Aquilo que não se quer no rugby: desumanidade e falta de desportivismo

Francisco IsaacSetembro 18, 201811min1

Aquilo que não se quer no rugby: desumanidade e falta de desportivismo

Francisco IsaacSetembro 18, 201811min1
Falta de desportivismo, caos, desumanidade, falta de valores são actos que não têm lugar no desporto e aquilo que não ser quer no rugby. Mas será que tem sido assim ultimamente?

OS ATAQUES AOS PROTAGONISTAS: RARIDADE OU COSTUME?

A 14 de Setembro de 2018, um adepto australiano em fúria devido à derrota dos Wallabies, lançou-se num frenético ataque de palavras e gestos para com Lukhan Tui, asa internacional australiano. Um ataque ignóbil tanto pela forma como foi feito (o adepto atropelou a irmã mais nova de Tui que caiu um par de escadas) como pela dimensão que tomou logo de seguida, com agarrões e ameaças.

Felizmente, a larga maioria dos adeptos que surgiram nas redes sociais apoiaram Tui deixando só um reparo: ter mais cuidado e cabeça quando lida com os adeptos, mesmo que alguns sejam do mais desagradável possível.

Contudo, esta situação levantou um problema que está cada vez mais presente no rugby: a falta de cultura desportiva (e em particular, a ausência desta quando se dão derrotas), a desumanidade para com o profissionalismo, a postura errada tanto na bancada como em casa e a falta de aceitação dos valores do desporto em geral.

O que aconteceu com Lukhan Tui foi um claro exemplo de como o rugby está a mudar ou, pior, já mudou para uma transformação que não se deseja por completo. Mas como aconteceu essa (des)evolução? E há fórmula de resolver alguns dos seus traços mais problemáticos?

A popularidade do rugby é bem maior hoje em dia do que em comparação ao que era há 10/20/30 anos atrás, tendo sofrido constantes alterações e expansões em todos os continentes. Mais popularidade levou a que fosse necessário aumentar o calendário anual de competições, com alguns atletas a alinharem em quase 50 jogos de rugby por ano contando com clubes e selecção, entregando-se por completo a uma das modalidades mais exigentes a nível físico e psicológico.

Mais jogos, mais minutos nas pernas, mais treinos, mais sacrifício implicou um profissionalismo geral em cerca de uma dezena ou mais de países, como Inglaterra (duas divisões pelo menos 100% profissionais), França (igual aos seus “vizinhos”), Austrália, África do Sul, Nova Zelândia, Japão, Argentina (uma parte é profissional enquanto outra vive entre o semi-profissionalismo e amadores), Geórgia, Rússia (uma boa parte dos jogadores russos estão entre o 100% profissional e 50%), Itália (Zebre e Treviso o são, mais umas formações do Eccellenza), Irlanda, Escócia, País de Gales ou parte dos Estados Unidos da América.

Causa e efeito, é um conceito que é facilmente aplicado ao rugby moderno, dotado de cada vez mais competições e campeões, de mais adeptos nas bancadas, com uma movimentação de fundos e dinheiro ímpar e nunca antes pensada. Hoje em dia assiste-se a uma “guerra” escondida entre World Rugby, SANZAAR (a entidade que gere o rugby do Hemisfério Sul, em particular o Super Rugby e Rugby Championship), Six Nations, EPCR, etc, existindo uma total discórdia na forma como se planeiam as competições, quem pode entrar nas mesmas, os preços, localizações, entre outras discussões que têm criado sérios problemas na modalidade.

A somar a isto, os problemas estruturais com o rugby amador estão a levar a uma crescente cisão dentro da modalidade, com várias críticas em Inglaterra e na Austrália a favor do Grass Roots Rugby, que tem sido tratado hoje em dia como “parente pobre” do rugby. Só isto serve para perceber que está a dar-se a uma intensificação de críticas e problemas internos, numa modalidade que está a ter claras dificuldades em crescer de uma forma positiva e responsável.

UMA DOENÇA DO DESPORTO MODERNO

Isto também se aplica aos adeptos que têm se entregado, por vezes, a um comportamento completamente contraditório aos valores não só do rugby, mas do desporto em geral. Alguns falam que isto é o vírus da “futebolização”, num claro apontar de dedo ao futebol e às suas hostes de adeptos… todavia, quando se alinha por este conceito para explicar os comportamentos negativos do público do rugby, está também a proceder-se pelo caminho errado.

O futebol não tem culpa de ter adeptos com posturas e comportamentos errados, é uma modalidade como qualquer outra que tem os seus casos de corrupção, as suas situações lamentáveis, mas também tem os seus aspectos positivos e importantes a nível de movimentação ou impacto social. Veja-se que é das poucas modalidades que tentou mesmo entrar em bairros desfavorecidos e trazer os seus jovens para o desporto, de forma a ajudá-los a desenvolver outras competências e futuro.

Por isso, o conceito de “futebolização” está errado. A designação correcta é, sem dúvida alguma, desumanidade, falta de desportivismo e ausência de valores. A situação de Tui não é nova e não é única… veja-se Ross Moriarty, o nº8 que na tour do País de Gales pela Argentina estrangulou um adversário e foi imediatamente atacado nas redes sociais por uma avalanche de “adeptos”. O galês não reagiu bem e respondeu directamente a quem tentava humilhá-lo em praça pública, sendo este um passo menos profissional por parte do ex-Gloucester Rugby.

Os adeptos e fãs sentem-se cada vez mais no direito de criticar os jogadores ou treinadores de uma forma agressiva e excessivamente exigente, não olhando para o ser humano que convive no mesmo corpo que esses profissionais do rugby. Tem se aguçado o ódio em diversos formatos e veja-se como foi tratada a vitória da África do Sul sobre a Nova Zelândia, ou o contrário… uma derrota dos All Blacks ante os Springboks.

A quantidade de adeptos a decalcar os kiwis foi inacreditável, usando todos os meios possíveis para destacar o resultado incrível, num jogo que foi verdadeiramente dominado pelos All Blacks (contra números e factos… não há argumentos) com uma África do Sul a aproveitar os erros do adversário para garantir os pontos suficientes. Festejou-se o grande jogo que foi mas também festejou-se a queda dos All Blacks como se fosse a melhor notícia para o Mundo do rugby, o que é no mínimo caricato.

Quando uma derrota é vista como um sinal positivo para uma modalidade é quando a própria está a caminhar para um direcção muito “negra”. Não é uma derrota de um gigante que vai dar esperança ao rugby, por mais que tenha sido uma vitória recheada de pormenores históricos, de uma emoção fantástica e de uma luta entre o acreditar e o dominar… infelizmente, este tipo de comportamento é cada vez mais observado numa modalidade que se dizia ser diferente.

Em outro ponto ainda dentro dos jogos, a cultura da análise, de tentar perceber o jogo está a ser substituída pela “compra” de informação barata, sem uma observação cuidada ou verdadeira, optando por “achar que se percebe o jogo” do que realmente tentar entender o que se passa dentro das linhas de campo.

É um momento delicado para a oval, que vê os seus jogadores atacados dentro e fora do relvado, os treinadores constantemente questionados, muitas vezes pelas razões erradas e sem fundo de verdade, com as instituições pouco preocupadas com o Tier 3/2 ou os níveis amadores para estarem mais focadas em tirar altos rendimentos do jogo, preocupando-se quase exclusivamente com a “nata” da modalidade.

Os constantes maus exemplos têm se alastrado e as questões de fundo estão a ser atiradas para uma zona de esquecimento, como aconteceu, por exemplo, com o Portugal-Japão de sub-20 em 2017. O jogo terminou bem antes do tempo, decisão do comissário de jogo… a World Rugby nunca apresentou uma resposta séria e concreta ao que se passou, apressando-se a festejar a subida dos japoneses ao escalão máximo dos sub-20, como se fosse o desfecho desejado… até porque o próximo Mundial de rubgy sénior será em terras nipónicas.

WORLD RUGBY OU SÓ UMA PARTE DO MUNDO DO RUGBY?

Os interesses, que tantas vezes são criticados em outras modalidades, estão a tomar o controlo do Planeta da Oval mais rápido do muitos pensavam, ditando não só regras, mas também futuros de outras nações, ou, melhor, o não-desenvolvimento apoiado e sustentado de países que têm tudo para ser revelação no cenário mundial. Os problemas estruturais e financeiros que assolaram e assolam as federações da Samoa, Fiji, Quénia são claras demonstrações que a World Rugby está mais focada em expandir o jogo de uma forma desapoiada e que lança sérios problemas no futuro.

Se a organização que rege o Mundo do rugby tem claros problemas em fazer valer os valores da modalidade, como é que as restantes federações vão seguir o exemplo? E se as federações, por vezes, demonstram um comportamento estranho ou contraditório em algumas decisões que tomam como é que os adeptos vão ser responsáveis nos maus momentos?

Há uma crescente preocupação com o Rugby Negócio, com a possibilidade da modalidade descaracterizar-se das suas premissas originais, inteiramente focada na promoção do negócio e exponencial crescimento das marcas, algo que pode tornar azedo esta revolução dentro da oval. Não há problema com o profissionalismo, com o negócio, com os milhões… desde que estes passos todos sejam tomados de uma forma ponderada, responsável e com base numa boa reflexão interna.

Alguns poderiam apresentar o caso do Top14 como um exemplo primordial desta situação, ao ponto que “matou” com o rugby champagne dos Les Bleus, devido às enchentes de estrangeiros nos campeonatos nacionais franceses, potenciando mais não-franceses do que os nativos. Todavia, esta visão poderá estar errada tanto nas suas bases, como na análise e conclusão.

Os problemas da selecção francesa não advêm exclusivamente ou principalmente dos estrangeiros, advêm sim da irresponsabilidade federativa e dos seleccionadores e treinadores de camadas jovens que não foram os melhores durante anos a fio. Propagou-se a abertura de uma situação de compadrio e não de excelência, levando a que vários jovens atingissem o nível sénior sem a preparação necessária. Natural que os treinadores dos clubes do Top14 ou PROD2 sentissem dificuldades em lançar atletas que não estavam preparados para as exigências do campeonato, não na questão física mas sim técnica e táctica.

Hoje em dia, a selecção sub-20 da França é campeã Mundial pela 2ª vez na sua História muito pelo trabalho feito tanto nos clubes como pelos formadores e seleccionadores nacionais que subiram a parada em termos de conhecimento e trabalho. Porém, logo de seguida à conquista ouviram-se as primeiras críticas falsas e vazias, do género “agora não vão jogar mais porque a liga francesa é só estrangeiros”, apostando mais uma vez ir atrás do mais fácil em termos de análise.

A crescente desumanidade e falta de desportivismo é um mal real de uma modalidade que está a atravessar por um momento tão delicado que Augustín Pichot, vice-presidente da World Rugby, avisou que o rugby como conhecemos pode ruir após 2019. Os adeptos têm de fazer a parte deles, de apoiar e criticar com fundamentos longe de extremismos e fanatismos, de não partirem para o ataque barato e falso nas redes sociais, abraçando os atletas por aquilo que são: humanos.

Igualmente os clubes e federações têm de pensar nos seus adeptos, não descaracterizando a modalidade ao ponto que as suas massas deixem de os acompanhar, como aconteceu com a franquia neozelandesa dos Blues (passou de 95% de casa cheia para 50% em menos de 7 anos). O ponto de ruptura pode estar mais perto do que se pensa e a falta de acção e reflexão poderá levar a modalidade a passar pela sua primeira grande crise… será temporária ou permanente?

Foto: Twitter

One comment

  • Virgilio Neto VIRGA

    Outubro 20, 2018 at 8:47 pm

    Excelente! Parabéns Isaac pelo belíssimo texto. Partilho do que foi escrito.

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