O Baú de “Mister’s”: Gérard Houllier, o Chevalier de Liverpool pt.1

Francisco IsaacNovembro 3, 20217min0

O Baú de “Mister’s”: Gérard Houllier, o Chevalier de Liverpool pt.1

Francisco IsaacNovembro 3, 20217min0
Um treinador clássico que fez as hostes de Liverpool sorrir em várias ocasiões é relembrado em mais um episódio do Baú do Fair Play

Um cavalheiro, uma referência e um eterno apaixonado pelo desporto, são três elementos que ficarão para sempre ligados à memória de Gérard Houllier, treinador que faleceu em 2020 aos 73 anos de idade. Nesta rubrica d’ “O Baú de Mister’s”, o recordar de treinadores tem abordado sempre a história/background de cada um, o que deixaram no Desporto-Rei e qual o legado, independentemente se ganharam um, alguns ou diversos troféus numa carreira longa. No caso do defunto treinador francês, a história começa precisamente numa… sala de aula.

Houllier jogou futebol sim, mas até aos 26 anos esteve envolvido numa carreira académica, pois ingressou no curso de Inglês na Universidade de Lille, afirmando-se positivamente como um excelente aluno, o que lhe possibilitou começar a carreira de professor de liceu em 1968 (21 anos). Volvido um ano, deixou Hucqueliers, terra no norte da França, pelo qual lecionava e jogava futebol amador, aceitando um ano de estágio em Inglaterra como professor assistente, mais precisamente no colégio de Alsop de Liverpool, começando aqui o início de um namoro profundo e que viria atingir o seu esplendor máximo em 2001.

Estes 12 meses fora de casa permitiram a Gérard Houllier a conhecer melhor a cultura e língua inglesa, entregando-se por completo à vida desta industrial cidade inglesa ao ponto que no dia 16 de Setembro de 1969 se deslocou ao estádio para ver o FC Liverpool frente ao Dundalk na companhia do seu melhor amigo, Patrice Bergues (conhecido em França pelo excelente trabalho desenvolvido nas camadas jovens do RC Lens e, depois, como adjunto da selecção Francesa de sub-21, tendo chegado a assistente da selecção principal gaulesa entre 1996 e 1998), apaixonando-se imediatamente pela aura do clube e por Anfield. Dois factos interessantes desse encontro: estreia de Alec Lindsay, um dos históricos do clube (170 jogos e 8 troféus conquistados) e equipa treinada pelo mítico Bill Shankly (continua imortalizado como um dos melhores técnicos de sempre das ilhas britânicas e Europa). Em retrospectiva, o treinador francês revelou algumas coisas em 2009 quando entrevistado pelo Liverpool,

“Eu suponho que ir a aquele jogo com o Patrice foi um toque do destino. Ele veio ter comigo por uns dias, porque eu estava a viver sozinho, e por isso decidimos ir ver o Liverpool contra o Dundalk. O que me impressionou mais foi, acima de tudo, a atmosfera envolvente. Nós estávamos no Kop, e foi fantástico o apoio incondicional dos adeptos mesmo antes do jogo começar. Também fiquei estonteado com a energia mostrada no campo e a capacidade física dos jogadores. Lembro-me de que a 15 minutos para o fim, o resultado estava em 8-0, e os jogadores do Liverpool queriam marcar ainda mais golos. Repara, ao intervalo estava já 5-0, e normalmente em França, quando se chega a um resultado dessas proporções, há uma espécie de acordo que o encontro está terminado… mas em Inglaterra não era assim!”.

Após este primeiro contacto (onde chegou a fazer uma dissertação sobre os problemas sociais no bairro de Toxteth), como adepto, Houllier voltaria para casa em 1970 e ao mesmo tempo leccionou como jogou futebol, até ao ano de 1973, altura em que é nomeado treinador do Le Touquet, pondo, na altura, uma pausa na vida de professor, que acabaria por ser, na realidade, um ponto final. A partir desta data, o antigo jogador, estudante e professor dá os seus primeiros passos a sério nesta nova carreira tendo dado o salto para o US Nœux-les-Mines, clube que serviu durante os anos de 1976 a 1982, aceitando um projecto amador mas com vontade e disponibilidade para sonhar e lutar por novos objectivos e, Houllier, não deixou de aproveitar a oportunidade.

Em 1978 conseguiu a subida para a segunda divisão francesa (a actual Ligue 2), conseguindo depois manter o clube nesse ponto durante duas temporadas, voltando a reconquistar a promoção pouco depois, promovendo a ascensão de alguns jogadores, um dos quais que iria transitar consigo para um próximo convite, como Jean-Michal Godart, Héctor Resola, Marc Westerloppe, Stefan Bialas, Daniel Kutermak e Joachim Marx. Chega o ano de 1982, e o RC Lens avança para a sua contratação, tendo aí ficado durante três temporadas, formatando o clube para futuros sucessos, conquistando até um 4º lugar em 1983, e disputado uma Taça UEFA, enriquecendo o clube não só com bons resultados desportivos, mas com uma cultura táctica importante e decisiva na maturação deste histórico emblema.

A beleza tática apresentada por Gérard Houllier, o futebol de ataque e de gosto pelo golo, de criação no centro do terreno e de manipulação dos corredores, começou a despertar atenções por toda a França, levando ao Paris Saint-Germain a interceder e a avançar para o seu concurso, isto nos idos de 1985, sendo um momento decisivo naquilo que viria a ser a sua carreira ao mais alto nível, pois o desafio apresentado pelo clube parisiense era imenso.

Um desolador 13º lugar na Ligue 1, um plantel agastado com problemas de recursos e polémica, forçariam a Gérard Houllier a moldar todo um clube ao que queria, procurando reconstruir pontes, reedificar processos e encontrar um miasma de salvação que injectasse positividade a uma equipa desanimada.

Porém, e num volte-face espectacular, o clube da capital francesa passa de um tenebroso 13º lugar para o título de campeão logo na primeira época de Houllier, suplantando o incrível Nantes (um dos principais clubes desta década de 80) e Bordéus, conseguindo esta façanha com o reerguer da equipa e a chegada de alguns reforços de grande nível, como Joël Bats (internacional pela França em mais de 50 ocasiões), Oumar Sène, Pierre Vermeulen ou Fabrice Poullain. Melhor ataque, melhor defesa, e um approach mental e tático que ofereceu o primeiro título de campeão, entrando no panteão do Paris Saint-Germain como um dos principais impulsionadores na direcção de novos horizontes, mesmo que nos três anos seguintes não tenham chegado mais qualquer prata ao museu. Stefan Susic, jogador deste PSG de Gérard Houllier relembra assim o treiandor,

“Eu gostava muito dele. Quando chegou ao PSG naquele Verão de 1985, nós não o conhecíamos bem, pois era muito novo (38 anos de idade). À medida que o fomos conhecendo, descobrimos que era uma pessoa carinhosa, que comunicava muito com os jogadores e procurava fazer-nos falar e expressar. (…) Claro que haviam alguns medos em relação à sua qualidade como treinador, mas a verdade é que se adaptou espantosamente e rapidamente, e conseguiu colocar-nos todos atrás de si.”.

A paixão do treinador de então com 38 anos, o gozo de treinar e se expressar, e a vontade de tentar fazer com que os jogadores falassem e dissessem o que pensam, eram só alguns apontamentos iniciais do quão valioso era Gérard Houllier no contexto do futebol francês. E o que se segue para alguém ambicioso e com vontade de continuar a moldar jogadores e pensamentos? A ida para… a selecção francesa como adjunto. Foram praticamente 10 anos em que esteve a trabalhar para a Federação de Futebol em França, passando de adjunto do seleccionador principal sénior, para ser ele próprio a assumir esse lugar em 1993 (experiência que não correu nada bem, pois não conseguiu sequer a qualificação para o Campeonato do Mundo de 1994 e que até acabou em discussão azeda e judicial com David Ginola), passando para os sub-18 e sub-20.

Ou seja, durante uma década não houve Gérard Houllier a nível de clubes, mas houve um Gérard Houllier a moldar aquilo que seriam as novas gerações do mais alto nível do futebol francês, moldando vários jogadores que iriam ser referência no espaço de 4, 6, 8 e 10 anos, casos de Thierry Henry, Nicolas Anelka, David Trezeguet, William Gallas, Willy Sagnol, tendo conquistado o título de campeões da Europa em 1996. A França autoritária e que levantou o Campeonato do Mundo de 1998 e o Euro 2000 devem, em alguma escala, esses títulos a este treinador especial. Mas e o que se seguiu a seguir? A parte 2 segue-se nas próximas semanas, quando falamos do Liverpool e um retorno ao Le Touquet.


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