Rugby XV feminino mundial está às portas de um Mundo novo

Fair PlayOutubro 11, 20217min0

Rugby XV feminino mundial está às portas de um Mundo novo

Fair PlayOutubro 11, 20217min0
O rugby feminino está em expansão e Victor Ramalho explica o que se passa, entre novidades e promessas de avanços no futuro

O rugby XV pelo mundo está a sair das sombras do rugby sevens para assumir protagonismo na construção de um calendário global robusto para o rugby feminino. As criações do WXV (a futura liga mundial, que começará em 2023) e do Super Rugby Aupiki neozelandês – versão feminina do Super Rugby Aotearoa que terá pontapé inicial em 2022 – e o amadurecimento de outras competições – como o Élite 1 francês e o Premier 15s inglês – trazem nova luz à categoria feminina, que irradia inclusive fora do mundo do “Tier 1”. Em novembro, uma visita brasileira a Portugal se insere nesse novo momento do rugby feminino. Vamos a alguns pontos importantes.

UM CAMPO ESPORTIVO DISPUTADO

Desde o anúncio da transformação do rugby sevens em desporto olímpico em 2009, o foco do World Rugby para o rugby feminino se tornou a modalidade reduzida. A possibilidade de profissionalização de atletas a partir dos recursos olímpicos se provou grande atrativo.

O efeito desse processo foi mais claro em países emergentes do rugby, o chamado Tier 2, onde muitos países descontinuaram suas seleções femininas de Rugby XV ou reduziram suas atividades. O qualificatório para o Mundial de 2017 foi o ponto mais baixo, com o menor número de países participantes já registado. Alguns países que já haviam jogado no passado o Mundial de XV sequer participaram do apuramento: casos de África do Sul, Samoa, Suécia, Alemanha, Cazaquistão.

Entretanto, passado o ciclo olímpico inaugural (2009-2016), o rugby XV voltou a ser colocado pelo World Rugby em posição de destaque. Se há um campo no qual o rugby mundial evoluiu e no qual o trabalho da atual gestão de Bill Beaumont tem sido positivo é o XV feminino. O Plano Estratégico 2017-2025 para o Rugby Feminino lançado pelo World Rugby é um documento de leitura obrigatória para se entender o assunto e é sugestão para o leitor do Fair Play se aprofundar no tema.

De todo modo, a importância histórica de tal documento precisa ser ressaltada. Como é óbvio em todos os desportos, o rugby também se construiu ao longo do tempo com um forte machismo arraigado. Até 1995, o World Rugby (na época conhecido como IRB) sequer reconhecia a prática do rugby feminino. As mulheres que lutavam para poderem praticar o rugby não contavam sequer com o reconhecimento das entidades que governavam o rugby e tiveram que se auto-organizar. Com algumas poucas notáveis exceções – como os casos das federações de rugby de Canadá, EUA, França e União Soviética, que reconheceram a categoria feminina ainda nos anos 80 – o rugby feminino precisou criar suas próprias entidades, de reconhecimento oficial limitado.

A WIRB – Women’s International Rugby Board, fundada em 1988 – foi a responsável pela criação do Mundial de XV feminino em 1991. A competição foi repetida em 1994 e somente em 1996 a WIRB foi, finalmente, integrada ao IRB (World Rugby), que assumiu a responsabilidade de gerir o rugby para as mulheres também. A data não é de se surpreender, uma vez que o ano de 1995 foi o marco para a história do rugby, quando o profissionalismo foi liberado e o IRB entrou numa nova era de ruptura com velhos conservadorismos. Finalmente, em 1998, o Mundial de XV feminino passou a ser organizado pelo IRB – que, no entanto, somente criou a versão feminina do Mundial de Sevens (da Rugby World Cup Sevens) em 2009.

Evidentemente, o rugby feminino não teve seus problemas resolvidos. Tratava-se apenas da infância de sua luta por espaço e igualdade – a qual ainda está em sua adolescência.

AS SELEÇÕES NACIONAIS: ENTRE ENTRAVES E OPORTUNIDADES

Voltando para a atualidade, o plano estratégico para o rugby feminino produziu um novo calendário internacional. É importante ressaltar que até 2017 a situação das seleções de XV feminino, inclusive as do “Tier 1”, era miserável. Com apenas uma competição anual bem estruturada, o Six Nations, a vida das demais seleções era extremamente incerta. Rugby Europe e Asia Rugby já tinham suas competições anuais, é verdade, mas em constante oscilação no que toca à organização e às participantes.

A Austrália, talvez, seja o caso mais dramático: uma seleção “Top7” do mundo, que não disputou nenhum test match em 2015 e em 2016, mesmo já classificada para o Mundial 2017. Isto é, entre o Mundial de 2014 e o Mundial de 2017, a Austrália não jogou nenhum test match.

A reorganização do Mundial em 2017, antecipado em um ano para ocorrer sempre 2 anos após o Mundial masculino foi o primeiro passo na reorganização do calendário do XV feminino de seleções. A pandemia obrigou ao adiamento do Mundial de 2021 para 2022, mas trata-se de um momento excepcionalmente, obviamente. Em 2023, terá início o novo WXV, a “liga mundial” feminina, que aumentará o calendário de test matches intercontinentais, ao passo que o lançamento do novo World Rugby Four Series – quadrangular anual entre Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Estados Unidos – suprirá a grande falha que é a inexistência do Rugby Championship feminino, por conta do atraso de África do Sul e, sobretudo, Argentina (único país do “Tier 1” mundial que sequer conta com uma seleção de XV feminino, fruto de um brutal e persistente machismo arraigado nos clubes de elite do país).

Em 2025, a expansão do Mundial de 12 para 16 participantes será crucial para o estímulo da modalidade em mais países e já teve como efeito o aumento de participantes no apuramento para 2021 (2022). Pela primeira vez na história, todos os continentes tiveram apuramento, com a América do Sul debutando em duelo entre Colômbia e Brasil, vencido pelas colombianas. A África restaurou seu apuramento e o rugby feminino sul-africano vem ganhando impulso a nível doméstico.

A quantidade de países africanos formando seleções de XV feminino nos últimos anos é fenomenal: Tunísia, Burkina Faso, Camarões, Zâmbia, Zimbábue, Madagascar… para não mencionar o reavivamento de Quênia e Uganda. Se olharmos para fora do “centro”, veremos novidades a todo o momento no rugby feminino.

Contudo, é preciso constatar como as estruturas do rugby não respondem de forma tão rápida ao desenvolvimento do feminino. O mais elucidativo é constatar que somente em 2016 foi criado o Ranking Mundial para o XV feminino, ainda que o Mundial exista desde 1991. Ademais, o rugby feminino jamais foi critério para a divisão de poderes no Conselho do World Rugby.

A Argentina tem o máximo de votos no Conselho, mesmo tendo um desenvolvimento pífio no rugby feminino, em contraste com a Espanha, forte no rugby feminino tanto no XV como no sevens, segue sem votos. Para se obter votos, é preciso disputar dois Mundiais masculinos seguidos, ao passo que o feminino nada conta. Por isso, Uruguai e Geórgia, que têm uma situação fraquíssima no rugby feminino, votam no Conselho, mas a Espanha não. Anacrônico.

Ainda que um terço do Conselho do World Rugby seja formado por mulheres – o que foi certamente um grande avanço recente – o rugby feminino não pesa ainda politicamente como deveria para obrigar a mudanças mais contundentes. Um exemplo importante disso é o Six Nations. A Espanha – novamente como exemplo eloquente – é nivelada entre as mulheres com Itália, Irlanda, Gales e Escócia, mas o Six Nations Feminino não pode se tornar Seven Nations para as mulheres por razões alheias ao rugby feminino.

Uma razão é a vontade de comercialmente espelhar o torneio masculino no feminino – mas o quão inflexível precisa ser isso? Hoje, é muito óbvio que se o interesse do rugby feminino fosse determinante, as espanholas disputariam a competição, ao menos como convidadas – como já o fizeram no passado, aliás. Porém, uma abertura às espanholas criaria argumentos a mais para os georgianos no masculino – e isso iria contra os interesses do Six Nations. Avanços e entraves.


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