O desporto português à beira de um abismo sem retorno

Francisco IsaacAgosto 30, 202010min0

O desporto português à beira de um abismo sem retorno

Francisco IsaacAgosto 30, 202010min0
A Direcção-Geral da Saúde lançou uma série de recomendações e propostas que não têm nexo e não observam as dificuldades das modalidades que completam o desporto português. Que futuro para o desporto em Portugal?

Recomendações ou obrigações? Reformulação, paragem ou “morte”? E quem assume os custos e despesas? Estas foram algumas das perguntas que cruzaram o pensamento dos directores de clubes e federações, de atletas séniores, veteranos ou de formação, de pais, mães e encarregados de educação e de todos aqueles que leram o comunicado da Direcção-Geral de Saúde em relação ao regresso de facto à actividade do quadro desportivo português.

A DGS NO CENTRO DO PROBLEMA: A ILOGICIDADE DA TABELA DO RISCO

O comunicado, que foi tão suave como um choque contra um panzer em alta velocidade, lançou todo o desporto português para um cenário cáustico, uma vez que para uns as regras parecem ter sido mais moderadas e facilitadas enquanto que outras práticas desportivas, como o Judo, Karaté ou Rugby, sofreram as piores consequências possíveis: testes 48 horas antes de cada jogo (séniores) e treinos sem contacto (e sem jogos ao fim-de-semana) para a formação.

Ou seja, para as modalidades de contacto (e está em itálico de propósito) é quase como um fim anunciado, pois se no aspecto dos séniores é quase inviável comprar os testes antes de cada competição (quanto mais atletas mais custoso fica para a tesouraria dos clubes e federações, com cada teste a rondar entre os 60 a 150€) então no que toca a obter inscrições de crianças e jovens até aos 18 anos será de todo impossível, preferindo uma parte dos pais alocar os seus educandos noutras modalidades em que efectivamente haja competição ou, no pior dos casos, removê-los totalmente da prática desportiva.

Esta amálgama de consequências nascidas devido à decisão da DGS (injusta e sem comunicação com federações ou a secretaria de Estado do Desporto e Juventude) pode implicar a morte completa de inteiras modalidades, comprometer várias gerações de atletas e que até podendo significar na desculturalização desportiva portuguesa, depois de nos últimos 20 anos ter-se lutado para atingir um nível amplamente mais superior (seja pelas medalhas somadas em Jogos Olímpicos, as conquistas europeias e mundiais de várias modalidades, entre outras situações de honras e glórias)  com o interesse público a reunir-se em redor de outros desportos para além do futebol.

Propomos uma matemática fácil para compreender e perceber o impacto económico e social usando o rugby como exemplo: imaginemos que 50% dos atletas jovens (entre os 6 e 18 anos) deixam de estar ligados à modalidade, perdendo-se quase 3000 inscritos num só ano. Se cada inscrito pagar 350€ ao seu clube – uma média geral para o que os emblemas nacionais aplicam no acto de inscrição no início de época – dá-se uma perda imediata de 1.050,000€ (sim, leram bem… 1 milhão de euros), que significa um buraco na saúde orçamental dos clube e por conseguinte federação.

O mais grave desta matemática é a seguinte equação adicional, que passa pelo abandono de jogadores e a perda total de inteiras gerações, pois mesmo que alguns atletas permaneçam, estes não poderam competir e pôr em prova as suas capacidades, sendo testados até ao limite em termos de durabilidade mental para aguentar treinos de distanciamento durante uma época inteira (quando nas actividades escolares vão andar sempre lado-a-lado com os seus colegas…). Se avançarmos três ou quatro anos no tempo, abrem-se consecutivas falhas nas equipas de formação seja nos sub-8/10/12/14/16/18 e séniores, colocando o rugby português no limiar de um abismo que será impossível de evitar. A qualidade individual e de jogo vai cair abruptamente, o rugby (e qualquer outra modalidade afectada pelas “recomendações” da DGS) vai sofrer um retrocesso quase sem precedentes e o apoio estatal será quase zero, independentemente da cor política ou partido que esteja no seu poder (quando actualmente já o é) – desde Março até Agosto de 2020 só por uma vez o primeiro-ministro de Portugal falou sobre a situação desportiva portuguesa.

Seria interessante saber qual foi a fórmula seguida pela DGS para atribuir o parâmetro de alto risco ao rugby, judo, karaté e outros desportos de combate, e não ao andebol, hóquei em patins ou basquetebol? Não são todas de contacto físico constante com os adversários? Mesmo que os atletas da bola oval ou dos kimonos estejam directamente mais envolvidos a nível físico, a verdade é que no andebol há um constante agarrar, puxar e embate, num espaço amplamente mais pequeno que o campo de rugby e com mais pessoas envolvidas que um tatami, assim como no hóquei em patins e as restantes modalidades colectivas com ou sem bola, lembrando que estas são jogadas em espaços fechados.

O porquê da distinção é fulcral, mas ainda mais importante é tentar perceber qual foi a estratégia postulada pela DGS e se houve alguma espécie de contacto com federações e equipas médicas com experiência neste campo para o desenvolvimento das regras e tabelas de risco.

É dúbio que o Comité Olímpico Português (a instituição que mais críticas tem feito à DGS e à directora Maria Graça Freitas) tenha alguma vez sido ouvido sobre as possíveis medidas, as dificuldades financeiras de cada modalidade e o assumir do risco em prol de manter o projecto desportivo-social português num estado satisfatório depois de meses de total paragem que poderá já ter danificado parcialmente os próximos anos de crescimento e sustentabilidade, dando a parecer que o documento foi construído unica e exclusivamente por cientistas e técnicos desalojados da realidade do desporto português, completamente despreocupados com a realidade e mais fixados nos números e questões teóricas que têm uma aplicabilidade de baixo sucesso no final de contas. Como diz José Manuel Constantino, Presidente do COP,

“Por outro lado, há um conjunto de disposições que estão contidas neste documento que não respondem às exigências da situação, desde logo a circunstância de não abranger os escalões de formação. “Mas o documento, relativamente a outras matérias, revela desconhecimento da realidade. De que vale falar de departamentos médicos do clube quando a maioria dos clubes não tem departamentos médicos? Nem há médicos com especialidade de medicina desportiva. Isso pode ser garantido por algumas federações e alguns clubes, mas a generalidade não comporta uma exigência desta natureza.”.

Este etiquetar de risco alto ou médio estranhamente parece não afectar na mesma dose o futebol, que tendo a maior parte dos atletas jovens ou séniores em território luso, poderá nem necessitar de fazer testes minimamente credíveis, conferindo uma imagem de que esta modalidade tem um estatuto mais elevado em comparação com as outras e de que até pode estar a ser beneficiado com estas medidas, podendo assim aumentar o número de inscritos nos próximos meses em consequência da continuação da inactividade quase geral de várias outras.

Por outro lado, há vozes que apoiam uma reformulação temporária das regras e lógica das várias modalidades como no rugby, com propostas da retirada de tudo possa ser etiquetado como contacto. Mas isso, no seu cerne, não é uma solução, nem adaptação, porque efectivamente não é rugby (nem râguebi), já que se removem totalmente todas as características que tornam-na naquele tipo de modalidade. A placagem, o ruck, a disputa física e técnica formulam em boa parte as decisões da equipa detentora da posse de bola e tentar formatar isto tudo no sentido de ser touch rugby (em que há contacto, pois os atletas têm de tocar no adversário para parar a progressão de bola) ou tag rugby (contacto mais limitado, mas é impossível não se dar alguma espécie de contacto também) não é um caminho viável.

Foto: Luís Cabelo Fotografia

OS LESADOS DESPORTIVOS QUE PODEM SIGNIFICAR UM RETROCESSO NO DESPORTO PORTUGUÊS

A saúde pública é uma das causas mais importantes das sociedades contemporâneas do século XXI, não há dúvidas disso… contudo, este tipo de medidas não são só excessivas como desmedidas e que vincam a não-cooperação da DGS com a estrutura desportiva portuguesa, que tem vindo a ser colocada num patamar inferior de importância por toda a classe política durante estes meses de aparecimento e expansão do SARS-CoV-2, não tendo noção do impacto do desporto na vida dos jovens praticantes, atletas, clubes, federações e até do Estado Português.

A expressão matar o paciente com a cura” aplica-se na totalidade ao cenário actual, com as responsabilidades a terem de ser imputadas quase por completo à Direcção-Geral de Saúde, que não se apercebeu/apercebe da realidade da malha desportiva nacional tanto no que concerne às dificuldades financeiras ou estruturais, mas também há inexistência de um lobby desportivo uno e altamente sólido com poderes para montar um sistema de confiança e de segurança para com os atletas e todos os outros intervenientes.

O permitir que as recomendações ganhem um poder vinculativo, será tido então como um retrocesso total no desporto português e que implicará a caída da sua qualidade e quantidade (e se surgir um partido de extrema-direita a querer se aproveitar da situação para angariar seguidores por via de ir contra as medidas da DGS não será de estranhar), a defesa destas “medidas” como necessárias para combater a pandemia actual (que se tornou endémica, como foi apontado por vários virologistas) só pode ser tida como uma postura e ideia entendida como um erro gritante, não compreendendo que isto representa o fim de postos de trabalho, de dinamismo económico e social (quantos jovens tiveram no desporto uma “casa” acolhedora e que lhes permitiu olhar para a vida de outra forma) e de criação de outras dificuldades mais preocupantes que a situação actual. Novamente é importante olhar para as palavras do máximo responsável do COP para perceber o potencial desastre que se avizinha caso estas recomendações passem a ter valor vinculativo,

“Nos escalões de formação eu não vejo no documento escapatória para a situação, mas posso estar a ver mal e isso tem custos muito significativos relativamente ao tecido associativo.”.

É o momento ideal para se dar a união do tecido associativo português independemente das cores clubísticas ou dos problemas entre X ou Y dirigentes/modalidades, de modo a combater e a alterar uma nova (ir)realidade que está a tentar ser imposta sem que haja consentimento e participação de quem vai ter de acatar uma série de medidas mal esboçadas e sem um pensamento crítico e argumentado por detrás. Porque para a camada política e institucional festejar medalhas, prémios, honras e glórias existe sempre tempo de antena e interesse, mas quando se dão as dificuldades os apoios são escassos, a compreensão pública ainda menos e a despreocupação é quase total para quem não tem noção dos problemas e do quão difícil é tentar fazer, dirigir, estimular o desporto em Portugal.


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