O estranho caso de Ngani Laumape

Francisco IsaacJunho 17, 20216min0

O estranho caso de Ngani Laumape

Francisco IsaacJunho 17, 20216min0
A saída de um dos melhores centros da Nova Zelândia poderá ser algo mais que a procura de uma vida melhor? A análise à situação de Ngani Laumape

Mudanças, saídas, reformas, reformulações, reestruturações, novas visões e perspectivas, alterações administrativas, etc, qualquer uma destas acções fazem parte do quotidiano das práticas profissionais laborais, mas não deixam de ser cenários por vezes difíceis de aceitar ou de viver com, como por exemplo, a de Ngani Laumape. O centro tornou-se numa das lendas-vivas dos Hurricanes, tendo feito parte daquele elenco que conquistou o título de campeão do Super Rugby em 2016 (até à data o único da franquia de Wellington), e, entre os vários dados e pormenores da sua passagem por esta equipa neozelandesa, o centro amealhou um total de 48 ensaios em 83 jogos, perfilando-se como um dos maiores marcadores de sempre do Super Rugby.

Contudo, e apesar de ser um dos melhores jogadores a actuar no patamar de franquias do Hemisfério Sul, Laumape optou por abandonar a Nova Zelândia para aceitar um contrato milionário em França, mais concretamente ao serviço do Stade Français, numa altura em que há uma onda de dúvidas em relação ao real detentor da camisola nº12 dos All Blacks. Sem Jack Goodhue (lesionado até 2022), não há nenhum jogador com perfil para entrar directamente na opção de 1º centro, já que Rieko Ioane, Anton Lienert-Brown, Braydon Ennor ou Peter Umaga-Jensen (todos presentes na última convocatória da Nova Zelândia para os Tri-Nations de 2021) são todos unidades para serem utilizados como nº13, lançando assim uma debate acalorado sobre quem pode assegurar este lugar que está em aberto para a janela de jogos internacionais.

Por isso, quem poderia, hipoteticamente, subir ao relvado como 12? As opções reais para o futuro dos próximos dois anos são: TJ Faiane (Blues), Quinn Tupaea (Chiefs), Scott Gregory (Highlanders) e, o mais certo a agarrar a oportunidade, David Havili (Crusaders). Ou seja, perante a lesão actual (e futuras) de Jack Goodhue e o “adeus” de Ngani Laumape, os All Blacks terão de forçosamente formar alguém que se enquadre no idealismo táctico e estratégico de Ian Foster, que nunca se mostrou preocupado em 2021. Antes de divagarmos sobre quem pode assumir o lugar de 1º centro, é importante perceber o porquê da saída de Laumape, que consequências esta situação pode implicar no futuro e que preocupações deverá gerar na gestão da federação de rugby neozelandesa.

Porque é que o centro dos Hurricanes optou por emigrar para França? De acordo com uma entrevista prestada, Laumape tinha o desejo em chegar a acordo com a NZRU para se manter nos Hurricanes e tentar solidificar a sua presença nos All Blacks, mas a contraproposta da federação foi bem inferior ao esperando, com a mesma instituição a querer renegociar uma renovação desde que o centro aceitasse uma redução salarial, pois não o viam/vêem como um activo importante para a selecção principal.

Sem que fosse possível atingir um compromisso, ambas as partes decidiram pôr um fim às negociações e Ngani Laumape acedeu ao Stade Français, assinando um contrato de dois anos por um valor entre 1/1,2M€ por ano, o que assegura um futuro economicamente estável ao internacional neozelandês por 16 ocasiões. Três semanas após o anúncio, o centro que já jogou inclusive Rugby League (ao serviço dos New Zealand Warriors entre 2012 e 2015), confidenciou que a forma como a federação neozelandesa o tratou tanto antes, durante e após as negociações foi de uma desilusão total, de como a sua manutenção em território neozelandês não era de todo importante.

Esta já não é a primeira vez que um atleta profissional de rugby da Nova Zelândia deixa escapar queixas para com a atitude negocial da NZRU, como aconteceu com Charles Piutau, ficando expostas algumas debilidades de uma federação que tem revelado dores de “crescimento” (o negócio Silver Lake é um caso onde se deu choque entre a associação de jogadores e a instituição que gere todo o rugby nesta nação oceânica) e um problema crítico para perceber que a palavra “profissionalismo” não pode significar a inexistência de responsabilidades humanas.

Este comportamento da federação para com um certo e determinado tipo de atleta também é extensível aos adeptos e alguns comentadores, assumindo estes uma postura minimamente vexável quando falam de atletas nascidos ou com origens familiares nas Ilhas do Pacífico, seja Fiji, Tonga ou Samoa, impondo um discurso de que esses ditos jogadores só são bons na vertente física, deambulando assim na ideia de que carecem de qualidades mentais para compreender o jogo ou se desenvolver como jogadores.

Charles Piutau foi um desses casos, e Ngani Laumape poderá ter sofrido do mesmo mal, pois Ian Foster tentou postular um discurso de que o centro não possui a destreza ou a visão de jogo necessária para servir de apoio ao médio-de-abertura, faltando-lhe poder de comunicação, jogo ao pé e um skill mais apurado na transmissão de bola, elementos supostamente imprescindíveis para quem se queira assumir como centro dos All Blacks.

Porém, e apesar de se respeitar a posição do seleccionador neozelandês, a verdade é que o agora nº12 do Stade Français tem essas competências dentro de si, especialmente o jogo ao pé (duas assistências em 2021, algo que nem Anton Lienert-Brown ou David Havili o fizeram) e a capacidade de comunicar, suscitando a dúvida se Laumape alguma vez foi visto não como uma solução “B”, mas como o possível dono e senhor do lugar de 1º centro. O tema da honestidade é um dos problemas actuais entre jogadores e administração da NZRU, escasseando esse elemento cada vez mais na relação profissional entre os dois “mundos”, algo que já resultou no afastamento de vários activos ainda em idades de ser referência dentro do universo do rugby neozelandês,

Ngani Laumape é mais um nome numa longa lista de atletas que abandonaram a Nova Zelândia quando ainda detinham vitalidade para representar os All Blacks, com essa ausência a vir-se a notar num futuro próximo. Victor Vito, Malakai Fekitoa, Charles Piutau, Charlie Faumuina, Owen Franks, Waisake Naholo, são algumas das estrelas que saíram do radar da selecção neozelandesa quando se encontravam no seu melhor, com essa saída a ser fruto quer da falta de capacidade negocial da federação, da vontade dos atletas em conhecer algo diferente, da inexistência de um projecto de futuro e da falta de condições para se manterem em “casa”, com estes problemas a poderem vir a subir de tom com o nascimento da nova Top League japonesa, que já “roubou” 10 atletas em menos de duas semanas.

 


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