O Mundial de 1950: o luto brasileiro

Virgílio NetoJunho 15, 20186min0

O Mundial de 1950: o luto brasileiro

Virgílio NetoJunho 15, 20186min0
País em crescimento, efervescência cultural, mais grande estádio do mundo e boa selecção nacional. Incontestável favorito. O Brasil subiu ao salto, que era bem alto. Mais grande a altura, mais grande a queda. E que queda! Resultado: luto e o complexo de “vira-latas”. 

Com o fim da Segunda Grande Guerra (1945), a FIFA retoma a organização dos mundiais e escolhe o Brasil para recebê-lo. O país despontava como liderança e protagonismo regional, com uma ousada industrialização e uma participação considerável na guerra, com dezenas de milhares soldados brasileiros enviados para os conflitos (Força Expedicionária Brasileira), onde tiveram bastante êxito. O Rio de Janeiro firmava-se como um grande centro cultural e de indústria artística, época em que surgiam géneros musicais importantes para a formação da nacionalidade brasileira e de grande produção teatral e cinematográfica. Em São Paulo, no mesmo ano do mundial, entrava no ar a primeira emissora de televisão da América Latina: a TV Tupi.

Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro são escolhidas para receberem os jogos. Para tal, é construído na então Capital Federal, o Rio de Janeiro, o mais grande estádio de futebol do mundo: o do Maracanã (erguido em zona homónima), com capacidade de 200 mil pessoas.

O Brasil possuía uma excelente equipa, constituída por atletas do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Era a primeira participação da Inglaterra, depois de muitas divergências com a entidade máxima do futebol. A Argentina, em protesto à FIFA, optou por não disputar o apuramento. Como curiosidade, houve a participação da Jugoslávia, cuja delegação ficou encantada com a energia demonstrada pelos adeptos brasileiros nas bancadas, ou seja, a torcida*. Ao retornarem à Europa, difundem esta história que acaba por influenciar adeptos locais. Por isso, o grupo ultra do Hajduk (da cidade de Split, na Croácia) leva o nome de “Torcida”, em referência à maneira de os adeptos brasileiros manifestarem-se nas bancadas.

Com treze países participantes, o certame aconteceu entre 24 de Junho e 16 de Julho daquele ano.

A selecção do Brasil faz uma grande campanha e chega ao quadrangular final junto com Espanha, Uruguai e Suécia. Não havia a meia-final e a final. Vencia o Mundial quem fizesse mais pontos entre as quatro equipas que alcançassem esta fase. Os brasileiros, cujo uniforme era todo branco, vence a Suécia por 7 a 1 e a Espanha por 6 a 1. Na vitória sobre os espanhóis a euforia era tamanha que o Maracanã todo, uníssono em 150 mil vozes, começou a cantar uma famosa marcha de carnaval, “Touradas em Madri”:

“Eu fui às touradas em Madri,

e quase não volto mais aqui,

pra ver Peri beijar Ceci;

Eu conheci uma espanhola natural da Catalunha,

queria que eu tocasse castanhola e pegasse touro à unha;

Caramba! Caracoles! Sou do samba,

não me amoles!

Pro Brasil eu vou fugir!”

Restava apenas um jogo, contra os vizinhos do Uruguai. E para o Brasil bastava o empate para ser campeão. O país era só euforia. Na manhã do jogo, o diário “O Mundo” estampou na capa as fotos dos futebolistas brasileiros com a frase: “Estes são os campeões do mundo” (imagem abaixo). O capitão uruguaio, Obdulio Varela, compra vários exemplares e os distribui nos quartos dos colegas com a seguinte mensagem: “Urinem em cima”.

Aos 16 de Julho de 1950, um domingo, o Maracanã estava repleto: 199.854 adeptos. Friaça, avançado do São Paulo, abre o marcador na segunda parte. Schiaffino empata para os Orientais. Jogo igualado a um golo e nervosismo à flor da pele. Provocações: o estádio fica “mudo”, e os jogadores das duas equipas trocam agressões. Em uma delas, o capitão celeste agride o brasileiro Bigode, que não revida. Para a imprensa do Brasil daquela época, esta passividade tomou conta e se transformaria depois em uma popular expressão conhecida por “complexo de vira-latas”**. Foi neste contexto que o uruguaio Ghiggia arrancou com a bola no campo de ataque e rematou-a cruzada em direcção à baliza. Ela passa entre o guarda-redes Barbosa e o poste. Era o segundo golo e a virada do Uruguai, que vence o jogo e tornava-se bicampeão do mundo.

Tristeza no Maracanã. Tristeza no Rio de Janeiro. Tristeza no Brasil. Luto nacional em forma de incapacidade, passividade e insucesso que tomou conta do imaginário coletivo brasileiro. Barbosa, o guarda-redes foi considerado grande responsável pela derrota até o dia da sua morte. Pouco antes de falecer, ele comentou:

“A pena máxima para um crime no Brasil é de 30 anos. Eu pago por aquele golo há quase 50!”

Os uruguaios perceberam o clima de comoção no Maracanã. Alguns anos depois, o capitão da equipa vencedora, Obdulio Varela, revelou que naquela noite daquele 16 de Julho de 1950, depois de ter sido campeão, saiu às ruas do Rio de Janeiro para tomar uma cerveja, sozinho. Entrou em um bar onde encontrou brasileiros que choravam pela derrota e diziam: “Foi Obdulio, foi Obdulio o culpado”, entretanto não o reconheceram. Ele, então, pede por uma bebida e permanece calado, triste pela decepção que causou a tanta gente.

Alcides Ghiggia, autor do segundo golo, uma vez refletiu: “Só três pessoas calaram o Maracanã: Frank Sinatra, o Papa e eu”. Ironicamente, ele faleceu em um mesmo 16 de Julho, em 2015.

Pelé, então um miúdo com oito anos de idade, contou que viu seu pai a chorar pela derrota diante do rádio. Foi até ele e disse: “Pai, vou ganhar um mundial para o Senhor”. Isso seria concretizado anos mais tarde.

A verdade é que o Brasil não apenas foi derrotado pelo Uruguai, mas também por ele mesmo. Em outras palavras, o Brasil subiu “ao salto”, ou seja, achou-se campeão antes da hora. Uma derrota dolorosa e que teria estruturais consequências para o futebol do Brasil, que serão contadas em futuros artigos.

 

*a expressão “Torcida” vem do início do século XX no Brasil, quando o futebol era restrito às elites e o público feminino nas bancadas, cuja elegância era percebida por vestirem luvas, ansiosas com o desenrolar da partida torciam os dedos das luvas que vestiam. Em outras palavras, ficavam “na torcida” destas luvas, ou simplesmente, “na torcida”.

**”Vira-Latas” é um termo pejorativo no Brasil, conhecido por qualquer cão de rua, sem raça ou sem valor.


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