O Baú de “Mister’s”: Telê Santana, o romancismo brasileiro no futebol

Francisco IsaacAgosto 14, 201814min0
Um dos treinadores que melhor elevou o Futebol Bonito a um patamar alto, Telê Santana é um nome inesquecível do futebol sul-americano. O que achavas do treinador?

Raros são os ícones no Mundo do Desporto que são amados por clubes rivais, inesquecíveis por aquilo que fizeram, pela emoção que nutriram por esses emblemas e por uma pegada tão marcante que é impossível de esquecer. Esse foi o caso de Telê Santana, jogador e treinador que faleceu em 2006 vítima de complicações na sua saúde, quando tinha 74 anos.

Mas realmente quem foi Telê Santana? Porque é que não se ouve falar mais da sua lenda para os lados do Velho Continente? Muitas vezes treinadores com incríveis façanhas não são tão conceituados no espaço europeu devido a nunca terem partido em direcção a estas paragens, ficando mais conhecidos no seu Continente que fora dele. Luís Filipe Scolari, por exemplo, é recordado à escala mundial e muito se deve ao que fez ao serviço do Brasil em 2002.

Há outros motivos, como o facto de se julgar que os treinadores brasileiros de possuírem uma falta de cultura táctica e devidamente certa para apresentar um desafio interessante… contudo, Santana deu uma lição nesse capítulo em 1992 e 1993, mas contamos essa parte da história.

A LENDA DE DOIS TRICOLORES DO BRASIL

As maiores glórias de Santana dividem-se em dois capítulos: Fluminense e São Paulo, ou seja, é uma daquelas lendas que marca as duas capitais do futebol brasileiro, Rio de Janeiro e São Paulo.

Pelo Flu, ficou notabilizado enquanto jogador de futebol, actuando em mais de 500 jogos pelo emblema do Rio, sempre como extremo-direito, carregado de virtuosismo, manhas e um estilo peculiar que chamou a atenção de vários comentadores, jornalistas, colegas de equipa e, principalmente, do director desportivo do Fluminense em 1950, o mitico internacional brasileiro João Netto.

Fez parte de uma das eras de melhor espectáculo e conquistas do Fluminense, galvanizando os adeptos que o amavam por tudo o que representava: virtuosismo, velocidade, carisma e apaixonado. Ganhou uma Copa Rio em 1952 (lembrar que na altura não existia Campeonato Brasileiro nos moldes actuais, sendo esta taça uma das mais importantes do Brasil), dois campeonatos cariocas e mais uns quantos troféus mais locais que nacionais.

Nunca foi internacional pelo Brasil, isto numa altura em que o futebol por lá estava pejado de extraordinários jogadores que se encaixavam bem nas ideias e perfis dos seleccionadores da altura como Vicente Feola por exemplo (campeão do Mundo em 1958) ou Aymoré Moreira (também Campeão do Mundo em 1962). Santana era bom, mas não o suficientemente bom para chegar ao patamar máximo do Desporto-Rei.

Contudo, para o então jogador bastou-lhe ficar como lenda do Fluminense, onde ainda hoje em dia é relembrado pelas lágrimas derramadas quando marcou um golo pelo Madureira (um dos seus últimos clubes já em fim de carreira) ante o seu clube de sempre… tinha perdido por 5-1, mas tinha feito um “crime” ao marcar golo ao Flu.

Foi precisamente no emblema do Rio de Janeiro que começou a sua carreira enquanto treinador em 1969. Todos ansiavam por ver como o técnico ia repor o Fluminense no trilho dos títulos, aliado a um futebol emotivo, romântico e dinâmico. Iria formar a equipa que levantaria o título do Campeonato Brasileiro de Futebol de 1970 (na altura apelidado de Torneio Roberto Gomes Pedrosa) e, depois da sua saída, três edições do Campeonato Carioca.

Lula, Denilson, Félix (considerado um dos grandes guarda-redes da altura), Didi, Samarone eram só alguns dos nomes que tornaram aquele elenco do Flu uma equipa formidável, toda montada por Telê Santana e que acabou bem liderada por Paulo Amaral. Foi talvez uma das maiores tristezas de Santana, o facto de não ter resistido a pressões internas da direcção, entrando em discussões pela forma como se processava a saída de atletas.

Saiu amargurado com o seu Fluminense, equipa que deu todas as armas para regressar a uma era de show e encanto no Brasil. Mas se em 70′ não teve o prazer de levantar o Campeonato Brasileiro, em 71′ teria a sua redenção quando guiou o Atlético Mineiro ao título!  Foi chegar, ver e vencer aplicando todo o seu conhecimento e noções atacantes a uma formação que tinha algum encanto.

Só para termos noção do feito, nunca mais o emblema de Minas Gerais iria levantar este troféu e ainda hoje luta por voltar a ombrear pelo top-3 do Brasileirão. Nos seus primeiros 10 anos como treinador foi campeão então do Carioca, Mineiro, Gaúcho e Brasileiro, um feito incrível ainda nos dias de hoje. O futebol do treinador emocionava os jornalistas, que o apelidavam de uma forma ainda mais “louca” do futebol bonito, onde as combinações rápidas e mágicas enchiam o campo e um ataque sempre ameaçador tomava controlo das emoções de jogo.

O Atlético Mineiro foi o melhor ataque em 1971 e Santana procuraria incutir esses princípios de jogo por onde passasse. Era assim que via o futebol, uma mescla de velocidade imparável, de um drible frenético, de arriscar em demasia, de procurar “enfeitiçar” os adversários e de expor um pouco o seu meio-campo defensivo. O Brasil andou durante anos imerso nesta cultura que criou sérios problemas à escala mundial.

Depois de uma primeira passagem fugaz pelo São Paulo, Botafogo, Grêmio e Palmeiras (pior fase da carreira, com apenas um troféu conquistado pelo Grêmio) foi convidado para tomar o lugar de Cláudio Coutinho (morreu aos 42 anos devido a um acidente quando fazia mergulho, sendo considerado dos técnicos brasileiros que mais rapidamente conquistou títulos e alcançou recordes), como seleccionador de futebol do Brasil.

O FUTEBOL BONITO QUE FICOU DEMASIADO FRIO

Chega assim ao nível máximo, depois de nunca tê-lo conseguido enquanto jogador… era uma oportunidade única e especial para Telê Santana que gozava de uma imagem fantástica e amistosa no Brasil, que combinava bem com o seu talento como treinador. Era também uma pessoa que facilmente cativava e defendia os seus jogadores, lutava pelos direitos destes, ensinava-os a caminharem na direcção certa, apresentando-se quase como uma figura paternal.

Infelizmente, a passagem pela canarinha rimou com insucesso, pois não foi capaz de devolver o título de campeões do Mundo que tanto desejavam. Mas o que Santana trouxe? Virtuosismo. Pegou no trabalho de Cláudio Coutinho e proporcionou outra voz às alterações feitas pelo então jovem treinador, que tentou modernizar o futebol do Brasil com aspectos europeus.

Santana voltou a conseguir ligar os seus jogadores, devolveu-lhes a possibilidade de arriscarem mais, de saírem dos contornos da estratégia de equipa e de procurarem eles assumirem a posição de heróis. Foi uma forma de combinar os novos aspectos com os apontamentos que fizeram o Brasil campeão do Mundo vários anos antes. Sócrates, Zico, Falcão, Éder, Serginho Chulapa, Júnior conseguiram conviver durante os jogos do Brasil e Santana era um vencedor… nas fases de apuramento para a maior prova do Desporto-Rei.

O problema claro estava na consistências defensiva e na hora de gerir melhor os timings de jogo… esse facto iria condenar o Brasil a falhar o título em 82′ e 86′. Em 1982, conseguiu derrotar a URSS e Argentina, com um 2-1 e 3-1 categóricos, respectivamente. A equipa apresentava um jogo fluído, mexido e mágico, aquilo que todos os adeptos gostam de ver, não é? Porém, quando apanhou pela frente uma formação venenosa com jeito para neutralizar a efusividade e fantasia de selecções como o Brasil ou Argentina: a Itália.

Rossi estava na frente do ataque, munido de golos e daqueles detalhes sórdidos que fizeram-no um dos melhores avançados do continente Europeu, senão a nível Mundial. O seleccionador canarinho expôs a equipa excessivamente a Marco Tardelli, Francesco Graziani, Bruno Conti com estes a explorarem com excelência as “costas” dos seus adversários… Santana queria dinamismo e a Itália respondia com lógica e estratégia. O Brasil recuperou de 1-0 e 2-1, para o 1-1 e 2-2, não resistindo ao 3-2.

A vil Itália tinha arrumado com o suposto melhor futebol de sempre do Brasil, uma formação de pura magia, encanto, daquele romanticismo futebolístico que todos os adeptos adoram, mas sem os argumentos para contrariar um elenco mais inteligente e harmonioso. Santana foi “perdoado” em boa parte, muito devido ao tal futebol fantástico que jogavam, repondo o Brasil num nível que já não se via desde os anos 60.

A Tragédia do Sarriá foi uma espinha muito difícil de engolir e tirar da carreira de Santana. Depois do Mundial de 800 dias como seleccionador do Brasil, Telê Santana partiu para as arábias com uma percentagem de 83% de vitórias ao serviço do seu país (só três derrotas!). Contudo, voltaria a ser chamado em 85′ depois de más experiências com Parreira, Eduardo Coimbra e Evaristo Macedo.

Teve nova oportunidade no Mundial de 86, sem sucesso mais uma vez… nova derrota nos quartos-de-final frente à França (na marcação das grandes-penalidades Sócrates e Julio Cesar falham as suas conversões) depois derrotarem a Espanha na fase-de-grupos, e desta vez a imprensa já não foi tão simpática… Telê Santana ficou “etiquetado” de pé-frio, ou seja, de quando importava ganhar nunca o conseguiu, por melhor que as suas equipas jogassem.

A tristeza de Santana foi sanada com uma vitória no Mineirão com o Atlético Mineiro, para depois falhar no Flamengo, Fluminense e Palmeiras… finalmente chegou 1990 e vinte e dois anos após o início da sua carreira como treinador chega um convite do São Paulo. O tri-color paulista estava num momento crasso, campeão Paulista em 5 das últimas 10 edições, faltando-lhes algo para atingir outro patamar.

A JUSTIÇA DIVINA NAS CORES DO SÃO PAULO

Com Telê Santana veio “algo-extra” que os colocou noutro patamar… a 12 de Outubro de 1990 assina pelo clube e começa a melhor fase do São Paulo. Em 1991 consegue logo levá-los ao título do Estadual de São Paulo e Campeonato Brasileiro (pela 3ª vez na História da formação paulista), dominando a concorrência do princípio ao fim do campeonato que era disputado em três fases.

Em 38 jogos perdeu só um encontro e deixou-se empatar em outros 12 jogos, fechando como o melhor ataque (66 golos), onde despontava o espectacular Raí! Na final ante o Corinthians golearam os seus rivais com um 3-0 na primeira-mão para depois festejarem a vitória em pleno Morumbi. Vale a pena recordar o onze alinhado nas finais: Zetti, Cafu, Antônio Carlos, Ronaldão e Nelsinho; Sídnei, Suélio e Raí; Macedo, Müller e Elivélton.

O ataque do tricolor paulista era avassalador, onde Müller combinava com perfeição com os seus colegas da frente, devidamente apoiados pelo fantasista Raí, um jogador feito para entrar na lógica de Santana. É a partir de 1991 que o São Paulo vai conquistar 11 títulos, com claro destaque para as duas Taças Intercontinentais e Libertadores de 1992 e 1993, para além de uma Recopa e Supercopa da América do Sul.

As finais da Taça Intercontinental foram do melhor possível, derrotando o poderoso Barcelona e Milan. Em 92′ a final teve frente-a-frentes espectaculares, com Zubizarreta, Koeman, Laudrup, Witschge, Stoichkov de um lado e do outro Raí, Müller, Cafu ou Cerezo. A comandar os culés estava Johan Cruyff, antigo jogador que Santana apreciava e tecia rasgados elogios de forma constante.

Foi um jogo emocionante, com o Barcelona a fazer o 1-0 ficando algo adormecido no papel de favorito… o São Paulo, que tinha derrotado o Newell’s Old Boys na Libertadores para chegar à final, começou a acreditar e através de um futebol errático, ágil e dinâmico trocaram as voltas aos espanhóis… Raí fez magia e de repente estavam na frente do resultado. O Barcelona bem tentou repor a igualdade mas Zetti estava imparável entre os postes, com Telê Santana enérgico a partir do banco.

O espectacular é que este São Paulo iria repetir a façanha no ano seguinte… vitória na Libertadores ante a Universidade Católica do Chile e apuramento para a final da Intercontinental, onde estava o AC Milan de Fabio Capello. Mais uma vez, a equipa praticamente inalterada de Telê Santana (já não “existia” Raí, pois tinha partido para o PSG) enfrentava alguns históricos do futebol europeu como Franco Baresi, Alessandro Costacurta, Paolo Maldini, Marcel Desailly, Jean-Pierre Papin… ia ser outro jogo de antologia.

O São Paulo esteve sempre na frente do resultado, com golos de Palhinha e Cerezo, sendo que Massaro e Papin responderam para chegar ao empate… quando o encontro se aproximava do fim, Leonardo recupera uma bola a Donadoni, dá de imediato a Cerezo e o médio atira um passe em profundidade para Müller, Rossi sai-se mal e numa carambola, o avançado brasileiro consegue meter a bola no fundo das redes.

O 3-2 foi letal e Santana voltaria a conquistar a Taça Intercontinental para desespero do jovem Paolo Maldini e de Fabio Capello. Até ao final da carreira como treinador, o treinador que começou em 1969 no Fluminense somou a tal Recopa e mais uns quantos troféus, para depois ser forçado a reformar-se do futebol devido a um ataque cardíaco que o condicionou.

Faleceu passado 10 anos e ainda hoje é recordado com um carinho especial por tudo o que fez pelo futebol brasileiro. É dos treinadores com mais títulos, com mais destaques, com melhor percentagem de vitórias e de um futebol tão apaixonado e romântico que encheu capas de jornais e fantasias dos adeptos.

Considerado como o último romancista do futebol bonito, Telê Santana deixou um vazio no futebol brasileiro que só Luís Filipe Scolari, por exemplo, conseguiu preencher em termos de conquistas… mas aquela paixão, o eterno carinho pelo esférico e o virtuosismo poucos ou nenhuns conseguiram chegar ao seu nível.

Fica para os anais da História do Futebol um pequeno episódio entre Telê Santana e Johan Cruyff na final de 1992, contada pelo árbitro do jogo Juan Lostau,

“Em quarenta anos de carreira, nada me impressionou tanto como ter participado da conversa com eles. Foi a coisa mais enriquecedora que o futebol me deu. Eles estavam convencidos de que perder jogando bem não era fracassar e que, para isso, seria necessária uma partida leal. O atleta que não respeitasse isso seria retirado de campo. Eles falavam de futebol como se fosse algo sagrado. Diziam que interromper um jogo com lesões fingidas ou fazer uma substituição para ganhar tempo não era algo válido. Telê e Cruyff queriam muito ganhar a partida, mas não de qualquer maneira, não com trapaças”


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