A arbitragem tem o futuro em risco no rugby português?

Francisco IsaacMaio 9, 201914min0

A arbitragem tem o futuro em risco no rugby português?

Francisco IsaacMaio 9, 201914min0
Falta de investimento, orçamento cada vez mais diminuto por parte da Federação Portuguesa de Rugby e ausência de apoio dos clubes. Qual é o futuro da arbitragem na oval lusa?

Diz-se que o rugby é um desporto mais fácil termos de “jogar” em comparação com o futebol, sendo necessário só uma bola oval (ou qualquer coisa que represente esse instrumento de jogo, desde que não seja muito pesado ou leve) marcar duas linhas, uma em cada extremo e meter uns quantos jogadores a disputarem a posse de bola e em busca do ensaio (por falar nisto, vejam a nova variante do rugby chamado de XRugby7s).

A ideia infantil resulta quando não há competitividade envolvida na prática, conseguindo excluir por completo o homem-do-apito. Contudo, quando aparecem aqueles momentos de maior tensão ou de uma simples dúvida, a necessidade de ter um juiz de jogo acaba por ser fundamental, evitando que hajam mal-entendidos, discussões crispadas e trocas de palavras.

SEM ÁRBITROS, O RUGBY É SÓ UM AGLOMERADO CAÓTICO DE JOGADORES

O rugby, ao contrário da maioria das modalidades colectivas onde exista uma bola como foco do jogo (“nunca tires os olhos da bola” ou “a oval é a tua melhor amiga” são frases categóricas da modalidade), tem um código de regras pesado e vasto, o que obriga a um estudo profundo das leis para depois perceber como se processa a sua aplicação durante o jogo.

É uma modalidade que quase consegue ser mais complexa que o xadrez, com maiores picos de intensidade que o futebol, mais dinâmico e veloz comparativamente com o basquetebol e não só fisicamente como emocionalmente dura, obrigando aos seus intervenientes procurar conhecer, ler e reflectir do que se tratam das “mil e uma” regras.

A somar a este factor, é a modalidade que força aos árbitros terem um conhecimento profundo sobre tudo o que se passa em seu redor, com uma atenção totalmente redobrada para não deixar escapar qualquer penalidade ou incumprimento das leis de jogo que possa remover a justiça desportiva de dentro das quatro-linhas. Por outro lado, é este juiz de jogo que tem também de saber equilibrar entre a aplicação das leis e deixar o espectáculo fluir, uma espécie de fusão só ao alcance dos melhores árbitros.

Ou seja, quem está com o apito na mão tem o dever de não só saber “apitar” como estudar as leis, procurar a sua aplicação correcta, adaptar-se às condições de jogo e transmitir confiança, respeito e credibilidade aos restantes envolvidos, sejam os praticantes ou os espectadores.

Sem bons árbitros, não há evolução da modalidade e no rugby é um caso claro desse facto. Por melhores atletas que um país tenha, por maior dose de crescimento geracional que se assista, sem árbitros principais, auxiliares e observadores não há espaço para evolução, podendo incorrer-se numa estagnação e, porque não, no desaparecimento da modalidade em si.

Em Portugal, a arbitragem está neste momento imersa num “oceano” de dúvidas, de constantes carências e de dificuldades tanto a nível de financiamento como de ideias para se produzirem novos juízes-de-jogo, vivendo-se entre a mediocridade, um adjectivo cada vez mais imputado à oval nacional.

Se em Maio de 2018 assistiu-se a uma das maiores greves da arbitragem portuguesa, que impossibilitou o uso de árbitros oficiais nos jogos de meias-finais da actual Divisão de Honra, agora em Maio de 2019 continua instalada uma crise em termos de qualidade de quem está a ajuizar os encontros assim como no apoio prestado a estes mesmos intervenientes, piorando à medida que se desce de divisão ou de escalão.

É cada vez mais normal ouvir treinadores “frios” (e excluímos aqui os intervenientes que constantemente fazem ataques desproporcionais, com uma comunicação munida de ofensas e tons reaccionários) a criticarem as decisões de uma boa parte dos árbitros portugueses, especialmente na compreensão e entendimento de algumas das leis mais básicas do jogo, que não deixam espaço para interpretação.

Desde a lei dos dez metros de vantagem (a equipa que comete uma penalidade tem de recuar imediatamente, sob pena de cometer nova falta), a placagens altas (acima da linha dos ombros é falta e cartão amarelo dependendo da gravidade), à linha de fora-de-jogo (a equipa que está a defender tem de estar atrás dos últimos pés da equipa adversária), à legalidade no ruck (mergulhos, pontes de ombros e outros pormenores que tornam esta formação espontânea uma autêntica trincheira em alguns jogos) são estes alguns dos erros que espelham não só uma falta de atenção, como também de entendimento do que são as leis.

Se excluirmos a dificuldade da leitura e aplicabilidade de leis na formação-ordenada (parâmetro do jogo mais difícil de perceber quem fez a falta ou, melhor, quando), as restantes não apresentam um grau de tão elevada dificuldade, o que força a colocar a seguinte questão: porquê então os maus ajuizamentos e erros?

A resposta pode ter várias explicações, sendo que a primeira passa por: falta de aposta na arbitragem e o seu crescimento.

O maior sucesso do rugby português… Paulo Duarte (Foto: Eric Lim / Getty Images)

A ARBITRAGEM PORTUGUESA: ESTADO DE ARTE

A Federação Portuguesa de Rugby tentou fazer um esforço (mínimo) para melhorar as condições da arbitragem nos últimos 15 anos, desenvolvendo alguns (mas poucos) programas de aprendizagem e formação, sem que tivessem tido resultados práticos.

Paulo Duarte é o único árbitro português a ter conseguido marcar presença num grande torneio de rugby Mundial, com destaque para os 7’s World Series, a maior prova da variante de sete de todos-os-tempos.

Afonso Bahia Nogueir, Filipa Jales, João Costa foram os outros mais recentes produtos da arbitragem a ter algum sucesso fora-de-portas, mostrando-se em torneios juvenis da Rugby Europe ou World Rugby ou em torneios de 7’s europeus.

Mas no geral, nos últimos 15 anos foram raros os árbitros a notabilizarem-se ao ponto de seres-lhes reconhecido valor para ajuizarem jogos no estrangeiro e esse pormenor deverá ser mais que suficiente para compreender que existiu, existe e continuará a existir uma falta de apoio ao desenvolvimento mais progressivo deste factor fundamental de um jogo de rugby.

Apesar dos esforços produzidos por António Moita ou João Mendes da Silva, nunca se encontrou um rumo correcto ou minimamente atraente para se cativarem mais jovens árbitros em Portugal, abrindo-se cada vez mais um “buraco” em termos de números de jogos e de juízes, com os belos ideais do “Eu Apito!” a ficar reduzido a um investimento e apoio fraco por parte de quem monta os orçamentos para o rugby português.

O excesso de esforço, a pressão extenuante e a falta de preparação emocional e de conhecimento, levam a que a uma parte dos jogos tenham sérios erros na leitura de regras que mancham o encontro e levam, no seu extremo, a uma frustração completa tanto dos vencidos como dos vencedores.

O árbitro tem culpa dos seus erros? Tem. Mas então não terão os clubes responsabilidades acrescidas e culpa destes problemas também? Porquê exigir resultados e excelência quando a aposta foi sempre pobre?

Se contabilizarmos os emblemas que militam entre a primeira divisão de rugby em Portugal (Divisão de Honra) até à terceira, temos cerca de 30 emblemas nacionais séniores, o que perfaz quase 20 jogos por jornada neste escalão. Se multiplicarmos a este número os jogos de séniores, challenge, sub-18, sub-16, sub-14, sub-12, sub-10, sub-8 temos um número titânico de jogos, que ocorrem todos nos fins-de-semana.

Ou seja, os árbitros portugueses, que não deverão ascender dos 20 e tais em número, têm uma missão impossível pela frente a cada novo fim-de-semana, forçando um compromisso mental lato e exigente para garantir a sustentabilidade da modalidade.

Se destes 30 clubes portugueses saírem 3 novos árbitros por ano já é visto como uma situação adequada, quando na realidade estes números são muito abaixo do que deveria ser na realidade.

Isto significa que o esforço dos clubes para suscitar o aparecimento de árbitros é quase nulo, não existindo um bom programa de estimulação de criação de novos juízes-de-jogo, abrindo-se uma “falha tectónica” entre números de jogos e números de árbitros.

O orçamento para a arbitragem é alvo de reduções todos os anos, com os apoios a serem cada vez mais escassos, o que leva a um sentimento de frustração para quem se arrisca a ir para dentro de campo ajuizar um jogo.

Não só isso, como também não existem na maioria dos jogos árbitros auxiliares designados pela Federação Portuguesa de Rugby, o que torna ainda mais difícil a missão do único árbitro presente no jogo.

Esse factor, por exemplo, leva a que surjam ensaios originados em passes para a frente ou de avant claro (só na 8ª jornada do CN 1ª Divisão deram-se três ensaios que começaram numa bola para a frente da equipa atacante) ou na má leitura da linha de fora-de-jogo.

Na Divisão de Honra 2018/2019, os oito emblemas participantes “criaram” uma bolsa de apoio à arbitragem de modo a garantir a presença de um trio de juízes-de-jogo na maioria dos jogos, o que eleva desde logo a qualidade de jogo.

A responsabilidade foi assim imputada aos clubes que fazem a gestão quase “sozinha” deste sector quando devia estar devidamente financiado pela Federação Portuguesa de Rugby, a entidade máxima responsável não só pelas selecções nacionais mas também pelo correcto funcionamento das várias divisões de rugby em Portugal (algo que todos os departamentos da instituição se esquecem de forma constante), seja desde a comunicação, logística e arbitragem.

Contudo, estes problemas estruturais não isentam os árbitros de fugirem à responsabilidade das más exibições no terreno de jogo.

Uma imagem rara: equipa de 3 árbitros em Portugal (Foto: Luís Cabelo Fotografia)

SOLUÇÕES ENTRE A BOA VONTADE E A INFLUÊNCIA CLUBÍSTICA

É evidente que existe ainda um clima de excessiva amizade de alguns árbitros para com algumas equipas (pelo seu passado como jogadores, pela familiaridade com os atletas, pelo bom entendimento com o clube) que depois “transita” para o relvado no sentido de alguns membros desses clubes acharem que essa amizade equivale a um pender das balanças nos momentos críticos do jogo. Isto pode levar a um confronto emocional nada imparcial e que tira legitimidade à modalidade quando quer fazer uso das palavras “justiça desportiva”.

Por outro lado, o discurso agressivo e por vezes violento que vários elementos, que vai desde jogadores a dirigentes, tiveram para com alguns árbitros durante as últimas épocas em qualquer uma das divisões ou escalões, demonstra também a falta de cultura e sentido de desportivismo que existe neste momento na modalidade.

Algumas vozes propõem um regime de voluntariado de forma a subir o número de árbitros, mas esta proposta não só é perigosa (os “voluntários” não estarão tão disponíveis mentalmente para estudar o jogo, por exemplo, para além do “voluntariado” ser uma forma de explorar as pessoas muitas vezes sobre falsos pretextos) como errada nos termos das contrapartidas entre quem apita e quem joga (este voluntariado iria acabar por ser alvo de abusos seja na discussão de orçamentos; e a falta de pagamento para quem tem uma responsabilidade tão grande é um sinal claro de amadorismo da modalidade em Portugal).

Todavia, em torneios da ARS ou do CRRC existem sempre boas tentativas de convidar atletas sub-18/16 ou seniores a virem apitar jogos dos mais novos, de forma a criar uma empatia mútua como de incentivar novos árbitros. Funciona, portanto, a um nível inferior em termos de idade e exigência.

Outra ideia que poderia mais facilmente ser colocada em prática passaria pela criação um canal de comunicação entre árbitros e clubes pré-jogo. Ou seja, clube A e B têm jogo agendado para sábado às 13h00, árbitro X é designado para este encontro. O elemento X receberia os contactos dos dois emblemas de modo a contactá-los directamente para pedir desde logo que seja facultado um juiz-de-linha que não fossem jogadores envolvidos no encontro de sábado, nem dirigentes, mas sim outros elementos familiares a esses emblemas.

Os clubes ficariam com a responsabilidade de ajudar na criação de condições mínimas para o sucesso de arbitragem, oferecendo ao árbitro dois conselheiros, minimamente, confiáveis e com predisposição de aprender mais sobre o jogo.

Todavia, perante o ambiente de excessivo provincianismo no rugby português, um juiz-de-linha da equipa A ou B que assinale uma falta contra a sua equipa poderia facilmente ser pressionado a num próximo jogo fazer o contrário.

A definição de observadores de jogo poderia resultar em proveito do rugby português, uma vez que uma boa parte dos jogos já possuem transmissões e gravações, bastando que seja criado este corpo de avaliação à prestação dos árbitros, sem ressentimentos e sem pressão clubísticas/federativas.

E porque não criar sessões pós-laborais de visionamento de jogos, convidando árbitros e treinadores a marcarem presença a fim de discutir os erros de ambos os lados e procurar um fundo de entendimento que neste momento é globalmente inexistente para a modalidade.

Uma vez por semana, duração de duas a três horas, seja em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora ou outro local, árbitros dessas áreas regionais poderiam conversar e discutir ideias, apresentar dúvidas e assumir responsabilidades perante os restantes intervenientes de jogo.

Uma “proposta” final passaria por conquistar um patrocinador só dedicado à arbitragem, financiando uma boa parte do funcionamento desta secção, com contrapartidas claras de imagem.

Contudo, num momento em que as dificuldades financeiras são muitas e a falta de noção de como atrair novos patrocinadores é um cenário existente, a arbitragem deverá estar em último lugar em termos de preocupações em termos de procura de apoios e financiamento para vários dos dirigentes da modalidade, como já foi audível em algumas assembleias-gerais da FPR.

Posto isto, será que a arbitragem portuguesa está destinada ao constante fracasso e levará consigo todo o crescimento do rugby português? Ou os agentes nacionais da modalidade estão dispostos a criar uma bolsa de apoio financeiro “gorda” para a arbitragem que será um extra, para além do orçamento disponibilizado pela Federação Portuguesa de Rugby para os árbitros?

Será impossível incutir responsabilidade de não só formar jogadores, mas também cidadãos, árbitros, treinadores, colaboradores, entre outros no rugby português? Ou há um sentimento de que tudo “está menos mal” e que poderá continuar no tom actual de discussão?

Não merecem os juízes de jogo mais respeito, mais apoio, mais atenção, mais campo de debate e mais “carinho” de forma a conseguirmos colocar Portugal também como um fornecedor de árbitros de qualidade para a Rugby Europe e World Rugby? O profissionalismo nos jogadores é mais complicado que o dos árbitros e se o rugby luso conseguir profissionalizar três ou quatro juízes de jogo, não há dúvidas que teremos uma evolução interessante na modalidade nos próximos 10 anos.

Divisão de Honra beneficiada perante as outras divisões? (Foto: Luís Cabelo Fotografia)

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