Uma lição do rugby: só acaba no fim e pode dar muitas voltas

Fair PlayMaio 25, 20188min0

Uma lição do rugby: só acaba no fim e pode dar muitas voltas

Fair PlayMaio 25, 20188min0
Qualquer desporto tem uma regra de ouro: o jogo só acaba no fim! No rugby há mais surpresas e remontadas do que podes pensar e o Hélio Pires explica!

É um chavão desportivo dizer-se que um jogo só acaba no final, mas é também verdade que a diferença de pontos entre duas equipas pode ser tal que a partida está terminada (muito) antes do derradeiro apito. É da natureza da competição que assim seja, se bem que nisto, como noutras coisas, nem todos os desportos foram criados iguais.

Vem isto a propósito da pontuação nos jogos de râguebi, coisa talvez confusa para quem não o conhece e por isso uma pedra na engrenagem da popularização da oval. E digo-o na condição de alguém a quem já perguntaram pelo porquê de um ensaio valer cinco pontos, uma conversão dois e uma penalidade três. É só para complicar? Não, não é!

mérito na distinção e percebê-lo é entender algo da estratégia, riqueza e emoção subjacentes à modalidade. Por isso, se a pontuação é para ti uma interrogação que te impede de seres um aficionado do râguebi, continua a ler.

Coelhos e cajadadas

Tal como no artigo anterior, usemos o futebol como termo de comparação por ser o único desporto que a maioria dos portugueses conhece realmente bem. Um golo é um golo e vale sempre um ponto, seja ele marcado com o pé, a cabeça ou até de bicicleta, de frente para a baliza, saído de um livre ou após um pontapé de canto. Simples e fácil, sem dúvida, mas também mais pobre por ter menos capacidade de influenciar o cálculo do jogo.

Por exemplo, uma equipa que esteja a perder por 2-0 tem que marcar dois golos para empatar e três para ganhar. Não há volta a dar-lhe! Não interessa como é que o faz ou a partir de onde, porque a pontuação é uniforme e, por isso, chegados aos dez ou quinze minutos finais, a derrota é quase uma certeza. Não há, imaginemos, a possibilidade de saltar por cima da diferença marcando um golo que valha por dois ou três por ter origem num canto. Para anular uma vantagem de X há que marcar pelo menos um número igual de golos.

Já no râguebi, a dinâmica é outra precisamente por um ensaio, conversão e penalidade não terem o mesmo valor. Por exemplo, uma equipa pode ficar à frente por 6-0 por via de duas penalidades, mas os seus adversários podem reduzir a diferença para um ponto com um ensaio. E este, por sua vez, dá-lhes direito a tentarem marcar a conversão, que se for bem sucedida põe a equipa à frente. De 6-0 passa-se para 6-7 num instante e a partida muda de figura. Qual foi o jogo de futebol em que se foi de uns 2-0 para 2-3 numa única jogada?

Há nisto um elemento de incerteza, já que a conversão pode ser mal sucedida e os dois pontos escaparem à equipa atacante, que, no exemplo acima, continuaria atrás, mesmo que por apenas um ponto. Mas incerteza, surpresa e a emoção que lhes está associada são parte do que torna um desporto cativante.

Estratégia

Outra consequência de um sistema de pontuação diverso em vez de uniforme são as decisões estratégicas que se impõem para chegar à vitória. No futebol, se se estiver a perder por dois há que marcar pelo menos um número igual de golos para evitar a derrota, pelo que o que interessa é meter a bola na baliza adversária, não importa como, desde que seja válido. Já no râguebi, as contas são mais complexas.

Imaginemos que se está a perder por cinco pontos a dois minutos do apito final. No futebol, a diferença seria inultrapassável e a partida estaria mais que terminada, mas no râguebi, com um ensaio com conversão, quem estivesse atrás passava para a frente por dois pontos se, dada a oportunidade, optasse por marcar da forma certa.

Por exemplo, se a equipa adversária cometesse uma falta punível com uma penalidade, a atacante podia chutar a bola por entre os postes e com isso arrecadar três pontos. O que reduziria a diferença, é certo, mas não o suficiente para passar à frente antes do final do jogo. A opção mais vantajosa seria tentar chegar ao ensaio, fosse por um toque rápido na bola que recomeçasse a partida e apanhasse o adversário desprevenido, fosse chutando a bola para a frente e para fora e, por ter sido uma penalidade, usufruir do direito de metê-la em campo mais próxima da zona de validação.

Seria como se no futebol se pudesse ultrapassar uma diferença de três golos marcando um de canto. Não bastava meter a bola na baliza, havia que pensar como e jogar com essa estratégia em mente para marcar o que desse mais pontos. E isso, por sua vez, manteria o jogo em aberto até ao último segundo em vez de estar terminado minutos antes do apito final por não haver tempo para fechar uma diferença de dois golos.

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Casos práticos

Passando da teoria à prática, considere-se duas partidas recentes: a dos Crusaders contra os Waratahs e a final da Taça de Portugal entre a Agronomia e a Académica, que foi transmitida em direto na televisão (obrigado, TV24!).

Na primeira, a equipa australiana chegou aos 30 minutos de jogo com uma vantagem de 0-29, mas, longe de arrumar o encontro, a diferença foi sendo reduzida ensaio após ensaio pelos Crusaders, que ao final da primeira parte continuavam a perder, é certo, mas por 19-29. E mantiveram a tendência depois do intervalo, chegando a cinco minutos do fim à frente por 31-29. Uma diferença de apenas dois pontos que podia ter sido anulada por uma simples penalidade, o que manteve a incerteza até ao final.

O mesmo suspense foi verdade para a partida entre a Agronomia e a Académica. Nos derradeiros minutos, o clube dos estudantes estava a ganhar por 20-15, números que no futebol ditariam uma vitória certa, mas que no râguebi são facilmente ultrapassáveis por um ensaio com conversão. Motivo pelo qual a Agronomia aproveitou uma série de penalidades para chutar a bola para fora e para frente, mantendo viva a esperança de ganhar, e o público lá foi digerindo o melhor que podia a incerteza que se manteve até ao apito final.

E ainda o bónus

Só mais uma coisa antes de terminar: nas competições de râguebi, tal como no futebol, o lugar na tabela geral é ditado pelos pontos recolhidos por vitória ou empate. Mas na oval, ao contrário da bola, há também pontos de bónus ofensivo e defensivo. Por exemplo, uma equipa vencedora que marque quatro ou mais ensaios recebe os normais quatro pontos da vitória, mas também um de bónus, enquanto uma que perca por sete pontos ou menos não sai a zeros e leva para casa um ponto de bónus defensivo.

Os detalhes do sistema variam consoante o campeonato, mas o princípio geral é sempre o mesmo: incentivar as equipas a marcarem, mesmo nos casos em que o jogo já está perdido, porque há sempre algo a ganhar quando se perde por pouco. Também aí o jogo só acaba no final, mesmo quando a derrota é já uma certeza.

Portanto, não, não é só para complicar. Há toda uma arquitetura destinada a tornar os jogos mais competitivos e emocionantes e eu ainda nem falei de como é que funcionam as duas últimas jornadas de campeonatos nacionais.


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