O caótico calendário mundial do basquete feminino
Há menos de um ano, a Fiba realizava o Campeonato Mundial de Basquete Feminino na Austrália. Para além dos resultados na quadra, ficou evidente o buraco negro do calendário mundial, problema antigo e sempre varrido para baixo do tapete. Várias situações enfraqueceram o Mundial e grande parte das jogadoras e comissões técnicas explicitou a insatisfação com o calendário.
A começar pela Bósnia-Herzegovina, cuja estrela Jonquel Jones atravessou o globo para chegar a tempo da fase de grupos. Após a derrota de seu time nas finais da WNBA, a pivô não teve um dia de descanso e embarcou rumo à Austrália; sem tempo de ambientação do fuso horário e sem tempo de treino junto a suas companheiras de seleção, o desempenho ficou aquém do esperado, resultando na precoce eliminação bósnia.
Mesmo a potência do basquete feminino sofreu com a sobreposição do calendário da Fiba com o da WNBA. No elenco campeão mundial, 5 jogadoras apresentaram-se à seleção dos Estados Unidos já com a competição em curso – Brionna Jones e Alyssa Thomas, derrotadas na fina da liga, chegaram a tempo da estreia, enquanto A’ja Wilson, Chelsea Gray e Kelsey Plum, vencedoras da WNBA, incorporaram-se após a primeira partida.
A situação afetou a todos, com declarações públicas da técnica sérvia Marina Maljkovic. Parecia que o desconforto geraria alguma reação pela federação – nada mais enganoso. Bastou a janela Fiba acabar e o circuito de clubes retomar as atividades para o assunto ser silenciado. Novamente.
Passado um ano, às vésperas do início da temporada 2023 da WNBA, o problema retornou, com mais força. No último acordo assinado entre a WNBA e a associação de jogadoras, a cláusula de prioridade trouxe conflitos para Gabby Williams. Pela regra, para ter direito de jogar a WNBA, ela precisaria estar disponível no início da pré-temporada, ocasião em que disputava as finais da liga francesa por seu clube.
A estrela francesa Marine Johannes vive uma situação ímpar, assumindo individualmente um impasse colocado por instâncias maiores. A federação francesa cortou-a da seleção após ela manifestar interesse em disputar a temporada da WNBA; de acordo com a ala-armadora, ela buscou negociar com as partes e se comprometeu a cumprir os prazos legais para disputar a WNBA e o Eurobasket. A federaçao manteve-se intransigente e, segundo suas regras, a ausência no torneio continental tiraria suas chances de disputar as Olimpíadas em 2024, a ser disputada na França.
Não se trata de um problema novo, sequer o peso trazido sobre as jogadoras, obrigadas a optar entre a seleção e a chance de disputar a WNBA. Alba Torrens, lenda espanhola e melhor jogadora europeia por quase uma década, nunca foi aos Estados Unidos em função da seleção. Emma Meesseman sempre sofre com essa escolha e, ano a ano, sua condição na WNBA varia.
Mas há algo sutil ocorrendo, evidente no desejo de Johannes em jogar a WNBA. A liga cresce gradativamente e atrai olhares e investimento, criando expectativa entre as jogadoras. Mesmo as atletas asiáticas, muito resistentes a disputar vaga nos elencos da liga, migraram em peso (nos camps da pré-temporada, havia quatro chinesas e uma japonesa). À medida que o mundo do basquete feminino se integra, a competitividade cresce; pór outro lado, as instituições seguem pensando apenas em seus interesses intestinos e se negam a discutir um modelo mais viável para as estrelas do jogo.
A WNBA não abre mão de seu calendário, enquanto a Fiba segue negligenciando o basquete feminino. A tênue estabilidade foi por terra quando a federaçao internacional decidiu mudar o calendário e abrir “janelas Fiba” durante a temporada de clubes – com intuito de aproximar as seleções de sua torcida e aumentar a quantidade de partidas. Acontece que esse modelo teve como base o basquete masculino; no bojo das mudanças, o Mundial perdeu 4 participantes (de 16 para 12 seleções, enquanto o masculino inchou com 32 seleções). As mudanças impostas pela Fiba não levaram em consideração o circuito de base, ou os torneios 3×3, que seguem o modelo de calendário anterior, disputados na inter-temporada dos clubes.
Sequer precisamos relembrar a prisão de Brittney Griner na Rússia para explicitar as dificuldades vividas pelas atletas. Se sequer FIBA e WNBA mostram disposição em dialogar, quem sofre o peso são as jogadoras, as quais individualmente arcam com suas escolhas – ora pelo aspecto financeiro, ora pelo desejo de vestir a camisa da seleção.
Presenciamos um movimento muito inspirador pela associação de jogadoras da WNBA durante a pandemia, as quais se uniram para impor suas condições à liga. A temporada de 2020 ficou marcada pelo ativismo e protagonismo das atletas, inclusive cancelando jogo em função de fatos extra-quadra. No âmbito mundial, porém, com a profusão de interesses, a coletividade de jogadoras se enfraquece e nenhuma medida é esboçada para solucionar os problemas de calendário.
Longe de uma resolução, a tendência é o acirramento dos conflitos. Mesmo com o passo atrás da Fiba, que anunciou o retorno de 16 seleções no próximo Campeonato Mundial, os encavalamentos seguirão e o fortalecimento da WNBA tende a trazer mais tensionamento para o basquete feminino.
As tentativas são tímidas e enquanto reinar o descaso da Fiba pelo naipe feminino, assim como o silenciamento/silêncio das jogadoras, o imbróglio voltará a aparecer, ano após ano. Ao invés da evolução da modalidade, temos a fragmentação e o enfraquecimento, com as responsabilidades pelas escolhas pairando unicamente sobre as jogadoras, aquelas que deveriam ter condições de demonstrar seu talento em quadra.
Há muita coisa em jogo, com muitos lados a serem considerados e ouvidos. Tratar o calendário de forma integrada não requer uma saída fácil, porém alguém tem que lançar a bola ao alto para iniciar essa partida. Enquanto aguardamos, nos conformamos com a ausência de Johannes do Eurobasket (e quiçá da Olimpíada), ou com o desempenho inferior de Jonquel Jones no Mundial.