A Sérvia em Belém: o que esperar
Diferente da Alemanha, seleção sem tradição no cenário mundial de basquete feminino, a Sérvia trará a Belém um respeitável currículo. Ainda sob a bandeira iugoslava, a maior conquista remete ao Mundial de 1990, com a prata capitaneada pela excelente e lendária pivô Razija Mujanovic (nascida na Bósnia). A dissolução do bloco comunista causou a separação dos países dos Balcãs e a ascendente seleção iugoslava foi desfeita sem que a geração pudesse testar seus limites.
Demorou 26 anos para nova medalha em nível mundial, desta vez com a bandeira sérvia, com o bronze nos Jogos Olímpicos de 2016. Nem a ausência no Mundial de 2018 diminui os feitos sérvios, que assegurou ótima participação em Tóquio em 2021 (quarto lugar), além da presença no Mundial de 2022 (sexta posição). Em Belém, a Sérvia buscará sua terceira participação consecutiva em Olimpíadas.
Tóquio marcou o fim de uma geração que resgatou o basquete feminino sérvio do ostracismo. Uma geração, com Ana Dabovic, Sonja Vasic e Jelena Brooks de protagonistas, chegou ao fim e a renovação quedou incontornável; porém, a manutenção da técnica Marina Maljkovic manteve a identidade tática e tornou a passagem de bastão menos acidentada. A técnica estava a frente no surpreendente título europeu de 2015 e retornou à seleção para reconquistar o troféu em 2021.
Sem sombra de dúvida, o elenco atual possui menos talento individual, menos jogadoras decisivas capazes de definir jogos. Qualquer seleção no mundo sentiria falta das craques aposentadas; porém, o time manteve o padrão de jogo, característico do basquete europeu, de cadência, ritmo lento, poucos desperdícios e ótimos fundamentos. A prancheta de Maljkovic segue a mesma e a ênfase coletiva aprofundou-se ainda mais com a saída dos principais nomes da geração dourada sérvia.
Sem Vasic, sem Brooks, a responsabilidade recaiu sobre os ombros da armadora naturalizada Yvonne Anderson (33 anos e 1,75m). Ela é o início e o fim de tudo na seleção: além de conduzir o time ao ataque, é ela quem quebra as jogadas e produz a partir do drible, com infiltração e primeiro passo explosivo rumo ao aro. Absolutamente tudo passa por ela; em uma proposta de rodízio intenso e ajustes nos quintetos titulares e na rotação a cada jogo (9 jogadoras acima dos 15 min de média por jogo), a armadora teve 30 min de quadra, em média, no Eurobasket deste ano.
Sua importância em quadra reflete-se, ainda, no volume de arremessos – enquanto ela teve média de 13,6 arremessos tentados por partida, a segunda jogadora não ultrapassou a marca de 9 (Jovana Nogic, ala de 26 anos e 1,81m, com 8,7 arremessos por jogo). Anderson, além de cestinha, liderou a equipe em assistências e sua colaboração estende-se à parte defensiva, sendo a líder de roubos. Ela é a iniciadora das jogadas, agride a defesa e coloca pressão no aro, além de produzir bons arremessos de média distância. Por causa da quantidade de lances livres obtidos pela armadora, a Sérvia foi a segunda equipe no quesito no Eurobasket.
Embora a Sérvia assemelhe-se à Alemanha no ritmo de jogo, Yvonne Anderson traz um diferencial importante. A distribuição de arremessos entre as duas seleções que buscarão a vaga em Belém, tomando o europeu como parâmetro, diverge bastante: a Alemanha privilegia os arremessos de três, enquanto a Sérvia chuta muito pouco dessa distância (exceção a duas alas, Nogic e Sasa Cadjo), compensando pelo número de lances livres. Tampouco deve ser eficaz pressionar a bola contra as sérvias, que contam com armadoras capazes de segurar a bola e manter o drible vivo enquanto as demais se movimentam.
Apesar da importância de Yvonne Anderson, não reduzamos a Sérvia a apenas uma jogadora. Seu elenco possui poucas protagonistas em seus clubes, entretanto a maioria tem rodagem e experiência nas competições de maior nível na Europa. Todas com características bem definidas, capazes de preencher funções em um plano de jogo. Nogic é uma ala pouco explosiva, mas com muito recurso no pick and roll e no chute de média e longa distância; ela normalmente exerce a função de segunda pontuadora na seleção, desafogando a armadora principal.
A pivô Tina Krajisnik (32 anos e 1,90m) luta incessantemente por espaço próxima à cesta, além de ótima bloqueadora; atenção para os ganchos e ângulos de finalização, muito plásticos. Maljkovic explora o potencial da pivô em jogar de costas pra cesta. A outra pivô, Dragana Stankovic (28 anos e 1,95m), produz menos em isolamento, preferindo o jogo em dupla, além de trazer mais envergadura e proteção de aro. Nas alas, destaque para Aleksandra Crvendakic (27 anos e 1,87m), outra a usar muito bem o jogo no poste baixo e produzir em todos os aspectos do jogo.
A luta da Sérvia é para se manter na elite mundial e conta com histórico recente, padrão tático definido e assimilado pelo elenco, além da experiência. A geração atual caiu um degrau, porém carrega toda a ascensão vista na última década, que abriu portas nos principais clubes europeus. Sua técnica figura entre as principais da atualidade e ela manteve a seleção no prumo enquanto trocava de geração.
A Sérvia construiu seu portefólio e merece o status de favorita a conquistar a vaga em Paris (em um grupo com Alemanha e Brasil). Porém, a queda dos talentos individuais disponíveis ao ajeitado padrão tático pode trazer surpresas desagradáveis, resultados ainda não vistos na atual fase da seleção, pós Tóquio. Em geral, a seleção tem vencido os confrontos equilibrados e saído derrotada, sem contestação, para as seleções mais fortes. Com esse elenco, a Sérvia atingiu um patamar mediano nas competições mundiais – e para assegurar esse lugar, precisará ultrapassar o difícil quadrangular qualificatório para Paris.