Arquivo de Benfica - Página 2 de 15 - Fair Play

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Bruno Costa JesuínoJunho 25, 20208min0

O futebol esteve parado durante cerca de três meses e no que a polémicas diz respeito foi quase um sossego. Mal recomeça a competição, devido a um resultado menos conseguido um autocarro leva uma pedrada no vidro… que se deveria transformar numa “pedrada no charco”, para se começar a ter mão pesada nestas situações.

Quem acredita em ‘pedradas motivadoras’?

Acredito que parte significativa das pessoas que leram este título vão associar que o “pedrada no charco” (leia-se ‘fazer reagir quem está acomodado’) se deve ao facto de a pedrada no vidro serviria para acordar a equipa do Benfica, o treinador ou mesmo o presidente. Mas não. Longe disso. Há quem defenda e cheguei a ouvir “vais ver se eles não vão correr em Portimão”. Antes de mais, a razão do empate com o Tondela, não foi por correram pouco. Além do mérito do adversário, a equipa não mostrou argumentos técnicos e tácticos para ultrapassar a boa organização do Tondela, e correram muito. Muito mas muito mal.

Medo Versus Motivação

Além do acto em si, que é um caso de polícia, o medo nunca fez ninguém ser melhor naquilo na actividade que desempenha. Só causa toda uma pressão necessária. Façam este exercício. Imaginem um jogador que viu os murais de casa pintando e a ver as suas famílias ameaçada a ter que um penalty no último minuto. Será que os adeptos acham que o jogador vai estar mais capaz de o executar com sucesso? O pior é que alguns acham que sim. Acham-se tão senhores da razão que mandam pedradas ao autocarro da própria equipa para os “chamar à razão”. E, provavelmente, vão continuar sempre a achar. Mas ao menos se se começar a punir severamente estas atitudes ao menos que não destruam propriedade alheia.

Podemos fazer o mesmo exercício agora extra futebol. Imaginem-se no vosso trabalha alguém criticar a performance da sua empresa e ameaçam a vossa família. Alguém no seu perfeito juízo acha que vai ser melhor profissional com base no medo? Motivação sim. Motivação é a chave catalisadora para qualquer profissional cumprir melhor as suas funções.

Futebol pós-covid ainda sem sal

Agora vamos à performance dentro de campo. Desde que a liga portuguesa regressou, a qualidade só tem aparecido a espaços… muito espaçados. Faz lembrar aqueles jogos de início pré-época… mas sem pré-época. Com menos público e com os jogadores com níveis físicos ainda mais baixos. E as bancadas despidas de público complementam tudo o que se quer… para 97 minutos de algo muito insosso.

Depois quando falta ritmo de jogo as diferenças entre as equipas fica mais curta, tornando os jogos mais equilibrados. Se repararem grande parte dos golos e jogadas de perigo tem sido através de erros defensivos. Não só forçado, mas mesmo não forçados. Isto acontece porque os níveis de concentração médio dos jogadores também voltaram muito mais baixos. E com o decorrer do jogo, quando o cansaço aumenta o discernimento desce e essas desconcentrações ainda se tornam mais evidentes.

A influência do factor público

Já muitos estudos se fazem e muitos mais irão ser feitos sobre a influência que as bancadas vazias estão a ter no desempenho nas equipas. Já se sabia que quando aconteciam jogos à porta fechada a equipa da casa por norma tinha desempenhos mais baixos. Mas talvez não se pensasse que a influência fosse tão grande. Só agora, com jogos sucessivos sem público, é que a amostra é suficiente para poder tirar dados. Não será por acaso que o público é considerado “o sal do futebol”, e é por eles que o futebol é considerado o desporto rei e desperta tantas paixões e emoções.

Em outros países nem tanto, mas em Portugal bem sabemos que os clubes grandes têm sempre mais público que o adversário mesmo quando jogam fora. Com excepção dos confrontos entre eles. A motivação que os adeptos dão à equipa faz sentir os jogadores mais tranquilo e motivados e há maior pressão sobre o adversário.

Uma história real sobre adeptos

Sempre que se fala em adeptos e da sua influência lembro-me de um relato do ex-benfiquista Mozer. História essa que envolve o regresso ao Estádio da Luz como jogador do Marselha e o ex-internacional francês Jean-Pierre Papin, na altura colega do brasileiro.

Conta Mozer que quando chegou o clube, Papin disse a Mozer que pressão dos adeptos do Marselha era muita quando estavam entre 30 a 40 mil adeptos. E semana após semana “azucrinava-lhe” a cabeça, e ele, habituado a jogar no Maracanã e ao Estádio da Luz, nunca sentia essa “tal” pressão.

O que é melhor do que ser a contar? Passar a palavra a um dos protagonistas:

Até que nas eliminatórias da Taça dos Campeões Europeus, nas meias-finais, para azar dele caiu o Benfica. E eu pensei assim: “Agora vai ser a minha vez!” No dia a seguir a ter saído o sorteio virei-me para ele e perguntei:
— Jean-Pierre, você viu com quem caímos?
— Vi, vi. Com o teu ex-clube.
— Pois é. Agora você é que vai ver o que é pressão.
— Porquê?
— Porque o estádio lá vai encher.
— Vai encher? E quantos mete?
— 120 mil!
— O quê?!
— É. 120, meu filho. Lá não se brinca.

Viemos para Portugal para o jogo da segunda mão, depois de termos ganho em casa por 2-1. Chegámos com dois dias de antecedência e treinámos naqueles campos secundários do Estádio Nacional.

Quando chegámos lá estava lotado de benfiquistas à volta da cerca, nem conseguíamos ver o relvado, e ele falou assim:

– O Benfica está treinando?
– Não, não. Isto aqui é para esperar a gente mesmo, a pressão começa aqui.
Ele ficou completamente nervoso! Chegou o dia do jogo, trocámos de roupa e fomos para o aquecimento. Eu tinha o hábito de ser sempre o último a sair do balneário, porque gostava muito de prestar atenção ao estado de espírito dos meus colegas, para ver se íamos fazer um bom jogo. Sempre fui muito observador nesse aspecto. Quando o meu balneário já não tinha mais ninguém, já tinham saído todos para o relvado, fui também. Quando estava a chegar ao relvado, no túnel de acesso ao campo, eles estavam ali todos escondidinhos, assim só a espreitar e o estádio estava super lotado.

– Vamos embora!
– Não, nós estamos esperando você.
Fui em primeiro, subi a escadaria que dava acesso ao campo, e quando entro no relvado, do outro lado saiu o Eusébio para ser homenageado. Ai Jesus, o estádio explodiu! Um barulhão, e quando olhei para trás estava sozinho no campo. E a receber vaia, 120 mil a dar vaia em mim sozinho. Comecei a chamá-los.
– Não, vamos esperar até o barulho passar.
– O barulho não vai passar, meus amigos. Isto vão ser 90 minutos assim. Anda lá, meu!
Ninguém vinha. E pensei “pronto, já perdi o jogo.”

Foi a história mais caricata e engraçada que tive com um colega de profissão, que era um grande jogador. O inferno da Luz tinha surtido efeito naquele período e realmente era bastante difícil jogar no Estádio da Luz cheio. Para quem não estava habituado era muito complicado.

Públicos nos estádios: Sim ou não?

Tem sido um assunto muito debatido, e agora ainda mais, com a possibilidade (quase) confirmadíssima de Lisboa receber a ‘final 8’ da Liga dos Campeões. Há argumentos válidos que defendem que se eventos culturais aconteceram com 1/3 ou 1/4 de sala, porque é que um estádio de 60.000 não pode ter pelo menos 10.000 ou 20.000 pessoas, o bastante para manter distâncias sociais. Mas há um factor que é preciso ter em conta e poderá ser decisivo. Existe algum evento de massas que mexa tanto emocionalmente com as pessoas como um jogo de futebol? Quantos desconhecidos já se abraçaram a festejar um golo decisivo do seu clube ou da sua seleção?

Para terminar, dou novamente a palavra a um dos protagonistas, neste caso, eu mesmo.

10 Junho de 2016. Final do Euro. Mais um vez escolhi o Terreiro do Paço como palco para ver o segundo jogo mais decisivo de sempre da nossa Seleção. Se em jogos anteriores estava cheio, o que dizer da final. E não só de portugueses. Ao longo dos 90min o ambiente era é tão contagiante, que havia ali ao pé um grupo de turistas polacos a viver o jogo quase como se fossem um de nós. Quase.

Até que no meio de tantos nervos, há sempre quem fale demais e mande aquelas ‘bocas’ típicas do “mete este”, “tira este”… “assim vamos perder”. Isto em loop. Alguém perdeu a paciência e acertou-lhe em cheio com o capacete na cabeça e/ou ombro.

Uns 20 ou 30 minutos depois. Golo de Portugal. Todos se abraçaram incluindo essas duas pessoas. Dois desconhecidos que tinham tido um atrito grave que, em qualquer outro contexto, teria sido impossível acabar com um abraço.

Para que não restem dúvidas, eu fui apenas co-protagonista. Apenas visualizei a situação, mesmo ali ao lado.


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É com Fair Play que pretendemos trazer uma diversificada panóplia de assuntos e temas. A análise ao detalhe que definiu o jogo; a perspectiva histórica que faz sentido enquadrar; a equipa que tacticamente tem subjugado os seus concorrentes; a individualidade que teima em não deixar de brilhar – é tudo disso que é feito o Fair Play. Que o leitor poderá e deverá não só ler e acompanhar, mas dele participar, através do comentário, fomentando, assim, ainda mais o debate e a partilha.


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