Será que o Rugby perdeu os seus valores com o profissionalismo?
O rugby foi uma das modalidades a chegar mais tardiamente à era do profissionalismo, com o início desse período a registar-se em 1995. A chegada dos profissionais modificou para sempre o Planeta da Oval que iria enfrentar os aspectos positivos e negativos dessa decisão.
Ao fim de 23 anos do início da era mencionada, o rugby mundial depara-se com uma série de problemas que têm feito estalar o “verniz” em vários departamentos da modalidade e que por uma razão ou outra tem massacrado a sua imagem.
OS MALES DE UMA MODALIDADE EM SUPER EXPANSÃO
Há para todos os gostos e mencionamos algumas: falência técnica de várias federações, caso da Samoa ou Portugal, com o Canadá e Alemanha a aproximarem-se de uma situação igualmente crítica; modificação constante de regras de jogo, algumas sem viabilidade; falta de apoio às federações mais “pequenas”, que se vêem impedidas de utilizar os seus melhores XV; ausência de um real apoio à arbitragem e ao seu desenvolvimento; fraca atenção e desenvolvimento dos países que “integram” o Tier 3 e 2; descoordenação completa no apoio e coordenação a entidades continentais.
Estes são alguns dos pontos mais graves que têm sido vislumbrados facilmente na acção contemporânea da World Rugby. Para quem pense que estes são problemas menores e que isto “não importa”, engana-se profundamente, uma vez que estes pequenos erros e/ou fracassos podem levar a um desastre de grandes proporções a uma modalidade que sempre se disse e achou diferente.
O Planeta da Oval usou e abusou desse chavão da diferença, fazendo-o de uma bandeira que esticou a um ponto que começou a rasgar. A metáfora aqui é aplicada para a situação da modalidade no momento, que está a atingir um ponto de ruptura. Se os pontos já apresentados não são os suficientes há ainda mais alguns a tomar em consideração:
– A possível ruptura da federação sul-africana de rugby com as suas “irmãs” da SANZAR, com a possibilidade de todas as franquias ‘boks abandonarem por completo o Super Rugby;
– As selecções do Pacífico (e não só) têm sido forçadas a jogar sem o seu melhor XV, na maioria das vezes. Os seus internacionais são forçados a não aceitar a chamada à selecção, pois correm o risco do clube não renovar o vínculo ou colocá-los numa situação precária dentro do clube;
– Aumento de número de lesionados, em especial nas concussões com alguns médicos a apontar o dedo às novas regras de protecção na placagem;
– Até 2015, a World Rugby não se preocupou em incentivar a Associação de Jogadores Internacional, algo que foi agarrado agora por um par de atletas, como Conrad Smith, Jamie Heaslip e mais uns quantos;
Estes são mais quatro casos em relação ao que está mal dentro de uma modalidade que ainda está a descobrir o seu caminho no Mundo do desporto.
Relembrar que entre 2017 e 2018 existiram sérios problemas no rugby mundial, com o caso do uso de jogadores não-elegíveis por parte da Roménia, Bélgica e Espanha (penalizadas no entretanto, apesar de todas se defenderem com o facto de que ninguém da Rugby Europe, World Rugby ou FFR terem alertado para esse facto), do problema estrutural no Hemisfério Sul, da arbitragem sob suspeita no Bélgica-Espanha e as agressões ou actos contra o árbitro no final do encontro, do final apressado e mal explicado no Japão-Portugal do Mundial “B” de sub-20, na “expulsão” do RG Heidelberg da Challenge Cup porque tem o mesmo dono que o Stade Français, entre outras situações.
Uma fácil análise, quando foi a última vez que uma selecção de Tier2 ascendeu ao 1º patamar? Itália foi em 2000, Argentina não conta porque sempre fez parte de um círculo fechado do rugby mundial (a evolução foi espectacular, mas nunca foi totalmente um país sub-desenvolvido no rugby) e a Geórgia tem uma selecção e academias de alto nível, mas não tem grande hipótese de crescimento internacional e a situação a nível de clubes é medíocre. Ou seja, quando é que a World Rugby transformou uma selecção de tier3 em tier2 e de 2 para 1? Uma situação a reflectir.
Para além disso, uma parte dos seus adeptos tornaram-se autênticos fanáticos na luta contra o futebol e em afirmar que os valores do rugby são únicos, inabaláveis e intactos. Contudo, ao se entrar na veia do fanatismo, facilmente há uma distorção completa dos valores do rugby sem que as pessoas o notem.
FANATISMO DE OPINIÃO, UM PROBLEMA DO SÉCULO XXI
A “guerra” que se arranjou contra o futebol é demonstrativo do fanatismo, existindo quase uma necessidade de afirmar isto uma e outra vez, como se os adeptos da oval se sentissem reprimidos e com necessidade de fazerem valer a sua existência. Desengane-se quem pensa que o fanatismo está limitado só a uma franja de pessoas, pois já chegou ao ponto de seleccionadores nacionais proporem decisões radicais, distorcendo factos e contextos.
Um exemplo notório, foi como Daniel Hourcade, seleccionador da Argentina, tentou distorcer o Haka, afirmando que esta dança-tribal pré-jogo deveria ser abolida porque representa violência para com o adversário e que só é permitido porque é um produto de marketing, apelidando os All Blacks de “palhaços de circo” por efectuarem este pormenor que dá um gosto especial ao rugby internacional. Olhando para o caso nacional este tipo (ou outros tipos) de fanatismo são crónicos no rugby português.
O mais recente caso das despromoções da AEIS Agronomia e GD Direito tem dividido opiniões, criou uma fissura sem mãos a medir e que tem demonstrado o melhor e o pior da opinião da comunidade do rugby nacional.
Enquanto que uns afirmavam “fez-se jus à lei e ao direito e à verdade desportiva”, desconhecendo por completo como funciona o Direito do Desporto, a legislação que se fez uso ou se os argumentos jurídicos utilizados se são legais ou não, outros diziam que “uns murros, agarrões e empurrões fazem parte do rugby! Não há necessidade para castigos”, quando isto não faz parte da normalidade da modalidade.
O rugby é um desporto físico e agressivo, não é um desporto de violência e agressões gratuitas. Rugby é um desporto de união e colectivo, não é um desporto de extremismos e de penas de morte.
No que é que difere o rugby das outras modalidades afinal? Em alguns pontos, vejamos:
– é uma modalidade que concede 2ªs oportunidades, quer seja a jovens que têm dificuldade em se integrar no desporto/sociedade, ou atletas/dirigentes que são suspensos por algum tipo de agressão ou acto ilegal dentro da modalidade;
– é uma modalidade que deseja a integração e inclusão de todos, independentemente da raça, credo, sexualidade, religião;
– é uma modalidade que se preocupa com os atletas e esforça-se para encontrar formas de protege-los;
– é uma modalidade que implementa a paixão pelo desporto, sem descurar a possibilidade dos atletas estudarem e terem uma formação que lhes permita ter outras possibilidades no final da carreira;
– é uma modalidade que incentiva a consensos e preocupa-se não só a dar o exemplo, mas também de pensar em todas situações e de criar “pontes” para garantir estabilidade e concordância.
Existirão ainda outras valências e valores da modalidade, não há dúvida alguma e é só procurar mais casos práticos para perceber exactamente o que vale o rugby. Em termos de exemplos reais de tudo o que dissemos, há vários que valem a pena serem mencionados.
HÁ INTEGRAÇÃO SOCIAL E DESPORTIVA EM PORTUGAL?
Em Portugal o Belas e ER da Galiza são dois casos (de vários) de clubes que procuram assumir um papel de integração na comunidade e de tirar jovens de bairros problemáticos para lançá-los dentro do rugby.
Não é fácil este serviço que prestam à oval, pois estes “miúdos” sofreram um impacto negativo pelas experiências vividas nesse âmbito social. Mas o olhar de contentamento de pais, treinadores e jogadores quando conseguem ultrapassar esses obstáculos, inserindo-os num desporto que lhes permite divertir, conhecer a palavra companheirismo e de procurarem uma vida que não seja dominada pelas vicissitudes desses bairros problemáticos.
Vale a pena ver o novo campo do Belas, que é um complexo de elevado calibre e que vai garantir novos atletas para o rugby português. Lembrar que foram vários os jogadores que saíram daquele âmbito (nem todos vieram de bairros sociais ou de situações sociais precárias): os irmãos Vital (um é só um dos melhores fisioterapeutas do rugby português e o outro é o treinador da Challenge do CDUL), João Júnior (ex-internacional português que jogou no CDUL), Veltioven Tavares (uma das revelações do clube que depois deu o salto para o CF “Os Belenenses” e depois CDUL), entre outros.
A ER da Galiza tem feito um trabalho estupendo na integração e a forma como construiu um projecto diferente, Os Jaguares (com o St. Julians), merece ser lembrado como um bom exemplo a seguir. Não há espaço para arrogâncias ou lições de moralidade falsa, há uma preocupação sim para levar os seus pequenos atletas a desenvolverem-se como pessoas e atletas de uma forma exemplar.
Não esquecer o projecto dos Dark Horses, a primeira equipa em Portugal a abrir a porta a atletas homossexuais que até então não se exprimiam com tanta facilidade. Até há bem pouco tempo existiam vozes dissidentes que eram contra este clube e não reconheciam o seu carácter inclusivo. Contudo, estão aqui para ficar e continuar a dar uma lição ao rugby português.
Não serão estes projectos de se respeitar e valorizar? Porque é que há uma insistência de separação entre cores em Portugal e na construção de cercas que aumentam o vazio entre clubes e projectos de forma constante? Será um problema pela necessidade de se querer ganhar constantemente sem olhar meios para os fins? Ou medo que sem glórias, não há futuro?
REDENÇÃO, A PALAVRA A RETER PARA O RUGBY PORTUGUÊS
Por último, há que relembrar que as cenas graves que se registaram em Portugal podem criar futuros problemas em termos de investidores. A violência que se registou dentro de campo e fora, são péssimos cartões de visita e não há forma de o esquecer. Contudo, não pensemos que é por tomar decisões desproporcionais e excessivamente drásticas que se resolvem problemas de fundo.
Para os que sentem que se fez justiça e que a justiça desportiva tem de ser desproporcional para enviar um ultimato a todos e/ou impor que os valores sejam seguidos (mais uma vez a questão do fanatismo), estão a assimilar um erro grave de leitura da situação. O Mundo do rugby já ensinou que há formas de penalizar, castigar e pedir a reintegração sem entrar num extremismo puro.
Vejam-se estas três situações:
– Israel Folau é um devoto cristão na via da Assembleia de Deus e parte da sua recuperação enquanto pessoa deveu-se ao apoio da comunidade religiosa. Todavia, o super-defesa dos Wallabies exprimiu-se contra a homossexualidade por mais que uma vez. Na última vez que falou sobre o tema afirmou que os homossexuais só tinham um fim, o “inferno”.
Isto levantou uma discussão interna complicada e pediu-se a rescisão de contrato com o nº15 dos Waratahs. Se a ARU tivesse tomado essa decisão não teria levantado um problema ainda maior? Folau esteve mal, não o admite e mantém a sua postura, todavia vai cumprir serviço comunitário e há tentativas para reuni-lo com a comunidade LGBT. A diplomacia, que entrou invés de uma expulsão, não resolveu, para já, o problema?
– Dylan Hartley é um jogador que vive perseguido pelo seu passado de “agressor” nos campos de rugby. Foi suspenso um total de 60 semanas na sua carreira, um recorde na modalidade. Todavia, houve sempre oportunidade para reintegrá-lo na modalidade e esperar que com o tempo mudasse o seu comportamento. Desde 2015 que há um “novo” Hartley (nos últimos 100 jogos só levou um vermelho) e prova que criar consensos, procurar soluções, sem entrar no puro extremismo e exagero, resolve uma situação de forma positiva.
– A violência não faz parte do código de conduta do rugby, ou de qualquer outra modalidade. Contudo, isto não evitou que se gerassem casos graves na oval alguns deles que passaram em claro aos comités/comissões de disciplina. Richie McCaw foi um jogador odiado pela grande maioria dos seus adversários, pela forma como disputava o breakdown (nem sempre de forma legal) ou saía disparado da linha de defesa para placar (há um consenso que em alguns momentos estava em fora-de-jogo e que isso ajudava aos All Blacks ganharem mais facilmente), o que levou a que fosse agredido constantemente.
Os casos mais graves aconteceram quase sempre contra a Austrália, o que é “natural” dada a rivalidade entre as duas nações. Os Wallabies nunca perderam patrocinadores, nem os jogadores deixaram de ser apoiados pelas marcas… foram suspensos (outros não, de forma surpreendente), cumpriram o castigo e seguiram com as suas vidas. McCaw perdoou sempre o mal que lhe fizeram e disse “that’s footie” (footie é alcunha dado ao rugby na Nova Zelândia).
Os maus exemplos deixam marcas nas modalidades, mancham os nomes de jogadores, clubes e selecções… mas recuperar de uma má situação, demonstrar o lado diplomático, de resolução de problemas com as partes, verificando o que está mal e apresentar soluções e delinear penalizações adequadas dá outra proporção e dimensão ao desporto.
Resoluções extremistas resultam numa “lufada de ar fresco” durante algum tempo, mas o vislumbre de um caminho rígido, agressivo e que distorce leis não será que remove parte dos valores e capacidade de redenção que o desporto e, principalmente, o rugby devia ter? E quando se consegue provar que a decisão desproporcional estava baseada em maus pressupostos de jurisprudência?
No final da segunda década do século XXI, a World Rugby, Rugby Europe, SANZAR e outras entidades internacionais do rugby mundial têm de começar a procurar soluções em conjunto, de reunir consensos, de se preocuparem com o futuro da modalidade e de permitir aos “pequenos” ganharem a dimensão suficiente para ombrear com os “gigantes”.
O profissionalismo no rugby, o desenvolvimento do marketing e de cada vez maiores ligas, o aparecimento dos super-milionários, são preocupações que têm de ser entendidas por todos, de forma a se criar um Planeta da Oval com futuro a médio-longo prazo e não de viver ao ano. Os extremismos pertencem a uma era… ao passado.
É momento de todos reflectirem na sua postura, no discurso, de não ditar juízos e de tentar investigar pela sua própria mão… o rugby merece mais, não só como modalidade, mas como forma de estar.