A inflação no futebol: razões para a escalada dos preços
O mundo do Desporto-Rei está cada vez mais ligado ao capital e às elevadas transações, e há razões para a escalada dos preços. Se em outros tempos, a prática do desporto era uma atividade secundária, acompanhada com outro trabalho/atividade secundária (em certas ocasiões a empresa e o futebol estavam conectados), hoje em dia no futebol profissional, o jogador trabalha única e exclusivamente para ter sucesso no desporto rei.
As transferências acompanharam este ritmo. Se outrora os valores não eram divulgados ou simplesmente não existiam, a partir de um certo momento as movimentações começaram a ser de valores elevados e num crescimento pouco sustentável e exacerbado.
Podemos inclusivamente concluir que a entrada no futebol moderno se dá, em parte, por essas aquisições e vendas de atletas, por quantidades monetárias que nunca se tinham visto, sendo o futebol uma atividade secundária no nosso Mundo, ou seja, não fundamental para a sobrevivência do Homem. É na década de 90 que se dá o grande salto, na minha opinião. Durante estes anos foram permitidos mais jogadores estrangeiros em cada campeonato e algumas mudanças nas leis dos passes dos atletas (por exemplo a Lei Bosman), o que levou a um investimento maior por parte dos clubes, que tiravam um maior rendimento da publicidade, que estava cada vez mais enraizada no futebol, com elevados contratos com os clubes.
O fenómeno Real Madrid e “galácticos” tornou a situação ainda mais vertiginosa. Na primeira fase, Luís Figo foi contratado por 61 milhões de euros, Zinedine Zidane chegou ao Bernabéu por 75 milhões de euros e Ronaldo aterrou em Madrid por 45 milhões. Existem outros casos, mas estes são os mais relevantes, além de verbas que não eram usuais para a época, pelo menos num espaço de tempo tão curto, numa só equipa. O Real Madrid é um dos grandes culpados do aumento vertiginoso de preços dos futebolistas, no início dos anos 2000, acompanhado com a inflação.
Os clubes vendedores passaram a pedir um valor maior pelos seus craques, o que levou a pouco e pouco que todos os jogadores passassem a custar mais dinheiro, independentemente do clube que representassem.
Seguindo a linha temporal, com recordes batidos com as transferências de Kaká e Cristiano Ronaldo, uma outra mudança aumentou ainda mais o patamar dos valores pedidos foi a de Neymar Jr.. O astro brasileiro rendeu ao Barcelona quantia de 222 milhões de euros, transferência nunca antes vista no futebol mundial e que ainda mantém o primeiro lugar na tabela de transferências mais caras. Porém o efeito Neymar traduziu-se em outras mexidas, que assistimos até hoje.
No futebol português presenciamos a vendas que outrora nunca tinham sido feitas, como no caso de João Félix ou Enzo Fernández. O poder de compra também aumentou, embora não ao mesmo nível, pois Portugal é um país vendedor. Neste mercado vimos chegar Kokçu e Gyokeres por valores superiores aos 20 milhões de euros. Na última década/15 anos, nomeadamente Benfica e FC Porto, passaram a vender muito caro e também já têm a capacidade de comprar por valores que anteriormente não eram colocados em cima da mesa.
Existem outros fenómenos que levaram a este aumento desmensurado do preço dos jogadores. A separação gradual das Big 5 das restantes ligas, em termos de qualidade é uma outra justificação. São campeonatos que pagam melhor e com mais competitividade, nomeadamente a Premier League, que se apresenta como a verdadeira Superliga Europeia, principalmente na área dos rendimentos. As receitas que os clubes que ficam na parte baixa da tabela, são muito superiores ao que recebem os grandes emblemas das recentes ligas, como no caso da portuguesa.
Ver uma equipa de meio/fundo de tabela oferecer 20/30/40 milhões de euros por um jogador, na Liga Inglesa, tornou-se usual e aceitável para quem gosta de futebol, já que é o campeonato preferido da maioria dos adeptos do desporto rei, que querem ver os craques a jogarem uns contra os outros. Apenas Real Madrid, Barcelona, Bayern e poucos mais conseguem disputar esta realidade. Apesar de estarem em bons campeonatos, Inglaterra é um mundo aparte, algo que é assumido pelos responsáveis de todos os clubes. Mesmo o Championship tem uma elevada capacidade financeira.
O investimento de privados e a criação e propagação de grupos de multipropriedade afeta o mercado. No final da primeira década dos anos 2000 vimos a chegada dos petrodólares ao Manchester City, que inflacionou o mercado e conseguiu reunir alguns dos melhores jogadores do Mundo no mesmo projeto. Pouco tempo depois, o PSG fez algo semelhante, embora numa liga bem menos importante. Na temporada passada, assistimos ao Chelsea a investir rios de dinheiro, de uma maneira que nem o fair-play financeiro conseguiu controlar.
Os donos destas entidades não têm problemas financeiros, muito menos de aumentar a inflação que existe no mercado, mesmo que cheguem ao final da temporada e não consigam cumprir os objetivos, haverá sempre a capacidade de causar o caos no mercado a seguir, voltando a movimentar dezenas e centenas de milhões de euros.
Associado ao fator do investimento estrangeiro em clubes europeus, temos o fenómeno mais recente do crescimento da Arábia Saudita, através do PIF, que sente que é capaz de comprar todos os jogadores que existem à face da terra. Neste caso, trata-se inclusivamente de um investimento estatal, bem mais seguro do que o repentino crescimento do futebol chinês, baseado no investimento privado e que caiu rapidamente, já que não existia uma base para que o futebol no gigante asiático fosse algo sustentável.
No exemplo árabe, o valor das transferências tem sido elevado, mas não o suficiente para mexer muito com o mercado nesse aspeto, pelo menos para já, aqui a problemática está no valor salarial oferecido. É impossível para equipas medianas (e mesmo para gigantes, em certos casos) combater com salários que são oferecidos pelos emblemas do Médio Oriente.
Não são os grandes clubes que saem prejudicados, já que estão a ser comprados atletas que pouco contam nos seus emblemas (caso de Mendy, Koulibaly, entre outros), ou jogadores em final de carreira (Cristiano Ronaldo ou Karim Benzema) mas sim os clubes medianos que poderiam receber esses atletas, que seriam consideradas as estrelas dos seus respetivos plantéis. Um Fulham ou um Brentford, por exemplo, não estão na condição de oferecer aos jogadores um salário que lhes é regalado no Al Nassr ou Al Hilal, por exemplo, sendo que se tratam de clubes com melhores condições financeiras que a maioria, além de estarem na melhor competição do mundo do futebol.
O aumento de preço dos jogadores, levou a que equipas com menos poder financeiro contratassem em outros lugares do mundo, fora da Europa. Os emblemas portugueses, por exemplo, centraram os seus investimentos na América do Sul, conseguindo trazer vários craques como Di María ou Otamendi. No entanto, esta movimentação já pouco ou nada ocorre, pelo menos nos três protagonistas do nosso futebol
. Os grandes clubes, pertencentes aos Big 5, já vão diretamente a essas fontes de jogadores para gastar o seu dinheiro, com preços inflacionados na maioria dos casos, o que leva a que não haja capacidade de competição dos anteriores clientes deste mercado. Os grupos de multipropriedade facilitam a tarefa, especialmente no scouting. O City Group tem o Bahia e o Montevideo City debaixo da sua tutela, enquanto que o Red Bull é dono do Bragantino. Estes grupos são máquinas que trabalham muito bem, captam os melhores talentos e avaliam uma possível transferência para a Europa, dentro de instituições que estão sob a sua tutela.
Daí o processo formativo estar a ser cada vez mais importante para os clubes que não fazem parte dos Big 5 ou que, mesmo estando inseridos nessas competições, não têm capacidade de investimento. Ao produzir jovens, vão ser necessárias menos contratações e a probabilidade de fazerem dinheiro com as suas próprias promessas torna-se bastante elevada, existindo apenas lucro, já que não se tratam de aquisições a outros emblemas.
A realidade é que não existe uma forma de controlar este aumento descontrolado do preço dos passes dos jogadores. O fair-play financeiro foi uma boa criação, mas o mesmo tem sido facilmente enganado, além de só atuar na Europa. Com o surgimento do Médio Oriente, esta questão irá adensar-se mais, já que o Projeto 2030 está só no seu começo.
Chegámos a um ponto que é impossível voltarmos atrás, com uma redução no valor das transferências. Possivelmente só uma crise ao nível global alteraria esta situação, mas é uma situação que não é desejada. Apela-se à destreza e capacidade negocial dos compradores, que cada vez têm de abrir mais a carteira, independentemente da qualidade do jogador que contratam.