O Mundial masculino pela ótica do basquete feminino

Lucas PachecoSetembro 18, 20237min0

O Mundial masculino pela ótica do basquete feminino

Lucas PachecoSetembro 18, 20237min0
Lucas Pacheco olha para o Mundial masculino pela ótica do basquete feminino, levantando várias questões importantes

Dois irmãos, com poucos anos de diferença etária, iniciam-se no esporte e acabam optando pela modalidade da mãe, o basquete. Crescem no mesmo ambiente, com formação similar e apoio igualitário pelos pais. O basquete possui a facilidade de ter uma estrutura mínima onde bastam dois jogadores para haver um confronto, um jogo, uma disputa. No Brasil, o famoso 21 encarna essa estrutura como poucas.

Não à toa são comuns os relatos de jogadores com irmãos, em duelos míticos no quintal do bairro, numa quadra improvisada. No Mundial masculino, recém encerrado com título alemão, várias duplas, seja os irmãos Wagner, essenciais para a conquista, seja os dois pares da Letônia, seleção sensação do torneio. A disputa fraterna fomenta o estágio inicial de formação, nos fundamentos e na mentalidade; porém, a rivalidade (contraparte da evolução e formação) não se restringe a irmãos do mesmo gênero.

Cheryl e Reegie Miller talvez seja o caso mais conhecido, inclusive por conta da precocidade do trash talk, exercitado com o próprio irmão.

A diferença entre os irmãos Miller foi acontecer a partir da universidade, última etapa à epoca (anos 80) de basquete organizado nos Estados Unidos. Enquanto o irmão trilhou carreira na NBA e se consolidou como um dos melhores chutadores da história, a irmã sofreu uma séria contusão que, conjugada à falta de perspectiva profissional, causou a aposentadoria precoce de Cheryl. A título de comparação: enquanto Cheryl liderou sua universidade a dois títulos nacionais, seu irmão não teve a mesma experiência.

Algum apressado poderia argumentar que isso aconteceu nos longínquos anos 80, que a diferença de oportunidades a homens e mulheres diminuiu com o advento da WNBA. Basta olhar as redes sociais das jogadoras atuais, cobrando voos privativos, maiores salários e calendário, expansão da liga (condições a muito conquistadas pelos jogadores da NBA) para desmentir a falácia.

Não nos restrinjamos aos EUA; no Brasil, ali por volta dos anos 90 (sou testemunha viva), uma geração de fãs do basquete foi formada com o protagonismo da seleção feminina, catapultada por uma liga interna, rivalidade acirrada e muita qualidade técnica. Oscar mantinha a seleção masculina nos principais torneios; Paula e Hortência conquistavam o Mundial e a prata olímpica. O ala permaneceu solitário, ao mesmo tempo em que a dupla feminina encontrava uma profusão de talento e pavimentava o caminho rumo a mais conquistas.

Novo corte temporal para a atualidade; os indícios de proeminência feminina no basquete brasileiro, dos anos 90, não duraram e o cenário do feminino beira o amadorismo. Curiosamente, após gestões desastradas da confederação, que culminaram na suspensão do Brasil de campeonatos internacionais, a recuperação do naipe masculina está muito mais avançada que do feminino. As dívidas e ausência de dinheiro, argumento usado à exaustão pela CBB, não se replica ao masculino (até pagamento de convite para mundial teve). Para fornecer condições às mulheres, o mínimo.

Família Soares (Foto: arquivo pessoal)
Família Soares (Foto: arquivo pessoal)

Voltemos aos irmãos do início do texto. Com formação inicial no Brasil, após a universidade nos Estados Unidos, cada irmão tomou um rumo diferente. Um deles, mais novo, foi draftado na 4ª posição de sua classe; o mais velho passou incólume. A dupla pertence à família Soares e a prole seguiu a profissão da mãe, a norte-americana Susan Anderson, com passagem por Santo André. A idade de Stephanie (23 anos) não permite uma comparação com seu irmão Tim (26); ela iniciaria sua carreira na WNBA se não tivesse sofrido uma grave contusão. Seu irmão possui uma carreira mundo afora, com alguns anos no currículo.

No seio da mesma família, a desigualdade volta a afundar o poço entre os gêneros. Não há dúvidas quanto ao maior potencial entre os irmãos – Stephanie foi escolha de loteria na WNBA e sedimentou-se como peça chave para a seleção adulta. Ela é olhada e prospectada desde muito cedo, enquanto seu irmão Tim passou despercebido no draft da NBA e constrói sua trajetória em centros menores do basquete mundial.

Entretanto, Tim acabou de representar o Brasil no Mundial adulto, finalizando a campanha na 13ª colocação. Stephanie, mesmo com presença consolidada na seleção, segue sem uma grande competição. Esta desigualdade, produzida em um contetxo íntimo e muito similar, deve-se à disparidade gritante no investimento que a Fiba (federação internacional) oferta a homens e mulheres. O Mundial feminino, em 2022, contou com 12 seleções, redução em relação ao padrão de 16, visto no torneio anterior, em 2018; o masculino, com 32 seleções, ampliação em relação ao número da edição de 2014.

As mudanças no calendário foram promovidas pela FIBA e passaram com relativo silêncio do mundo do basquete. As alterações promoveram o naipe masculino enquanto reduziram o investimento e a promoção do feminino; questões organizacionais, burocráticas, que causam uma situação como a vivida na família Soares.

O esporte, como administrado pela FIBA, acaba por aprofundar as cisões, ao invés de promover a igualdade. Ao invés de oferecer oportunidades iguais a dois irmãos, criados no mesmo contexto, com os mesmos insumos e estímulos, a FIBA promove a desigualdade de gênero no basquete. Tim recebeu (com todo louvor) holofotes, teve seu rosto conhecido e comentado, suas habilidades e fundamentos dissecados; ao mesmo tempo em que sua irmã sequer acessou o torneio análogo para as mulheres, não ganhou repercussão e segue uma desconhecida ao grande público.

Se o Mundial masculino (ou Copa do Mundo, nome pomposo e aplicado somente à competição masculina) traz algo de positivo nesse assunto, é o investimento que a federação alemã faz no feminino. Suas seleções de base vem produzindo talentos individuais notáveis (Satou e Nyara Sabally, Leonie Fiebich, Geiselsoder etc), que chegaram na adulta e fizeram uma ótima campanha no europeu deste ano. Que ao menos como símbolo o título alemão no masculino traga alento e investimento ao basquete feminino.

Foto: FIBA

Em tempo: a vice-campeã Sérvia (sem Nikola Jokic) é outro país com seleção feminina forte. EUA e Canadá, quarta e terceira colocadas, chegaram às semis do Mundial Feminino de 2022. Às vezes, somos obrigados a relembrar o óbvio: trabalho bem feito das federações nacionais na base, na inciação e prática do esporte, traz resultados em qualquer naipe ou idade, afinal o esporte é um só.


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