“Sim, Senhor…” e o respeito no rugby – Coluna de Opinião de Hélio Pires

Fair PlayAgosto 27, 20177min0

“Sim, Senhor…” e o respeito no rugby – Coluna de Opinião de Hélio Pires

Fair PlayAgosto 27, 20177min0
O respeito, o Fairplay e o companheirismo deveriam e deverão ser pedras basilares de qualquer desporto. Hélio Pires, na sua coluna "Visto de Fora", apresenta argumentos que provam que o rugby ainda é um desporto baseado nesses três elementos

Em 2015, aos 28 minutos do jogo do mundial entre a Escócia e a África do Sul, Nigel Owens assinalou uma penalidade e admoestou Lood de Jager, o qual, com os seus mais de dois metros de altura e 125 quilos de peso, respondeu com um simples “sorry, sir.” Sem protestos ou impropérios, apenas um exemplo da ideia de que o râguebi é um desporto de brutos jogado por cavalheiros.. o “Sim, Senhor…” ou, melhor, o respeito no rugby…


No campo

A frase tem uma segunda parte segundo a qual o futebol, por contraste, é um desporto de cavalheiros jogado por brutos. Trata-se obviamente de uma generalização e como tal de uma afirmação em parte falsa: qualquer modalidade em que equipas adversárias se misturam em campo pode descambar em violência e há bons e maus exemplos em todo o lado, às vezes protagonizados pelos mesmos jogadores em diferentes ocasiões. Basta pensar que o mesmo Lood de Jager que pediu desculpa ao árbitro também se envolveu em confrontos com o seu colega de selecção Eben Etzebeth, num jogo entre os Stormers e os Cheetahs.

Mas uma generalização tem também o seu quê de verdade por nascer da identificação de uma característica que depois, bem ou mal, se assume como universal. E é um facto que, para um desporto de contacto e como tal propenso a exaltar os ânimos com relativa facilidade, o râguebi consegue ser uma modalidade contida. Mais ainda se comparado com o futebol, que se joga acima de tudo com os pés, não com a totalidade do corpo, e não tem que gerir amontoados de jogadores de forma disciplinada. Quando ocorrem no futebol, costuma ser mau sinal; no râguebi, é parte do jogo.

E sim, eu disse amontoados, sem aspas e não por acaso, já que é esse o sentido original da palavra ruck: a pilha de lenha ou o monte de palha, talvez com raiz no vocabulário escandinavo que entrou na língua inglesa na Idade Média. Já agora, maul vem do latim malleus (martelo) e scrum está relacionado com o inglês skirmish e francês escarmouche (escaramuça). A nomenclatura portuguesa pode ser inócua na referência a formações espontâneas e ordenadas, mas a origem da terminologia inglesa sugere a violência que terá estado presente nos primórdios da modalidade. Até o francês mêlée tem o sentido de rixa, a fazer lembrar mais um embate militar ou luta de bar e menos uma actividade civilizada.

Não espanta pois que o râguebi viesse a ser descrito como desporto de brutos. E apesar disso, é também a modalidade onde um jogador com o físico de um brutamontes pede desculpa ao árbitro. Onde Riccardo Brugnara vê um amarelo por uma falta sobre Jack Yeandle, mas aperta a mão do adversário antes de sair de campo. Onde João Belo faz um mea culpa, revertendo um cartão que seria vantajoso para Portugal, mas desonesto. Onde um embate entre Anthony Tuitavake e Ma’a Nonu deixa o último estendido no chão para consternação do primeiro, que se ajoelha ao lado do seu adversário enquanto Nonu é observado pela equipa médica. Onde Luke Charteris, com um dedo claramente deslocado, é auxiliado por Mike Brown numa partida tensa entre Inglaterra e o País de Gales. Onde há corredores de honra no final de cada jogo e o árbitro consegue ser objecto de um respeito tantas vezes ausente noutras modalidades. Nigel Owens é disso exemplo e o seu “this is not soccer” (isto não é futebol) é icónico.

Nas bancadas

O que é válido para quem joga é válido para quem assiste. Os ânimos podem exaltar-se, nem tudo são bons exemplos e certamente que não faltam treinadores de bancada, mas é verdade que, para um jogo de brutos, o râguebi tem o mérito de não ter que segregar adeptos por clube. Ou de escoltar claques como se fossem visigodos prestes a cair sobre Roma, proibir bebidas alcoólicas ou precisar de abrir um fosso que isole a área de jogo.

Os motivos para isso são, suspeito, complexos. Pode ter a ver com o facto de parte dos adeptos serem (ex-) jogadores que retiveram os valores da modalidade pela experiência em campo. Ou com o trabalho de formação do público levado a cabo pelos media, clubes e federações, em especial nos países onde o râguebi é um desporto de massas. Talvez seja a simples multiplicação de gestos que transmite mentalidades e faz prosperar os bons exemplos ou então há mérito no argumento de que a complexidade das regras eleva o nível de sofisticação do râguebi.

Afinal, trata-se de um desporto estratégico que está muito para lá do cliché da força bruta. São disso exemplo a multiplicidade de opções de que uma equipa dispõe quando beneficia de uma penalidade ou o valor diverso de diferentes formas de pontuar. E a isso juntam-se coisas como o papel especializado de vários jogadores, os detalhes da formação ordenada ou o caos aparente de um maul. O râguebi não é um desporto fácil, mas isso é parte do desafio e da sua riqueza.

Mas se as regras são um garante da identidade da modalidade, a questão torna-se mais complicada quanto ao público, já que não há cartões para quem assiste e o árbitro não tem como disciplinar os adeptos. Nas bancadas, o cavalheirismo do râguebi depende acima de tudo dos hábitos, formação e da boa vontade de quem assiste aos jogos. E ao parece, tradições como o silêncio aquando de uma conversão ou aplausos para grandes jogadas da equipa adversária é coisa que já viu melhores dias.

No futuro

A bem da honestidade, note-se que eu estou a escrever na qualidade de alguém que é relativamente novo ao râguebi e que por isso, conforme sugere o nome desta coluna, ainda observa a modalidade vista de fora. Mas estou a ser igualmente honesto se disser que os valores, não apenas a competitividade e complexidade, foram parte essencial do que me fez ficar adepto após a curiosidade inicial.

No panorama português, onde um único desporto tem um predomínio quase absoluto e é a referência incontornável, foi brutalmente refrescante ver algo onde o adversário é honrado e não apenas uma equipa contra a qual se joga. Onde os jogadores conseguem visitar os balneários contrários e partilhar bebidas e os adeptos não precisam de ser enjaulados. Onde o desporto é encarado não como uma batalha de ódios, mas uma actividade lúdica assente no respeito. Emocionante, cativante, excitante e importante, sem dúvida, mas onde há vida para lá dos oitenta minutos.

Isso cativou-me, inspirou-me, fez de mim um adepto. E sentiria por isso apreensão, já para não dizer tristeza, se viesse a prosperar o mau exemplo de quem vive o desporto como um conflito militar, confunde cânticos de apoio a uma equipa com a humilhação verbal dos adversários ou acha que a justiça desportiva, que tem regras e locais próprios, deve ser substituída por uma espécie de justiça popular que pune árbitros e jogadores no imediato.

O râguebi não é um desporto de brutos jogado cavalheiros por decreto da Natureza. Não é inato ou inevitável. É assim porque as pessoas fazem-no assim e pode por isso vir a ser outra coisa se desaparecerem mentalidades e práticas. Se, por exemplo, se perder de vista a ideia de que se deve honrar o adversário, quanto mais não seja porque sem ele não haveria jogo, ou que o árbitro não toma decisões segundo a vox populi que apupar mais alto ou berrar mais asneiras. O râguebi não é futebol e ainda bem, mas pode vir a sê-lo se se deixar cair o que tem de nobre.


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