E se fosse hoje?

Pedro PiresJunho 3, 202011min0

E se fosse hoje?

Pedro PiresJunho 3, 202011min0
Pedro Pires faz uma viagem no tempo para explicar os problemas de luta pela igualdade e fim do racismo no desporto. Mas e se fosse hoje, teriam aquelas acções o mesmo impacto?

É um tema incontornável e a World Athletics fez questão de assinalar a situação atual nos EUA, colocando-se do lado da igualdade e justiça, fazendo alusão a um dos acontecimentos mais marcantes da história dos Jogos Olímpicos. Felizmente – nesta matéria – para o COI, os  Jogos de Tóquio não se iniciarão daqui a algumas semanas, como estava calendarizado. No entanto, fica a pergunta: como serão vistos eventuais protestos do género nos Jogos Olímpicos de Tóquio?

Os 200 metros dos Jogos de 68

Estávamos em Outubro de 1968. A situação social e racial nos EUA continuava em ebulição, depois de um verão marcado por manifestações e protestos nas ruas. Poucos meses antes, em Abril desse ano, Martin Luther King Jr., uma das figuras maiores da luta pela igualdade e direitos civis nos EUA, tinha sido assassinado a sangue frio em Memphis.

Poucas mudanças significativas se faziam sentir e os negros norte-americanos continuavam nas ruas, a exigir melhores e mais justas condições de vida. Antes mesmo do envio da comitiva norte-americana para os Jogos de Tóquio, vários atletas norte-americanos quiseram fazer um boicote aos Jogos, protestando contra a situação interna no país. Tommie Smith e John Carlos estavam entre eles, mas acabaram por ser convencidos por Jesse Owens – o herói dos Jogos de 36, em Berlim – que o melhor era marcarem presença.

No México, as eliminatórias de 200 metros dos Jogos Olímpicos, já tinham prometido muito, com vários recordes olímpicos a caírem de forma sucessiva, quer pelo australiano Peter Norman, quer pelos norte-americanos Tommie Smith e John Carlos. No apuramento para esses Jogos, a luta já vinha acesa, com Carlos a bater Smith, nos Trials norte-americanos, e, logo, no que seria um recorde mundial, em 19.92 segundos.

A marca nunca chegou a ser ratificada como recorde, devido às sapatilhas (já naquele tempo, era um assunto controverso…), mas isso pouco importou após os Jogos de 68. Nas semifinais, ambos os norte-americanos venceram as suas séries, em marcas que seriam recordes olímpicos: Carlos em 20.12 segundos e Smith em 20.14 segundos. No entanto, era público que Smith se tinha lesionado na caminhada para a final, o que, aliado à vitória de Carlos nos campeonatos norte-americanos, faria, deste segundo, o grande favorito.

A final foi uma das mais emocionantes da história dos 200 metros e o melhor que o mundo alguma vez havia visto em Jogos Olímpicos. Carlos partiu rápido, provavelmente rápido de mais, querendo assumir o seu estatuto de favorito. No entanto, já bem depois da curva, Smith assumiu o comando da prova e disparou para um impressionante recorde mundial, em 19.83 segundos, mesmo festejando antes da chegada à meta. Foi a primeira vez que, legalmente, a barreira dos 20 segundos foi batida e esse recorde mundial durou 11 anos.

John Carlos foi Bronze, em 20.10, tendo sido ainda ultrapassado pelo australiano Peter Norman, que bateu o recorde australiano em 20.06, recorde nacional e continental (da Oceânia), que se mantém até aos dias de hoje.

A cerimónia e uma mensagem para a história

Apesar da prova ter sido fantástica, foram os momentos posteriores à mesma que a farão ser para sempre recordada. No mesmo dia, a 16 de Outubro, os atletas subiram ao pódio para receber as suas medalhas. Os dois atletas norte-americanos, Smith e Carlos, receberam as suas medalhas, sem sapatilhas, apenas com meias pretas, representando a pobreza negra. Smith com um cachecol preto, a simbolizar o orgulho negro e Carlos com o seu casaco aberto, a simbolizar os trabalhadores de classes mais baixas. Peter Norman, o único atleta branco do pódio – e que também não concordava com a discriminação e segregação existente na Austrália – não quis ficar, também ele, fora do protesto e pediu aos colegas um símbolo do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos, que também foi utilizado por Smith e Carlos. Os dois norte-americanos tinham combinado trazer as suas luvas pretas, mas Carlos esqueceu as suas, sendo que Norman sugeriu que cada um usasse uma delas.

Quando o hino nacional norte-americano entoou no estádio, ambos os atletas fecharam o punho e levantaram a mão, num gesto que foi, de imediato reconhecido como a saudação do movimento “Black Power” – embora Carlos utilizasse a mão esquerda, ao contrário da direita, que é a utilizada nesse gesto. Os atletas foram apupados no estádio pelo seu gesto e, ao deixarem o pódio, Smith referiu “se eu ganho, sou um americano, não um negro americano. Se eu faço algo mal, sou um negro. Nós somos negros e somos orgulhosos de o ser. A América negra irá entender o nosso gesto de hoje”.

O (vergonhoso) depois

O que hoje é, por todos entendido, com um dos momentos mais emocionantes e poderosos da história dos Jogos, não o foi no seu tempo, tal como tantas vezes acontece. Os dois atletas foram expulsos do hotel da comitiva norte-americana e mandados para casa, por exigência do Comité Olímpico Internacional.

O Comité norte-americano proibiu também que qualquer outro atleta mostrasse solidariedade ou fizesse qualquer gesto do mesmo género, ameaçando com a expulsão da comitiva e suspensão, o que, ainda assim, não impediu que ocorressem outras manifestações, mais ou menos óbvias, ao longo do evento.

O norte-americano Avery Brundage era o presidente do COI à época e não escondeu a sua insatisfação pelo gesto, considerando que era um assunto político norte-americano e que foi um “gesto sujo dos negros contra a bandeira norte-americana”. Em 1936, quando era presidente do Comité norte-americano, Brundage, não tinha visto nenhum problema nas saudações nazis em 1936, considerando gestos naturais para a época.

Depois desse gesto, tudo mudou para os atletas. Chegados a casa, foram suspensos da equipa norte-americana e choveram ameaças de morte. Embora 1969 tenha sido um excelente ano em termos de resultados para Carlos, em termos financeiros, nada chegava aos bolsos.

Ninguém o quis empregar e teve que se sujeitar a outro tipo de trabalhos, tendo sido segurança num discoteca ou contínuo numa escola. Nas ruas, ele, a sua mulher e os seus filhos eram constantemente insultados e agredidos, o que gerou uma situação incontrolável, levando ao fim do seu casamento.

Depois de tentar o futebol americano com pouco sucesso, Carlos apenas voltou ao Atletismo em meados da década de 80, tendo trabalhado para o comité olímpico norte-americano na preparação dos Jogos de 84, em Los Angeles. Para Smith, o “pós” foi semelhante no que diz respeito ao seu acolhimento, e embora também tenha tido pouco sucesso posterior no Atletismo ou no futebol americano, tornou-se professor assistente de educação física numa universidade e auxiliou a comitiva norte-americana em campeonatos posteriores, já na década de 90.

Ainda assim, ambos os atletas apenas começaram a ver a sua imagem totalmente limpa já neste novo milénio. Vários documentários e homenagens sucederam-se após 2005, ano em que a Universidade de San Jose homenageou os atletas, depois de um estudo aprofundado desenvolvido por um estudante dessa mesma universidade. Dessa homenagem, resultou a famosa estátua que perpetua o famoso gesto para a história.

Smith e Carlos em frente às estátuas (Foto: Chicago Sun Times)

Também para o australiano Peter Norman, o acolhimento não foi o melhor. Ostracizado no seu país por ter apoiado e participado no protesto, Norman alcançou por 13 vezes os mínimos para os Jogos de 1972, mas não foi selecionado pela sua própria federação. Anos mais tardes, lesionou-se num evento de caridade, tendo evoluído para uma doença, que levou a que uma das suas pernas fosse amputada. Seguiu-se um período de depressão, álcool e vício em medicação analgésica. Apenas em 2012, o parlamento Australiano pediu formalmente desculpas a Norman pela forma como foi tratado no seu regresso a casa. Esta foi uma homenagem póstuma, seis anos depois da sua morte. Norman havia falecido em 2006, devido a uma paragem cardíaca e o seu caixão foi transportado por Smith e Carlos, que continuaram seus amigos após os Jogos de 68.

Peter Norman faleceu em 2006 (Foto: The Conversation)

E hoje, como seria?

É sempre difícil fazer paralelismos e suposições baseadas em diferentes enquadramentos  temporais. O mundo mudou muito desde a década de 60, mas não terá mudado o suficiente para que, daqui a 50 anos, não sintamos vergonha de algumas das reações que marcam a atualidade. Em 2016, Colin Kaepernick, jogador de futebol norte-americano, foi fortemente criticado por protestar em silêncio durante o hino norte-americano. Kaepernick limitou-se a ficar sentado e, posteriormente, ajoelhar-se, enquanto o hino tocava.

O simbolismo de Kaepernick num outro tempo Foto: The Undefeated

Os motivos pelos quais o norte-americano protestou, evoluíram no tempo, mas são substancialmente os mesmos: a luta pela igualdade racial e contra a violência policial. Desde que terminou o seu contrato em 2017, o atleta não mais foi contratado por nenhuma equipa da NFL. Os tempos são diferentes, sim, e isso faz com Kaepernick não tenha sido ostracizado da mesma forma que Smith ou Carlos foram. Financeiramente, até recebeu novos e importantes apoios e patrocínios de algumas das maiores marcas a nível mundial, que querem, também elas, marcar uma posição face às injustiças ao redor do mundo. É verdade que Smith e Carlos tinham muitos a perder do que Kaepernick. Ainda assim, as críticas que este recebeu foram mais do que muitas e foi impossibilitado de continuar a fazer o que mais gosta.

Já esta semana, o Comité Olímpico Norte-Americano publicou, nas redes sociais, uma mensagem de apoio ao atletas negros. No entanto, a mensagem do Comité foi mal recebida por vários atletas, que acusam a organização de hipocrisia e de estar apenas a querer embarcar numa aparente onda de solidariedade, que, para muitos, não passam de palavras ocas. Uma das mais críticas foi Gwen Berry, recordista mundial em pista coberta e campeão pan-americana, ao ar livre, no Lançamento do Martelo.

Berry está, neste momento, a cumprir um período de pena suspensa. E porquê? Porque em Lima, no ano passado, aquando da conquista da medalha de Ouro, levantou o seu punho no pódio, replicando exatamente o mesmo gesto que Smith e Carlos fizeram no México, 51 anos antes. Os motivos dos protestos de Berry foram os mesmos, mas também aí o Comité Olímpico Norte-Americano entendeu tratar-se de um assunto político uma violação das regras internas. Berry exige agora um pedido de desculpas formal e o levantamento do seu castigo, que levou à perda de vários patrocínios.

Já este ano, em Janeiro, Thomas Bach, o presidente do COI, lembrou que manifestações políticas são proibidas nos pódios, assim como em todas as instalações olímpicas. Bach disse que os atletas não devem usar os Jogos para promover as suas causas. Resta saber, agora, o que pensa Bach de toda a presente situação e de como o COI irá atuar em futuras situações. Sim, é certo que não haverá Jogos daqui a pouco mais de um mês, como estava previsto. Mas a verdade é que é muito pouco provável que algo mude substancialmente até aos Jogos de 2021. É quase certo que atletas, norte-americanos ou não (não esqueçamos o caso do etíope Feyisa Lilesa nos Jogos do Rio), irão manifestar-se nos próximos Jogos. Manifestações políticas ou luta pela defesa dos direitos humanos? Resta esperar e desejar que o COI se coloque, pela primeira vez na história, do lado certo, na altura certa.

Berry ainda cumpre suspensão (Foto: ESPN)

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