogos, que assim como nas principais cidades brasileiras, também contam com claque única (por questões de segurança, quando o jogo é no estádio do Racing, somente os adeptos do Racing o assistem, e vice-versa).

O estádio do Racing, conhecido como ¨El Cilindro¨, tem capacidade para 51 mil adeptos que lotam a arena em todas as partidas. É uma claque extremamente apaixonada pelo clube e conta com uma banda musical chamada ¨La Guardia Imperial¨, que comanda todos os cantos durante os jogos. No link https://www.letras.mus.br/la-guardia-imperial é possivel conhecer e ouvir os gritos de guerra e as letras dos coros dos adeptos do Racing.

E aqui começamos a fazer um paralelo entre as claques no Brasil e na Argentina. Há uma diferença fundamental entre as duas: enquanto os adeptos brasileiros costumam ¨jogar junto com o time¨, ou seja, se o time vai bem, a claque cresce, e se o time vai mal, a claque diminui o volume e costuma ficar tensa (isso ocorre com todas as claques de todos os clubes brasileiros), na Argentina o comportamento da claque parece ser independente do jogo ou do resultado do mesmo. Há um famoso vídeo no Youtube que mostra um jogo entre Racing e River Plate, no qual o River aplica uma goleada de 6 a 1 na Academia, e mesmo assim os adeptos continuam a fazer uma festa gigante, algo inimaginável nos estádios brasileiros.

Outro ponto que chamou-me muito a atenção foi que a maioria dos cantos das claques brasileiras são copiados dos coros argentinos. Muitas vezes, são apenas traduzidos para o português do Brasil e em algumas situações tem as letras adaptadas para adequação à métrica musical. Veja estes exemplos com cantos das torcidas de Palmeiras e São Paulo:

Fonte: www.letras.com.br

 

Em contrapartida, se nas arquibancadas os argentinos são melhores que os brasileiros, o mesmo não se pode dizer quanto à qualidade do futebol apresentado. As duas equipas estavam em posições intermediárias na tabela do Campeonato Argentino, com o Racing ligeiramente melhor e ainda a lutar por uma vaga na Copa Libertadores 2021 (ao final do campeonato, o Independiente ficou em 14o lugar e o Racing conseguiu a vaga para a primeira fase classificatória do principal torneio sul-americano).

E onde faltou qualidade, sobrou raça. O jogo foi Histórico. Assim mesmo, com H maiúsculo. Os donos da casa jogaram razoavelmente bem no primeiro tempo, até que aos 39 minutos o guarda redes Arias foi expulso. E na sequência, no início da segunda etapa, nos primeiros segundos de bola rolando, o jogador Sigali também levou o cartão vermelho, o que fez com que o Racing jogasse com apenas nove atletas durante todo o segundo tempo. E o que se viu a partir daí foi um verdadeiro massacre vermelho. O time do Independiente jogou o tempo todo no campo de ataque, acuando os donos da casa em sua grande área. Parecia um treino de ataque contra defesa. Mesmo nessa situação difícil, os adeptos do Racing não deixaram a energia diminuir, e a cada ataque do alvirrubro mais subia o volume e a temperatura nas arquibancadas.

Até que num desses momentos arrebatadores que só o futebol pode nos proporcionar, num contra ataque aos 41 minutos do segundo tempo, o avançado Chelo Diaz conseguiu fazer o único golo da partida, cravando a histórica vitória por 1 a 0. Desnecessário dizer aqui o que aconteceu nas arquibancadas. Foi uma festa de conquista de campeonato. O torcedor do Racing, que comemora até quando está a perder do River por 6 golos, explodiu numa alegria jamais vista, ao derrotar o arquirrival de camisola rubra em situação tão dramática. Ao Independiente, só restou lamentar a perda da oportunidade de fazer um belo resultado na casa do inimigo.

 

Foto: Marcial Cortez

Então siga a minha sugestão. Aproveite este tempo de quarentena e suspensão do futebol para assistir aos grandes clássicos deste esporte que tanto nos encanta. Garanto que não irás te arrepender. E mesmo sendo brasileiro, sou obrigado a concordar com os argentinos: no que se refere à festa nas arquibancadas, Maradona é melhor que Pelé.

 


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É com Fair Play que pretendemos trazer uma diversificada panóplia de assuntos e temas. A análise ao detalhe que definiu o jogo; a perspectiva histórica que faz sentido enquadrar; a equipa que tacticamente tem subjugado os seus concorrentes; a individualidade que teima em não deixar de brilhar – é tudo disso que é feito o Fair Play. Que o leitor poderá e deverá não só ler e acompanhar, mas dele participar, através do comentário, fomentando, assim, ainda mais o debate e a partilha.


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