O amor à camisola “morreu” por causa dos clubes ou jogadores?

Francisco IsaacMaio 27, 202012min0

O amor à camisola “morreu” por causa dos clubes ou jogadores?

Francisco IsaacMaio 27, 202012min0
Uma parte dos adeptos censura os jogadores que decidem dar sequência à sua carreira, apelidando-os de "mercenários" sem perceber o porquê ou como. O amor à camisola é uma ilusão montada pelo adepto zelota?

É um conceito criado quase exclusivamente para o desporto profissional, principalmente para o futebol e que tem erguido diversos conflitos e guerras entre adeptos e até entres estes e os próprios jogadores, lançando críticas e “dedos apontados” às decisões que um atleta de alta competição decide fazer em prol da sua carreira. Mas realmente, o “Amor à Camisola” é um conceito gerado de forma artificial e moderno devido aos adeptos não conseguirem compreender o porquê da saída de um jogador ou advém de tempos “remotos” do Desporto-Rei e tem razão lógica de ser?

Vejamos alguns lados desta questão que contém problemas e dúvidas, várias vezes esquecidas por quem simplesmente acompanha e vê os jogos.

CLUBES… A MÃO QUE DÁ E TIRA

O futebol modificou-se radicalmente nos últimos 40 anos, sofrendo constantes mutações não só de década para década mas em alguns casos de ano para ano, seja pela reformulação de competições (como aconteceu com a Liga dos Campeões, que passou de algo limitativo aos campeões de cada país para algo mais abrangente e que dá oportunidades até ao 4º classificado das maiores ligas), pela alteração das situações contratuais entre clubes e jogadores, pela entrada de agentes, empresários e outros intervenientes que agilizaram (ou dificultaram) transferências, pela introdução de departamentos de scouting, academias de alto rendimento e outros blocos de ajuda ao desenvolvimento da formação, entre outras componentes que proporcionaram um produto mais globalizado e predominante em todos os ramos da sociedade.

Com o crescimento do “jogo”, os clubes começaram a trilhar um caminho evolutivo não em termos de notabilização e de engagement com o seu público mas como negócio e máquina de criação de excelentes oportunidades económicas que profissionalizaram toda a estrutura, o seguindo-se a criação de SAD’s e outros blocos administrativos “privados”, levando à necessidade dos jogadores procurarem assegurar um futuro melhor já que a exigência subiu não só de quem passava o “cheque” ao final do mês mas também de quem estava na bancada a suspirar e a sofrer com cada novo jogo e época.

Um dos rostos mais fortes do amor à camisola (Foto: Ponto Final Macau)

Os contratos tornaram-se mais robustos não só no ordenado a auferir, mas nos direitos e deveres, nas condições oferecidas e proporcionadas entre o clube e jogador, impondo assim um compromisso não por fruto (somente) de uma “paixão” por dado emblema, mas pela necessidade de respeitar as cláusulas contratuais. Efectivamente o crescimento do “mundo” dos clubes ou do dos jogadores forçava o outro a igualmente acompanhar essa trajetória, de forma a se proteger e potenciar, algo que acabou por criar o negócio actual de futebol que tem nuances altamente discutíveis mas também está carregada de elementos positivos.

Porém, a evolução do futebol-negócio criou problemas ao futebol-familiar, ou seja, ao futebol mais “amador” no ramo de empregabilidade, de algo mais próximo da voz e opinião dos adeptos e que não tinha de lidar com as questões de negociar seriamente contratos, jogadores ou staff, e aquilo que era mais comum durante a maior parte do século XX acabou por se tornar num pormenor exótico e carregado de contrastes nostálgicos.

Este “mundo antigo” da bola redonda tornou-se quase como um cultuação mitológica que tem criado algumas reacções extremistas quando se dão certos volte faces nos seus clubes, como a saída de Luis Figo para o Real Madrid após anos de serviço ao Barcelona ou, se quisermos um exemplo mais “caseiro”, a ida de João Moutinho para o FC Porto depois de ter sido formado, lançado e estimado no Sporting CP. A ira dos adeptos atingiu pontos extremos, com ameaças físicas, humilhações públicas e uma tentativa de esventrar o passado desses jogadores nesses clubes, com uma parte dos adeptos a bafejar aquela conjugação de palavras típicas “não tens amor à camisola, mercenário/vendido/ingrato”, entre outros conceitos mais ofensivos.

A verdade é que nestes casos em específico ambos os jogadores foram dados como transferíveis, apesar de Joan Gaspart tentar constantemente dizer que Luís Figo traiu o clube, negociou às “escondidas” e que foi empurrado pelo empresário – na altura José Veiga – quando na verdade se deu alguma incompreensão de ambos os lados, seja pelo facto do Barcelona ter “rejeitado” negociar o contrato do extremo português – teriam de “recomprar” o passe de Figo, que significava pagar 20M€ – ou pela forma amadora como o presidente dos blaugrana à época negociou com a equipa de empresários de um dos melhores jogadores na altura. Se em certas ocasiões os clubes podem ter razões de queixa da postura negocial dos empresários e até jogadores, a verdade é que na maioria das situações são os clubes, em específico as direcções, a criar uma situação nociva e negativa que trazem problemas para cima da “mesa”.

Figo é acusado de uma das maiores traições da História do futebol (Foto: UEFA.com)

O caso de Adriano, ex-avançado brasileiro que passou pelo futebol português, com o FC Porto é demonstrativo de como os clubes podem forçar um cenário quase dantesco para quem vive de jogar futebol: conquistou um lugar nos dragões entre 2004 e 2008, só que no Verão de 2008 foi vítima de uma lesão e de um diferendo com a direcção do clube – havia necessidade de renegociar um novo contrato, pois Adriano não aceitou nenhum dos hipotéticos cenários de saída “forçados” pela SAD – e acabou colocado a treinar sozinho e à parte do grupo de trabalho durante um ano inteiro, prejudicando seriamente a sua carreira enquanto atleta de alto nível.

Como Adriano, outros jogadores sofreram do mesmo problema como Rubén Amorim (SL Benfica), Uchebo (FC Boavista), Jorge Fucile (FC Porto), Jefferson (Sporting CP), etc, caindo então numa situação precária e problemática, com os clubes a tentarem criar uma cortina de fumo para divergir atenções no sentido de que tinham sido os atletas a criar este problema.

Não há dúvidas que uma gama de clubes que tratam os jogadores profissionais ou semi-profissionais como se tratassem de mercadoria, mostrando pouco interesse nos atletas como indivíduos com direitos próprios, só vendo o seu valor enquanto atletas profissionais que têm de se subjugar com qualquer regras impostas nesse dado emblema, como se viu no caso do Olympiakos (Evangelos Marinakis aplicou multas elevadíssimas aos jogadores e decretou que estavam oficialmente de férias em 2018), Steaua de Bucareste (as histórias de Gigi Becali repetem-se ano após ano), União da Madeira (em 2019 alguns jogadores foram despejados dos apartamentos onde estavam, devido a uma guerra entre direcção do emblema madeirense), entre outros casos.

A maior parte dos jogadores profissionais de futebol vive sob o jugo das direcções dos seus clubes… só uma pequena parte dos atletas de alto nível tem uma proteção total em termos de direitos – alguns excedem o exequível e acabam até por ser antagonistas na forma como lidam com os seus emblemas -, com a larga maioria a guerrear diariamente pelas boas graças de quem detém o seu passe e contrato de trabalho. É difícil os jogadores estarem para sempre ligados a um clube, quando as ameaças de fim abrupto ou de um tratamento precário é uma realidade possível, não esquecendo que quando a época não corre bem, são os próprios adeptos a exigir a saída de um dado jogador que a nível de forma não esteja tão bem, exigindo por outro lado que se mantenham leais ao projecto enquanto servem as cores do seu clube… ou seja, um paradoxo sem sentido.

Não esquecer que em diversas ocasiões as direções de clubes tentam impor um contrato diferente a um jogador que está quase a terminar a sua relação contratual com esse emblema, e quando este recusa-se a negociar por X valor acaba preterido das escolhas e arremessado para um “canto” ou catalogado como um mercenário e alguém que não está disposto a ceder tudo na sua vida para ajudar o clube pelo qual representa.

TREINADORES QUE LIMITAM O “AMOR”

Nos problemas de um atleta manter-se ligado para “sempre” a um clube – ou durante largos anos – há outro dado que entra em jogo: os treinadores. Se um treinador não aprecia as qualidades futebolísticas de um atleta acabará por colocá-lo num patamar inferior de importância, podendo até cair num vazio de época sem minutos, o que implica logo uma queda na sua valorização e na sua capacidade física e técnica. Julen Lopetegui foi um dos últimos casos desse problema no FC Porto, já que o treinador não apreciava as qualidades de Ricardo Quaresma, seja como jogador ou de um dos líderes do balneário, forçando a saída do extremo português do FC Porto, quando o próprio estaria disposto em continuar no emblema portuense.

A história de Quaresma não é diferente de muitos outros que caíram no mesmo problema e acabaram por ser postos de lado, em troca de um controlo efectivo do plantel por parte de um novo treinador que quer outros jogadores para se assumirem como referências, naquilo que pode ser entendido como a tentativa de começar uma nova Era dentro de um clube.

O mesmo aconteceu com Octávio Machado e Jorge Costa, ou OUTROS CASOS , impossibilitando assim que haja uma ligação duradoura entre os atletas profissionais e o clube X ou Y. Contudo, este problema pode ser compreendido como um não ataque ao Amor à Camisola, mas sim como uma situação normal de um profissional e a sua entidade de trabalho, perdoando os adeptos este tipo de saídas.

Não esquecer que existem aqueles casos de imposição de um jogador por parte da direcção a um treinador, forçando a uma situação complexa de gerir e que acarreta sérios problemas para os três lados, como aconteceu com João Cancelo no Manchester City. O lateral português foi transferido da Juventus para os citizens mas nunca foi realmente uma opção concreta do plano de Pep Guardiola, ficando vincado que é apenas um nome entre vários do clube inglês, aparecendo continuamente notícias da sua possível saída da Premier League já no próximo Verão.

São cenários evitáveis na verdade, mas é um dos problemas do futebol-negócio e da entrada em jogo dos super-empresários, empresas de agenciamento e outros mediadores que procuram o “lucro” da comissão, não sendo a segurança e saúde desportiva do jogador o primeiro foco durante a negociação.

O caso de quaresma é paradigmático dos problemas que um treinador pode causar (Foto: Tribuna Expresso)

Mas este cenário é um pormenor comum do futebol profissional ou de qualquer outra actividade desportiva e/ou económica, não deixando de criar pressão, tensão e problemas a quem se vê confrontado com o cenário de ter de mudar a sua vida em prol de manter o seu nível de vida – e da família – assegurado, limitando então talvez o sonho de permanecer num clube de forma segura. Os jogadores têm um prazo de validade curto em termos profissionais, começando aos 17 (maioria dos casos aos 18) e terminando na generalidade aos 34/35 anos, seguindo-se a fase de encontrar uma nova profissão dentro do futebol ou, como acontece com uma grande parte dos casos, adaptar-se à realidade e encontrar um novo ofício, o que obriga a aprendizagem, educação e formação numa idade em que uma larga parte das entidades empregadoras não vêem com bons olhos.

Por isso, será que o Amor à Camisola tantas vezes apregoado e suspirado pelos adeptos não será apenas uma criação ilusória aplicada a uma realidade que esses espectadores não compreendem? É possível aceitar que a profissão de jogador de futebol não é um hobby ou um cenário de vida idílico pois acarreta riscos e problemas tão profundos que impõe um constante stress perante uma carreira que tem a sua data limite imposta desde o primeiro dia que assumem um contrato profissional?

A verdade é que a nostalgia pulveriza um manto de paixão e de perfeccionismo que muitas vezes não revela as falhas e vicissitudes de então, levando ao público a sentir que o “antigamente” é que era “bom” e o “agora” é um negócio sem escrúpulos e sem respeito, onde jogadores e clubes aproveitam-se constantemente do amor que os adeptos têm pelo desporto quando a realidade não é assim tão linear como os vários casos apresentados demonstram.

Que existiram, existem e vão existir jogadores dedicados a um só clube ou que permaneçam no mesmo clube durante anos a fio como é o caso de Francesco Totti, Danielle de Rossi, Xavi, Iniesta, Jorge Costa, Frank Lampard, Bobby Charlton, entre diversos outros, isso é verdade, mas não podem ser tomados como o exemplo palatino do futebol, nem forçar que sejam o cenário “normal” do desporto quando na realidade a vida não permite que assim o seja.


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