A concussão cerebral no kickboxing

Fair PlayAgosto 5, 20189min0

A concussão cerebral no kickboxing

Fair PlayAgosto 5, 20189min0
O desporto de contacto tem alguns riscos, sendo que a concussão se destaca pela sua gravidade a longo prazo. Como detectar? E o que fazer?

O presente artigo é da autoria de Gonçalo Barradas, Pós Graduado em Medicina Desportiva, e de Pedro Barradas, Médico Ortopedista responsável pela consulta de Traumatologia Desportiva do Centro de Medicina de Lisboa.

Introdução

O Kickboxing é um desporto de elevado risco para traumatismo craniano, podendo originar o aparecimento de diversos tipos de lesão cerebral, focal ou difusa, as quais condicionam o desenvolvimento de quadros clínicos diversos. Podemos classificar os traumatismos em 3 graus: ligeiros, moderados e graves. Para esta classificação utiliza-se a Escala de Glasgow (EG), em que se considera grave um doente com EG entre 3 e 8, moderado entre 9 e 13 e ligeiro entre 14 e 15.

O diagnóstico de concussão cerebral feito durante um combate pode ser extremamente difícil.

Definição

A concussão é definida como um processo fisiopatológico complexo que afecta o cérebro, sendo desencadeado por forças biomecânicas de origem traumática.

Pode ser provocada por impacto direto na cabeça, na face, no pescoço ou noutro local do corpo, porém com a propagação do impulso à cabeça, resultando numa alteração da função neurológica de instalação rápida, de curta duração e resolução espontânea.

Salienta-se que pode existir lesão grave sem lesão externa visível, bem como lesão externa grave sem lesão grave no tecido cerebral.

Sinais e Sintomas

Manifesta-se por um conjunto de sinais e sintomas, que podem ou não incluir perda de consciência. Os mais comuns são:

  • Cefaleias (dores de cabeça)
  • Náuseas ou Vómitos
  • Visão dupla ou turva
  • Zumbido num ou ambos os ouvidos
  • Alterações do equilibrio
  • Confusão mental (Não saber aonde está; qual o round; contra quem está a lutar; …)
  • Perturbações amnésicas
  • Comportamento inadequado
  • Convulsão
  • Dificuldade de concentração

Diagnóstico

A maior parte dos sinais e sintomas não são específicos quando isolados, no entanto, o diagnóstico de concussão cerebral deverá ser sempre posto em causa num atleta que apresente algum destes após um trauma direto na cabeça.

Poderão não estar presentes em todos os casos, e às vezes, só aparecem numa fase mais avançada no tempo.

Se ainda ficarmos na dúvida, um exame de imagem deverá ser realizado. A TC serve para excluir lesão intracraneal e lesão cervical.

Alternativa: Nem sempre é preciso recorrer a exames. Por exemplo num traumatismo leve, sem complicações, perante uma avaliação médica experiente e adequada estes não são necessários

No entanto, em algumas situações os exames de imagem têm indicação urgente:

  • Fractura na cabeça
  • Deformidade na cabeça no local do trauma
  • Deterioração do estado de consciência após trauma
  • Sinais neurológicos focais
  • Confusão >30min
  • Perda de consciência >5min
  • Vómitos persistentes ou aumento das dores de cabeça
  • Presença de sangue ou líquido cefalorraquidiano no nariz ou ouvidos
  • Movimentos convulsionais
  • Mais de que uma concussão cerebral
  • Em todas as crianças com lesão na cabeça

O que fazer após diagnóstico?

Caso se suspeite de concussão cerebral, o combate deverá ser interrompido, retirando o atleta do ringue com os cuidados apropriados para a coluna cervical. De seguida, devem ser realizadas avaliações sistemáticas numa sala à parte/apropriada, incluindo via aérea, função respiratória, circulatória, coluna cervical, função cognitiva e neurológica. Todo o atleta inconsciente deverá ser transportado para o hospital, mantendo proteção da cervical até que exclusão de lesão da mesma.

Quando o diagnóstico for óbvio, o atleta deverá ser assistido medicamente e ser vigiado regularmente à procura de sinais de deterioração ou de alerta que nos levam a alguma lesão cerebral (muito importante as primeiras 24 a 48h).

Quando o diagnóstico não é certo e ficamos com algumas dúvidas, um protocolo deverá ser aplicado.

Este consiste na revisão de:

  • Check list de sintomas
  • Avaliações das funções cognitivas e neurológicas
  • Testes de equilíbrio

Após o diagnóstico de concussão cerebral vem a típica pergunta e preocupação do atleta/treinador – Quando é que posso retomar os treinos e a competição?

Deixar voltar o atleta a treinar ou a competir é uma das decisões mais difíceis do médico. Não existe um tempo específico ou adequado fixo,  devendo ser individualizado para cada atleta. As guidelines recomendam que só poderá voltar aos treinos quando estiver totalmente recuperado de todos os sinais e sintomas relacionados com a concussão. Na dúvida e ainda com sintomas, não deverá treinar.

Até à recuperação total, o atleta deve descansar tanto fisicamente como psicologicamente (evitar ler, jogar jogos, computador, conduzir, etc.).  É ainda aconselhado a evitar o consumo de álcool , a utilização de analgésicos, anti-inflamatórios e sedativos, pois estes podem exacerbar os sintomas bem como atrasar a recuperação ou mascarar a deterioração.

Com a regressão dos sintomas poderá voltar aos treinos de uma forma gradual, sob vigilância para eventual recorrência de sintomas, iniciando um programa de reabilitação que comece com exercícios aeróbios ligeiros, seguido de exercícios relacionados com o desporto em causa, treino específico sem contacto físico, prática da modalidade sem restrições e, finalmente, retoma completa. Para passar a cada uma das fases seguintes é necessário que o atleta se mantenha completamente assintomático em cada uma delas.

O processo leva habitualmente cerca de uma semana a completar-se, pelo que este é normalmente o intervalo de tempo em que o atleta não deve ser autorizado a realizar a sua atividade desportiva. No entanto, podem existir algumas exceções.

Apenas aqueles com concussões leves poderão voltar ao combate no próprio dia, sendo que este decisão se recomenda apenas para atletas de alta competição profissional e com assistência medica no local. Os atletas mais jovens devem ser tratados com maior prudência, dado que podem apresentar menor tolerância cerebral à concussão .

Riscos relacionados com retorno demasiado precoce aos treinos e/ou competição:

  • Aumento do risco de lesão
  • Síndrome de 2º impacto
  • Convulsões
  • Prolongamento dos sintomas
  • Encefalopatia traumática crónica
  • Problemas mentais (ex.: depressão)

Contudo, uma grande percentagem dos atletas não reportam os sintomas após o trauma, altura em que perigo de morte súbita após outro trauma na cabeça deve ser preocupação.

Geralmente não ocorre lesão estrutural. Entre 80 a 90% das concussões cerebrais resolvem em 7 a 10 dias, podendo o período ser mais longo e mais grave nas crianças e nos adolescentes dado que o cérebro é mais vulnerável.

O diagnóstico imediato é difícil, não só pela presença de sinais e sintomas inespecíficos, como pela manutenção de um discurso aparentemente normal por parte do atleta (o que não exclui uma lesão cerebral) e pela ausência frequente de perda de consciência.

Por outro lado, o contexto em que ocorre dificulta a atuação e decisão médica. Normalmente devido às pressões relacionadas com a contagem do árbitro, a vontade do atleta em querer voltar ao combate, do treinador e por vezes das “câmaras de televisão”, avalia-se o atleta muito rápido, tomando uma decisão em poucos segundos. No entanto, uma lesão cerebral (hematoma subdural) pode levar algum tempo até os sintomas se instalarem, dificultando a decisão.

O efeito cumulativo

A existência de concussões repetidas pode provocar lesões cumulativas no cérebro, que se podem manifestar após forças de impacto de menor dimensão. Para além disso os sintomas podem permanecer durante mais tempo e, eventualmente condicionar o desenvolvimento de quadros demenciais.

Existe alguma evidência de maior vulnerabilidade para quadros demenciais nos sujeitos com múltiplas concussões.

Um outro quadro pouco conhecido, mas potencialmente fatal, denominado de síndrome do 2º impacto, acontece no atleta que continua a lutar após ter sofrido uma primeira concussão. Durante o combate um segundo traumatismo cerebral, que pode até ser discreto, desencadeia um quadro em que normalmente o atleta não perde a consciência de imediato, fica atordoado e, uns segundos ou minutos depois desmaia, podendo entrar rapidamente em coma e morrer de seguida.

Alguns factores que influenciam a gravidade da concussão cerebral:

Sintomas Número, duração (>10dias) e intensidade
Sinais Perda de conhecimento prolongada (>1min), amnésia
Sequelas Convulsões
Perfil Temporal Frequência, intervalo entre episódios, proximidade do último episódio
Limiar Repetidas, com menor força de impacto e recuperação mais prolongada
Idade Crianças e adolescentes (<18 anos)
Co-morbilidades Depressão, hiperatividade, perturbações de sono
Medicação Terapêutica psiquiátrica, anticoagulantes

O kickboxing é um exemplo de desporto em que a intenção do combate consiste em provocar concussão cerebral no adversário para o levar à perda de consciência.

Não só os médicos como outros profissionais, treinadores e pais (que muitas vezes são os únicos presentes), devem ter conhecimentos para reconhecer a concussão de modo a poder prevenir uma lesão futura ou mesmo a morte do atleta.

Foto: Getty Images

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