Rugby português: à busca de um profissionalismo às costas do amadorismo

Francisco IsaacAgosto 14, 20219min0

Rugby português: à busca de um profissionalismo às costas do amadorismo

Francisco IsaacAgosto 14, 20219min0
Querer outro patamar mas sem olhar para a evolução interna, este é um problema do rugby português neste momento. Qual será o passo seguinte?

Objectivo do rugby português? Chegar novamente a um Campeonato do Mundo da modalidade, e, o mais rapidamente possível, de modo a sanar alguns problemas internos que ficaram estagnados devido à pandemia despoletada pelo SARS-CoV-2. O sucesso em voltar reunir os atletas profissionais a actuar no TOP14/PROD2/FED1 (e Espanha, em casos específicos) permitiu à selecção nacional ganhar outra dimensão qualitativa que tem feito a diferença na principal divisão de rugby de selecções da Rugby Europe, com os lobos a conseguirem demonstrar capacidade para lutar pelos lugares cimeiros da tabela, mantendo o sonho de chegar ao Mundial 2023 intacto, pelo menos neste momento.

Porém, os sucessos rubricados nos séniores e, anteriormente nos sub-20 (do tempo da direcção de Luís Cassiano Neves/Pedro Ribeiro), não espelham a realidade total do que é o rugby português, especialmente no que toca a vida dos clubes, dos jogadores e técnicos, etc, sendo estes os “pormenores” que decidirão o futuro da oval lusa no futuro.

Porque é que os jogadores amadores são importantes para o alcançar de objectivos? De forma directa e objectiva: matéria-prima. Sem esta argamassa seria impossível a modalidade existir, quanto mais crescer, revestindo-se estes atletas locais de um critério tão essencial como o investimento em infraestruturas, equipamentos ou competições, apesar de em vários casos ou situações serem tratados de uma forma menos positiva, existindo um sentimento de que é possível substituir a maioria dos jogadores a qualquer momento, descartando aqueles que não interessam por várias e diversas razões ou motivos.

Amadorismo significa exactamente isso, amadorismo, atletas sem qualquer contrato assinado com os seus clubes, possuindo uma ou várias razões para jogar, seja por carinho à modalidade, ligação familiar/amizade, manter uma actividade física activa. Só uma pequena percentagem destes jogadores vão conseguir e querem chegar ao patamar da selecção nacional, sacrificando aí mais tempo que poderia ser alocado na vida profissional ou pessoal, que é cedido com o melhor dos princípios e vontades, desprovido de querer ou procurar regalias.

É, fundamental, também perceber que os clubes vivem sob uma extrema pressão para garantir a sua sustentabilidade dentro deste prisma do amadorismo, e que no rugby português chega principalmente por via de contactos pessoais ou investimentos conseguidos através de uma ligação familiar/profissional que se interessa pela modalidade não por uma questão de rendimento ou retorno económico, mas por uma questão de imagem ou de querer ajudar florescer um desporto menos conhecido em comparação com os que ocupam o topo no contexto nacional.

Esta ameaça do “sobreviver ou desaparecer” cria inúmeras preocupações a quem tem a missão de dirigir e administrar, forçando um estreitar de visão que, por vezes, esquece quem são os membros que compõem as suas equipas séniores ou juvenis, levando isto ao “nascer” do discurso de que os atletas têm de fazer mais e de contestar menos, de aceitar qualquer decisão levada a cabo pela direcção ou staff técnico, mesmo que isso afecte a vida pessoal de cada um, justificando essas mudanças através das palavras “compromisso”, “exigência” e “responsabilidade”, apesar dos próprios – na maioria dos casos – não terem noção do peso das mesmas.

Vários são os dirigentes – e não só – a encetarem por um discurso a roçar a extorsão emocional com os atletas amadores, referindo que os esforços realizados pela direcção têm de ser devolvidos através de uma dedicação máxima de quem joga, querendo quase submeter ao mesmo compromisso de um jogador profissional a um amador, sendo este pensamento um erro completo e já algo criticado na esfera internacional.

Em jeito de exemplo, em Inglaterra, Itália ou Espanha, as federações e clubes aperceberam-se dessas diferenças entre diferentes realidades, instituindo modelos (alguns com sucesso, outros nem tanto) que respeitassem a capacidade humana de cada jogador poder dar algo de si ao desporto federado, sem querer perder qualquer um dos seus elementos pelo caminho. Veja-se o exemplo do Richmond, emblema inglês que é conhecido por deter só jogadores semiprofissionais ou amadores, respeitando a vida pessoal e profissional de cada atleta, com uma avaliação de qualidade/dedicação interessante e que tem servido de base para outros adversários quer do Championship (2ª divisão) e National 1/2 (3º e 4º escalão), procurando assim uma fórmula equilibrada e justa para todos os envolvidos.

Se há uma necessidade ou vontade de querer impôr um princípio profissional nos atletas portugueses, então o passo seguinte passa não por tentar submeter os jogadores a um calendário e compromisso semanal/mensal/anual mais agressivo (treinos de campo durante toda a semana, sem falar do treino específico de ginásio, entre outro tipo de preparação individual/colectiva), mas sim por encontrar soluções de maior interesse, como, por exemplo, algum tipo de remuneração ou vantagem especifica (pagamento de propinas, materiais escolares ou de estudo, apoio à deslocação e alimentação), com isto a poder aliciar esta “matéria-prima” a se envolver ainda mais e com um foco ainda melhor.

A argumentação de que os clubes garantem infraestruturas (campo de treino/jogo, balneários e, em alguns casos, ginásio e fisioterapia), equipamentos (de jogo ou casuais) e materiais didáticos (filmagem dos jogos, etc), não pode ser visto ou entendido como “remuneração”, de forma a obrigar a uma profissionalização falsa dos atletas federados do rugby português, pois esses elementos são quase obrigações mínimas/médias para garantir o funcionamento diário.

Existe, igualmente, outro problema que os dirigentes dos clubes portugueses têm tido pouco interesse em analisar e reflectir, que está conectado aos problemas já apontados neste artigo: saúde mental. Raros são os clubes que efectivamente detêm um psicólogo ou mental coach (creditado e com experiência na área) que possa acompanhar os atletas durante toda época (incluindo pré e pós-temporada) de forma a perceber a existência ou não de certo tipo de problemas que possam afectar o rendimento individual e, consequentemente, colectivo.

A nível profissional e internacional, têm sido vários os jogadores a falarem de depressão, de problemas psicológicos que surgem da pressão extrema de ter de jogar bem ou render semanalmente de modo a não perderem importância ou o contrato auferido, indicando ainda os medos que advêm de uma grave lesão ou do fim de carreira, sem falar das questões familiares e pessoais. Ou seja, todas estas questões problemáticas e preocupantes habitam até ao nível máximo desportivo, sendo só normal que o mesmo aconteça nos outros níveis, e, infelizmente, não há ajuda necessária e mínima, pelo menos, em Portugal.

Os treinadores detêm o direito de escolher as suas equipas e plantel evidentemente, mas não é admissível o espírito que circula neste momento em Portugal, de que os jogadores se devem submeter às mesmas responsabilidades e compromissos de um atleta profissional, forçados a jogar para lá do limite máximo, subjugados por um discurso a dançar com nuances ditatoriais e que a longo-prazo trarão problemas graves para o rugby português. A pressão de treinar, jogar, dar o máximo a cada novo dia após uma jornada de trabalho acaba por, a médio-prazo, criar dúvidas e desgaste emocional aos atletas, e pode levar a uma desistência prematura da modalidade (ou, pelo menos, paragem de algum tempo), criando assim uma vicissitude evitável quer para os clubes e selecção.

Vive-se numa era em que os antigos atletas do rugby português das décadas 70/80/90 criticam a capacidade mental e a resistência dos actuais jogadores em se manterem dedicados à modalidade por um período longo de tempo, entoando uma prosa de que no passado tudo era melhor, revelando uma completa falta de noção e percepção de como o Mundo, social ou desportivo, mudou radicalmente nestes últimos anos, com este tipo de comportamentos a conferir um cromatismo negro ao rugby e desporto.

Porque é que os jogadores amadores portugueses não poderão auferir um certo tipo de rendimento ou regalia? Seria tão errado assim cobrar um valor de bilheteira nos jogos de qualquer uma das três divisões séniores em Portugal e o mesmo ser oferecido aos 46 atletas (incluindo os profissionais ou semiprofissionais) que partilharam o campo?

Porque é que para uns, é legítimo o discurso do forçar mais horas de treino e compromisso, mas é má prática ofertar qualquer valor monetário aos jogadores? São questões que devem criar algum tipo de reflexão, forçar a massa dirigente, atleta e adepta a repensar comportamentos e opiniões, de modo a tentar fornecer um melhor futuro para todos aqueles que assumem a paixão de se envolver no rugby ou em qualquer outro desporto federado.

Com os Lusitanos XV no horizonte (será uma espécie de extensão da selecção nacional, sem os jogadores a jogar fora do território português) e a tentativa de aproximação com outro nível competitivo, é altura de perceber se há possibilidade de pensar nos atletas enquanto seres humanos com um processo cognitivo individual e independente, e menos como máquinas ou membros de um tribalismo cego, onde o descartar é uma simples e aceitável realidade para quem está envolvido com a modalidade, numa atitude perversa deste tipo de amadorismo.


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