Hoje vamos falar de uma inusitada experiência que tive recentemente, quando pude assistir ao vivo um dos clássicos mais enigmáticos e emocionantes do futebol sul-americano: Racing X Independiente.
Nestes tempos de reclusão, quarentena e suspensão do futebol, nada como relembrar grandes histórias envolvendo este esporte que movimenta as multidões.
Quando se fala em Argentina, imediatamente o jogo entre Boca e River vem às nossas cabeças. Sim, é verdade, estamos a falar de um clássico gigantesco, que até já decidiu a Libertadores em terras europeias. No entanto, Boca x River não é o único clássico argentino. Há muito mais jogos interessantes nas terras portenhas do que sonha a vossa vã filosofia.
Racing x Independiente é um deles. A rivalidade começa na localização geográfica. Avellaneda, uma pequena cidade da região metropolitana de Buenos Aires, tem pouco mais de 30 mil habitantes, que se dividem em adeptos do Independiente (El Rojo) e do Racing Club (La Academia). Os dois estádios ficam a poucos metros de distância e a cidade respira futebol. No entorno das arenas, vários bares e restaurantes ficam lotados nos dias de jogos, que assim como nas principais cidades brasileiras, também contam com claque única (por questões de segurança, quando o jogo é no estádio do Racing, somente os adeptos do Racing o assistem, e vice-versa).
O estádio do Racing, conhecido como ¨El Cilindro¨, tem capacidade para 51 mil adeptos que lotam a arena em todas as partidas. É uma claque extremamente apaixonada pelo clube e conta com uma banda musical chamada ¨La Guardia Imperial¨, que comanda todos os cantos durante os jogos. No link https://www.letras.mus.br/la-guardia-imperial é possivel conhecer e ouvir os gritos de guerra e as letras dos coros dos adeptos do Racing.
E aqui começamos a fazer um paralelo entre as claques no Brasil e na Argentina. Há uma diferença fundamental entre as duas: enquanto os adeptos brasileiros costumam ¨jogar junto com o time¨, ou seja, se o time vai bem, a claque cresce, e se o time vai mal, a claque diminui o volume e costuma ficar tensa (isso ocorre com todas as claques de todos os clubes brasileiros), na Argentina o comportamento da claque parece ser independente do jogo ou do resultado do mesmo. Há um famoso vídeo no Youtube que mostra um jogo entre Racing e River Plate, no qual o River aplica uma goleada de 6 a 1 na Academia, e mesmo assim os adeptos continuam a fazer uma festa gigante, algo inimaginável nos estádios brasileiros.
Outro ponto que chamou-me muito a atenção foi que a maioria dos cantos das claques brasileiras são copiados dos coros argentinos. Muitas vezes, são apenas traduzidos para o português do Brasil e em algumas situações tem as letras adaptadas para adequação à métrica musical. Veja estes exemplos com cantos das torcidas de Palmeiras e São Paulo:
Em contrapartida, se nas arquibancadas os argentinos são melhores que os brasileiros, o mesmo não se pode dizer quanto à qualidade do futebol apresentado. As duas equipas estavam em posições intermediárias na tabela do Campeonato Argentino, com o Racing ligeiramente melhor e ainda a lutar por uma vaga na Copa Libertadores 2021 (ao final do campeonato, o Independiente ficou em 14o lugar e o Racing conseguiu a vaga para a primeira fase classificatória do principal torneio sul-americano).
E onde faltou qualidade, sobrou raça. O jogo foi Histórico. Assim mesmo, com H maiúsculo. Os donos da casa jogaram razoavelmente bem no primeiro tempo, até que aos 39 minutos o guarda redes Arias foi expulso. E na sequência, no início da segunda etapa, nos primeiros segundos de bola rolando, o jogador Sigali também levou o cartão vermelho, o que fez com que o Racing jogasse com apenas nove atletas durante todo o segundo tempo. E o que se viu a partir daí foi um verdadeiro massacre vermelho. O time do Independiente jogou o tempo todo no campo de ataque, acuando os donos da casa em sua grande área. Parecia um treino de ataque contra defesa. Mesmo nessa situação difícil, os adeptos do Racing não deixaram a energia diminuir, e a cada ataque do alvirrubro mais subia o volume e a temperatura nas arquibancadas.
Até que num desses momentos arrebatadores que só o futebol pode nos proporcionar, num contra ataque aos 41 minutos do segundo tempo, o avançado Chelo Diaz conseguiu fazer o único golo da partida, cravando a histórica vitória por 1 a 0. Desnecessário dizer aqui o que aconteceu nas arquibancadas. Foi uma festa de conquista de campeonato. O torcedor do Racing, que comemora até quando está a perder do River por 6 golos, explodiu numa alegria jamais vista, ao derrotar o arquirrival de camisola rubra em situação tão dramática. Ao Independiente, só restou lamentar a perda da oportunidade de fazer um belo resultado na casa do inimigo.
Então siga a minha sugestão. Aproveite este tempo de quarentena e suspensão do futebol para assistir aos grandes clássicos deste esporte que tanto nos encanta. Garanto que não irás te arrepender. E mesmo sendo brasileiro, sou obrigado a concordar com os argentinos: no que se refere à festa nas arquibancadas, Maradona é melhor que Pelé.