Tour de France 2020: Um Jovem para a História

Fair PlaySetembro 21, 202014min0

Tour de France 2020: Um Jovem para a História

Fair PlaySetembro 21, 202014min0
Chegou ao fim mais um Tour de France, este com direito a reviravolta épica perto do final. Estas são as surpresas, confirmações e desilusões da prova rainha do ciclismo para os editores Diogo Pisco e Gonçalo Melo.

5 Surpresas

1. Tadej Pogačar: “Un uomo solo al comando”: Foi a frase proferida por Mario Ferretti, em 1949, ao ver uma das maiores estrelas de sempre do ciclismo mundial, Fausto Coppi, fazer algo completamente inacreditável, 192 kms sozinho numa vitória épica. Esta foi a frase que ecoou na minha cabeça ao ver o contra-relógio de um jovem de 21 anos de idade que esmagou os melhores ciclistas da atualidade. Recordei então como na etapa 4 descartou todos os restantes favoritos sendo o único capaz de rivalizar com o super favorito Primoz Roglic (Team Jumbo – Visma). Logo aí se viu que aquele atleta tinha muita ambição para esta prova. Recordei também a sua cara, quando na etapa 6 não esperou que ninguém fizesse o seu trabalho e puxou mais que todos afim de perder apenas 1 minuto e 21 segundos, assumindo no fim do dia que tudo se mantinha igual e que tinha de trabalhar para ultrapassar o azar que lhe sucedera. Sem desculpas ou lamentos, sem se conformar. Tal e qual fez, logo no dia seguinte, onde partiu sozinho à procura de recuperar o tempo perdido no dia anterior.

Recuperou 40 segundos, 40 segundos que no final se poderia dar ao luxo de deitar fora e ainda assim ficar em 1º lugar. Destaque tambem para a sua cara sem medo a atacar o líder da competição, mesmo sem ter uma grande equipa, sem 2 ou 3 colegas à sua frente ou ao seu lado e com uma equipa reduzida a 6 elementos. Uma cara que queria mais, que queria ganhar etapas como fez na etapa 9, na etapa 15 e viria a fazer naquele dia na etapa 20. Um homem que não se preocupou com quem eram os adversários, que não se preocupou em que lugar estava e qual era a sua posição, não se preocupou com os azares que teve, não se preocupou com os seus pontos fracos ou com as desculpas que poderia ter para se acomodar a um 2º lugar que já seria um enorme feito para ele.

E assim se transformou num homem, num atleta de topo, num grande campeão. Sem qualquer desprestigio para ninguém se assumirmos que o fez sozinho, sendo certo que teve toda a ajuda possível da sua equipa, mas foi ele, foi Tadej Pogačar que teve sucessivamente estas atitudes ao longo de 3 semanas que o levaram ao dia do confronto final, onde ele próprio, sozinho em cima de uma bicicleta, pedalou para fazer uma das reviravoltas mais fantásticas do desporto e vencer o Tour de France 2020. “Un uomo solo al comando” é tudo o que se pode dizer.

Tadej Pogacar, 21, set to become youngest Tour de France champ, post-WWII | CBC Sports
Uma atuação lendária de Pogacar, que fica para a posteridade

2. Wout Van Aert (Team Jumbo Visma): Ninguém se surpreende ao comprovar que Wout Van Aert é um grande ciclista. Mas não deixa de ser surpreendente quando vimos um campeão abdicar do seu prestigio e da sua glória em prol do objetivo geral da equipa e do objetivo individual de um colega. Van Aert poderia simplesmente ter focado a sua atenção na luta pela classificação por pontos, ou na luta por mais etapas, mas não o fez.

Um atleta de grande caracter que deu tudo pelo seu líder e que surpreendeu com a sua qualidade polivalente capaz de subir com os melhores, vencer os melhores ao sprint e estar entre os melhores contra-relogistas. Não para de surpreender e não há palavras descrever este ciclista.

3. Richie Porte (Trek-Segafredo): Pode ser estranho colocar o australiano de 35 anos entre as surpresas, mas foi preciso chegar à sua 10ª participação na prova francesa para conseguir o tão almejado pódio, o resultado de uma carreira. O elemento da Trek habituou-nos a baixar as expetativas depois de vários abandonos devido a quedas e resultados menos positivos por baixas de forma (mesmo este ano um furo comprometedor ameaçou a luta pelo pódio), mas este ano Richie estava num nível soberbo, capaz de atacar e de acompanhar os melhores na montanha, e no seu último Tour pela equipa norte-americana, pôde finalmente sorrir depois de um grande contra-relógio onde fez o terceiro melhor tempo.

Um resultado que coloca um sorriso na cara de todos os fãs de ciclismo.

4. Team Sunweb: Chegaram ao Tour sem um grande líder para a geral. Sem um grande plano, sendo que definiram o seu objetivo em torno da luta pela vitória em etapas. Com um lote muito interessante e recheado de muito bons ciclistas, esta equipa estava longe de estar cotada com uma das melhores presentes neste Tour, sendo que não se esperava grandes conquistas da sua parte. Uma das equipas, se não a equipa, surpresa da prova.

Venceram 3 etapas, duas com Søren Kragh Andersen, uma com Marc Hirschi, que também deu à equipa o prémio de mais combativo da prova, lutou pelas etapas com chegada ao sprint com Cees Bol, e foi sempre uma equipa muito ativa nas fugas do dia. Uma agradável surpresa de uma equipa que sem ter um grande objetivo deu muito espetáculo ao longo de três semanas.

Commentary: Why I'm all in for Team Sunweb at the 2020 Tour de France – VeloNews.com
Os meninos da super Sunweb, que fizeram a diferença neste Tour

5. Organização do Tour de France: Todos duvidaram a certa altura se a ideia da bolha higiénica era o suficiente para que a organização do Tour conseguisse levar a prova até ao fim. A cada dia de teste, a cada subida com um maior aglomerado, a cada partida e a cada chegada, essa dúvida ia acompanhando a caravana até à chegada a Paris.

É surpreendente que tudo tenha corrido pelo melhor e que a organização tenha conseguido limitar os contágios dentro do enorme número de pessoas que envolve um evento como estes. Sem dúvida que estão de parabéns.

5 Confirmações

1. Primoz Roglic (Team Jumbo Visma): Perdeu o Tour de France 2020 da maneira que ninguém imaginava ser possível. É certo que é algo mau. Mas também é certo que foi o grande dominador da prova. Confirmou o grande ciclista que é e que tem a qualidade necessária para vencer o Tour. Teve um grande adversário e certamente aprendeu que as corridas são mesmo assim, só acabam no depois de passada a meta na última etapa.

Todas as oportunidades devem ser aproveitadas para distanciar os nosso adversárias, por mais fortes ou confiantes que possamos estar para o que falta até ao final. Roglic confirmou que é um excelente trepador, que sabe assumir uma corrida, que é um ótimo rolador e que tem uma colocação excelente no pelotão. Esteve uns furos abaixo do seu normal no contra-relógio, fazendo uma excelente prova, mas até nesse dia confirmou que é humano e que também quebra. Terá de retirar as conclusões necessárias para crescer e evoluir, mas sem dúvida que o esloveno foi uma das grandes confirmações deste Tour.

Five talking points from stage 20 of the Tour de France 2020 - Cycling Weekly
Roglic caiu com estrondo, apesar de ter liderado a prova durante muito tempo

2. Sam Bennett (Deceuninck – Quick Step): Confirmou que é um grande sprinter e um grande ciclista. Rivalizou com o recordista de vitórias na classificação por pontos (camisola verde), vencendo o próprio Peter Sagan numa das lutas mais emocionantes do Tour de France 2020. Conseguiu resistir a todos os ataques feitos pelas equipas rivais com o objetivo de o deixar para trás nas montanhas e chegou à última etapa com capacidade física de vencer na chegada aos Campos Elisios, em Paris.

Uma vitória de resposta àqueles que noutras equipas o remeteram para posições secundárias, quando o próprio provou ter capacidade para fazer mais e melhor (na Bora foi sempre opção de recurso atrás de Peter Sagan e Pascal Ackermann). Bennett dissipou qualquer dúvida que houvesse quanto à sua qualidade como atleta.

Tribuna Expresso | Sam Bennett vence em Paris, no dia da consagração de Tadej Pogacar
Bennett a vencer de verde nos Campos Elísios

3. Enric Mas (Movistar Team): Um jovem talentoso que andava afastado das suas melhores prestações. A sua melhor forma parecia andar longe e isso levou a que os adeptos duvidassem se o espanhol que este ano se transferiu para a equipa espanhola a fim de assumir a liderança, tinha capacidade para andar com os melhores na maior prova por etapas do mundo.

O espanhol que entrou uns furos abaixo dos adversários, foi crescendo de forma e confirmou todo o seu potencial terminando em 5º lugar da geral com uma concisa e afirmativa posição dentro do Top 10. Acabou por limpar a imagem de uma equipa que outrora lutava pela vitória do Tour, mas que este ano esteve sempre muito longe desse patamar. Neste Tour, Enric Mas mostra à equipa, e a todos, que terão de apostar nele para o ano, sendo que no mínimo terá de lutar pelo pódio.

4. Tom Dumoulin (Jumbo-Visma): Depois de um ano parado devido a lesão, poucos esperavam ver o holandês a este nível nesta fase. O ex-Sunweb foi um dos principais aliados de Roglic na montanha, fartou-se de trabalhar para a equipa, e não fosse essa função de gregário, talvez o vencedor do Giro de 2017 pudesse ter conseguido um assalto ao pódio.

Ainda assim, mesmo a trabalhar para Roglic, Dumoulin conseguiu fechar em sétimo na geral, e não fosse o contra-relógio utópico de Pogacar, teria arrecadado a penúltima etapa. Curiosidade para ver o holandês de 29 anos na Vuelta, ele que será certamente um dos favoritos à vitória.

I came with the goal of winning the Tour, but that disappeared' - Tom Dumoulin on sacrificing his chances for the team - Cycling Weekly
Dumoulin fechou em 7º, e vai agora atacar a vitória na Vuelta

5. Miguel Ángel López (Astana): É certo que o contra-relógio foi penoso e castigador para o colombiano, que caiu de 3º para 6º na geral, mas há que dar mérito pela postura do líder da Astana. Em estreia no Tour, o Superman foi sempre dos mais inconformados do grupo de lideres, tentando diversas vezes agitar a corrida, tendo sido coroado com a vitória na etapa rainha deste Tour, na chegada ao Col de La Loze, com um ataque brutal que deixou todos os favoritos para trás.

Com apenas 26 anos, podemos esperar mais anos de espétaculo dado pelo colombiano da equipa cazaque, ele que já tem pódios finais no Giro e na Vuelta, ambos em 2018.

5 desilusões

1. Team Jumbo-Visma: a desilusão nem sempre tem de ser uma observação negativa ou destrutiva e este foi o caso da Jumbo no Tour de France 2020. Não sendo surpresa para ninguém, confirmaram ser a equipa mais forte da corrida, à imagem do que tinham mostrado nas provas que antecederam a mesma. No fim a desilusão é geral, ao ver uma equipa que tanto trabalhou e que assumiu a responsabilidade do pelotão desde o primeiro dia de prova. Talvez, esse tenha sido um dos pontos que levou a equipa a falhar o objetivo de vencer o Tour.

Assumiram a frente do pelotão em dias e momentos da corrida em que podiam ter poupado os seus homens, para que pudessem fazer maiores diferenças na ultima semana. A força da superioridade numérica não chegou para a irreverência de um miúdo que que não se conformou até chegar á camisola amarela.

2. Egan Bernal e a INEOS Granadier: Bernal era um dos principais favoritos à vitória, e só esse dado é suficiente para o colocar nas grandes desilusões. Uma volta a França falhada para o colombiano de 23 anos, que acabou mesmo por abandonar, e também para equipa, pois nem a etapa conquistada pelo polaco Michal Kwiatkowski atenuou o fracasso.

Richard Carapaz ainda andou em fuga alguns dias, à procura da etapa e da camisola da montanha, que acabou por perder para o super Pogacar. Que falta fizeram Froome e Thomas…

Defending champion Egan Bernal withdraws from Tour de France
Bernal a quebrar fisicamente sob o olhar atento de Kwiatkowski

3. Peter Sagan (BORA – Hansgrohe): o homem que venceu 8 vezes a classificação por pontos foi finalmente derrotado. Uma desilusão para o atleta que tentou por várias vezes descartar o seu maior oponente nesta luta, Sam Bennett, mas Sagan esteve muitos pontos abaixo do que habituou os adeptos.

Para além de nunca ter conseguido rivalizar diretamente com os adversários nas chegadas que supostamente lhe eram mais favoráveis, o homem que já foi três vezes campeão do mundo acabou desclassificado, por conduta anti-desportiva e sprint ilegal, na única etapa em que esteve perto de vencer. Sagan foi uma das grandes desilusões do Tour de France de 2020.

4. Thibaut Pinot (Groupama FDJ): Novo Tour, novo fracasso para Pinot. Depois de no ano passado ter abandonado por lesão já perto do fim, numa altura em que parecia ter tudo para dar luta a Thomas e Bernal, este ano o francês de 30 anos nem chegou a entrar na disputa, pois à partida para a 10ª etapa já estava a quase 9 minutos e meio do camisola amarela depois de um dia péssimo ma chegada a Laruns.

29º na geral final, o líder da Groupama deve agora focar-se na Vuelta. Conseguirá alguma vez vencer uma grande volta?

5. Nairo Quintana (Árkea Samsic)) e Emanuel Buchmann (Bora Hansgrohe) : outrora principal rival de Chris Froome na luta pelo Tour, o colombiano de 30 anos voltou a desiludir. Depois de iniciar a época em grande, com vitórias no Tour de La Provence e no Tour des Alpes Maritimes et du Var, e ainda uma excelente participação no Paris-Nice, parecia que estava de volta o velho Quintana.

Estávamos, infelizmente, errados. O colombiano fechou a geral apenas em 17º lugar, nunca conseguindo acompanhar os favoritos na montanha, e ficando inclusive atrás do seu companheiro de equipa Warren Barguil. Afinal, parece que o problema não estava na Movistar.

Quanto a Buchmann, depois do soberbo 4º lugar na edição do ano passado, tudo apontava para mais uma luta pelo top 10 daquele que é o grande nome alemão da atualidade no que diz respeito a provas de 3 semanas. No entanto, o líder da Bora nunca conseguiu acompanhar os principais favoritos, perdendo demasiado tempo nas etapas 9 e 13 para o top 10.

Na geral, conseguiu apenas um fraco 38º lugar, ficando inclusive atrás do companheiro de equipa e compatriota Lennard Kamna.

Nairo Quintana - Player Profile - Cycling - Eurosport
Quintana voltou a desiludir, ficando inclusive fora do top 10

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