Libertadores 2018 é o exemplo que o futebol bateu no fundo?
Estádios de “torcida única”, penalizações pesadas para os clubes, jogos à porta fechada e tudo mais na luta contra a violência no desporto. É isto que as instituições desportivas têm tentado aplicar através dos seus governos, forças de policiamento e prevenção e organizações de futebol continentais e regionais. Mas, será que a violência se combate desta forma? Ou é simplesmente desviar os problemas para fora do estádio?
CASO DE VIOLÊNCIA DESPORTIVA EM BUENOS AIRES RARO OU “COMUM”?
Exemplo claro de que estas medidas não conseguiram silenciar a violência no desporto: ataque ao autocarro do Boca Juniors na entrada para a 2ª mão da final da Libertadores 2018, por uma multidão de adeptos do River Plate. Tão simples e claro que nem a FIFA ou a CONMEBOL conseguem esconder o que se passou em Buenos Aires, apesar do desejo de ambas organizações em seguir para o jogo.
Jogadores do Boca Juniors no hospital, outros tantos (ou todos aliás) sem a mínima vontade de calçar as botas e uma boa percentagem de pessoas a tentar forçar a realização de uma final que não podia acontecer em nome do fairplay, desportivismo e bom senso.
De acordo com vários jornalistas locais e internacionais, Gianni Infantino e a junta administrativa da FIFA, que se tinham deslocado à capital da Argentina para discutir o apoio da CONMEBOL ao actual presidente da maior organização mundial de futebol, tentaram forçar que a final se realizasse mesmo perante a situação caótica que o Boca Juniors se encontrava.
Carlos Tévez veio a público confirmar tal suspeição e o pormenor descrito pelo avançado argentino voltou a pôr a descoberto a falta de humanidade e consciência de algumas das entidades que regem o futebol a nível mundial. Gianni Infantino, que tem lutado contra a sombra do fantasma de Josep Blatter, acabou de cair num precipício que o seu antecessor tentou nunca ultrapassar, apesar dos mais variados esquemas de corrupção, extorsão e tráfico de influências dos quais o suíço foi orquestrador-mor.
Depois de vários adiamentos consecutivos, da passagem do jogo de um dia para o outro e do seu subsequente cancelamento, a última final da Libertadores nos moldes actuais está numa zona pantanosa, muito complicada de suprimir.
Mas, para o leitor mais distraído ou que não conseguiu estar com tanta atenção à situação, o que realmente se passou? De forma clara: na viagem entre o hotel e estádio do River Plate, o autocarro do Boca Juniors foi atacado com pedras e outros objectos. No meio da confusão, a polícia tentou afastar os adeptos com gás lacrimogéneo que acabou por cair ao lado da viatura onde estavam os jogadores do Boca, atacando vários, forçando a que fossem levados para o hospital.
Super-segurança dentro do recinto de jogo, quase nenhuma cá fora ou junto do transporte dos jogadores do Boca Juniors , resultando num incidente que poderia ter atingido um ponto completamente insano e sem regresso possível.
Contudo, a CONMEBOL rejeitou inicialmente os pedidos da direcção do Boca Juniors para suspender e adiar o jogo, aceitando só dar uma hora mais à equipa dos Xeneizes, sabendo que estes não tinham mínimas condições para ir a jogo. A pressão de outras instituições, principalmente estatais e dos próprios jogadores do River Plate, forçou a um novo adiamento.
A pressa de continuar a vender um dos blockbusters do ano, quase que precipitou a maior organização mundial a incorrer num gesto desumano e sem qualquer decência perante a situação que activos seus enfrentavam. E a CONMEBOL, o que fez?
OFFICIAL: @FIFAcom (Infantino) has just told @TanoAngelici that if Boca do not play today, they will be disqualified. #Libertadores2018
— Juan G. Arango ?? ?? (@JuanG_Arango) November 24, 2018
CONMEBOL: UMA ORGANIZAÇÃO AMADORA, DESUMANA OU GANANCIOSA?
A instituição que rege todo o futebol da América do Sul fez exactamente o mesmo que a FIFA, para depois se arrepender e recuar perante a pressão de adiar o jogo para uma data a decidir. Nos dias que antecederam a 2ª mão, Alejandro Dominguez, presidente da instituição, negociou e acordou apoiar Gianni Infantino nas próximas eleições, dando assim um voto importante ao ainda presidente da FIFA.
Este pormenor vai ajudar ao intensificar da trama, quando se dá o tal incidente de sábado, 24 de Novembro. Dominguez queria à força realizar uma final que já tinha sido vendida para todo o Mundo como uma das maiores de sempre da Libertadores, e o apoio da FIFA a essas intenções foi notado. Milhões de dólares já tinham sido registados em venda de direitos televisivos, num Superclásico que punha fim às finais a duas mãos da Libertadores, passando em 2019 para campo neutro e de só uma mão (igual à Liga dos Campeões europeia).
De um lado, o presidente da CONMEBOL tinha o factor económico a “gritar” aos seus ouvidos, somando-se ainda o disfarçar que tudo estava bem e que o ataque ao autocarro do Boca Juniors não tinha passado de um “pormenor”. Contudo, do outro tinha o factor humano e desportivo, da necessidade de garantir uma oportunidade ao Boca Juniors numa outra data, sem apressar o espectáculo pela necessidade dos milhões e de parecer bem à FIFA.
Alejandro Dominguez optou por agradar ao “seu” presidente, ao invés de dar ouvidos aos valores e princípios pelos quais o desporto é regido (ou que quer pelo menos tentar manter). Ao optar por esta decisão, apresentou uma imagem não só de desumano e “tirano”, como de responsável por uma instituição amadora, que quer forçar o realizar de um espectáculo quando não existiam as condições mínimas para tal.
Os quatro adiamentos num par de horas, o adiamento para o dia seguinte, a suspensão pelas forças policiais argentinas do recinto de jogo e as críticas do governo das Pampas colocaram em xeque o presidente da CONMEBOL, que desde então se escudou e não mais apareceu.
A única mensagem oficial do corpo que rege o esférico na América do Sul foi genérica e veio 24 horas atrasada, afirmando que ajudaria as autoridades locais, exigindo destas o seu máximo empenho para a captura de quem fez esta acção, colocando-se também do lado dos jogadores do Boca Juniors .
Contudo, e como dissemos, a mensagem veio excessivamente tarde e o rótulo de incompetência já tinha sido colado à CONMEBOL, com a FIFA no pano de fundo como grande manipuladora de toda a pressão feita para a realização de um jogo que nunca poderia acontecer.
Em 2015, o Boca Juniors foi banido dos oitavos-de-final da Libertadores devido às acções dos seus adeptos dentro da Bombonera, que atacaram os jogadores do River Plate com gás pimenta. A CONMEBOL eliminou os xeneizes, aplicou uma multa de 200 mil dólares, impôs quatro jogos à porta fechada e retirou o apoio a voos continentais durante um ano.
Carlos Tévez nas horas que se seguiram aos incidentes de 2018, relembrou a situação de 2015, deixando no ar a ideia de que se devia aplicar o mesmo tratamento ao River Plate. Contudo, as acções dos adeptos do Boca Juniors ocorreram dentro do recinto de jogo e não fora, algo que a CONMEBOL vai facilmente relembrar para a não aplicação de uma decisão que punha termo à final da Libertadores 2018 sem ocorrer a 2ª mão.
TERRORISMO, A PALAVRA QUE NINGUÉM QUER DIZER MAS QUE TEM DE SER DITA
Nos três últimos anos, as autoridades argentinas e, agora brasileiras, impuseram a situação de “torcida única” em jogos de alto risco ou de rivais próximos, aplicando só as tonalidades das cores da equipa da casa, numa tentativa de pôr fim à violência entre adeptos. Contudo, e como já explicámos num artigo anterior (ver aqui), vários investigadores brasileiros, colombianos, argentinos e europeus apontaram que a violência aumentou fora do estádio, especialmente em zonas de transição, de concentração de adeptos ou de transportes públicos.
A violência elevou ao ponto que se registaram mortes e outras ocorrências igualmente graves, sem que as autoridades responsáveis, seja as policiais ou desportivas, desejassem fazer menção. O objectivo foi retirar as imagens de violência do estádio, sem se preocupar com os problemas actuais que reinam no desporto, mas principalmente no futebol: falta de desportivismo, falta de aceitação de resultados e incremento da justiça popular.
A luta actual contra a violência no futebol tem sido debatida por diversas instituições, sem que fosse possível encontrar formas rápidas de solucionar um problema que existe no âmago da sociedade e que vai muito para além do desporto em si. O extremar dos adeptos, a falta de verificação às claques e a contínua falta de comunicação entre as autoridades competentes de segurança, desportivas (clubes ou federações) e adeptos em si têm sido três factores de destruição dos valores do desporto.
Ao exemplo do que se passou em Alcochete com adeptos do Sporting Clube de Portugal, as invasões de campo em jogos da Croácia, a violência para com jogadores do Olympiakos são claras demonstrações do terrorismo aplicado no desporto, apesar da tentativa de adeptos e algumas instituições de fugirem a essa designação.
De acordo com a Lei Portuguesa, terrorismo é:
“É considerado terrorista o agrupamento de duas ou mais pessoas que, em actuação concertada, visem prejudicar a integridade e a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster‑se de o praticar ou a tolerar que se pratique ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral mediante diversas formas de crime, como, por exemplo, crimes contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas; crimes contra a segurança das comunicações; crimes que provoquem incêndio, contaminação de alimentos e águas destinadas a consumo humano, ou difusão de doença ou praga, ou de planta ou animal nocivos.
Além destes, contemplam‑se ainda crimes que impliquem o emprego de energia nuclear, armas de fogo, substâncias ou engenhos explosivos, meios incendiários de qualquer natureza, encomendas ou cartas armadilhadas; ou ainda a investigação e desenvolvimento de armas biológicas ou químicas.”
Contudo, a maior parte dos responsáveis evitam etiquetar a palavra “terrorismo” as acções de adeptos que entrem na designação acima referida, optando por até esconder e influenciar a opinião pública noutro sentido.
A relativização da violência gera mais violência, como tem sido claro fora, junto ou dentro de inúmeros estádios de futebol que cada vez mais têm tonalidades tão extremas de tipos de adeptos: aqueles que vão ver futebol só pelo mero gozo de apoiar a sua equipa e de apreciar o espectáculo; e aqueles que vão para tentar expiar as frustrações do seu quotidiano incorrendo numa postura mais selvática e errática.
A FIFA e CONMEBOL tentaram exactamente praticar este “crime” sem pensarem nas consequências futuras para o Mundo do Futebol. No final quem vai pagar é o adepto comum que deixa de se sentir seguro na ida para o estádio e no viver de um espectáculo que se quer único e fantástico.
Que futuro para a Libertadores? E deverá o River Plate se responsabilizar pelas acções terroristas dos seus adeptos?