E agora, José? Balanço do basquete feminino brasileiro em 2024
Todo fim de ano enseja reflexão e revisão. A retrospectiva dos últimos meses gera novas perspectivas e inaugura um novo ciclo, marcado pela renovação e pela esperança. Se, entretanto, o tema for o basquete feminino brasileiro, o futuro está fadado a repetir o passado. O último texto desta coluna em 2023 trazia uma lista de desejos para 2024 (Desejos para o basquete feminino em 2024) o ano mal terminou mas já podemos partir pra retrospectiva.
Infelizmente, o texto final de 2023 parece profético no quadro pintado do basquete feminino brasileiro. “O basquete feminino corre atrás do próprio rabo há uma boa década e a brincadeira não parece estar perto do fim” – à época, a esperança pontual residia na classificação olímpica para Paris, reforçada pelos (raros) esforços da Confederação Brasileira de Basquete (CBB) em sediar o quadrangular.
Quem acompanha esporte no Brasil sabe da importância da presença em Olimpíadas. Em um país monopolizado pelo futebol, é a visibilidade e os recursos públicos propiciados pela participação olímpica os principais fomentadores das outras modalidades. Os esportes classificados recebem valores maiores e podem se desenvolver; sem contar a facilidade em atrair patrocínios de empresas privadas. Acontece que o basquete feminino do Brasil não participa de Jogos Olímpicos desde 2016 (quando sediamos a competição).
O que se pretendia uma festa em Belém, acabou um enterro, mais um episódio de fracasso para uma modalidade tão combalida. Ao perder as três partidas, ficamos de fora de Paris e, logo no começo do ano, recebemos um banho de realidade. Com o insucesso, o afluxo de recursos passará mais um ciclo de quatro anos na penúria. Para piorar, durante o quadrangular o instável sistema de jogo e as poucas referências técnicas do elenco, ao serem confrontados contra adversárias muito melhores, desandaram. Não restou outra alternativa que assistir mais uma olimpíada do sofá. O ano estava apenas começando e ainda testemunhamos o sombrio episódio da aliança da comissão técnica com políticos da extrema-direita, resultando na demissão de toda a comissão.
Ao final de 2024, seguimos sem técnico para a seleção adulta, sem que a coordenadora de seleções consiga trazer um vislumbre de mudança e planejamento a médio prazo. A solução tapa-buraco para os torneios de meio de ano (pré-pré-Mundial e Sulamericano) conseguiram apenas reproduzir as derrotas e reafirmar a escassez de talento no basquete brasileiro.
Sem o lenitivo da vaga, as condições estruturais voltaram mais fortes. A temporada 2024 da LBF foi medonha, com uma final de baixíssimo nível técnico – sem perspectiva de mudança, diga-se de passagem, a despeito da ilusória e passageira ampliação das equipes participantes. Quando aventada uma possibilidade de mudança do calendário, a resposta veio de forma ríspida e presunçosa, afastando o pequeno público assíduo da competição. A imagem mais significativa da LBF veio de fora da quadra: a estreante Isadora Sousa, do Unimed Campinas, após cumprir a formação nos Estados Unidos (caminho único na atualidade) e finalizar sua primeira temporada como profissional, comunicou sua precoce aposentadoria.
De que adianta endereçar atletas a outro país se, ao retornar, elas não encontram perspectivas profissionais? O único projeto estruturado da base foi fechado no final do ano passado, as seleções de base sofrem contra adversárias fraquíssimas e já viraram freguesas da Argentina, o Brasileirão sub-23 diminui ano após ano e recebe pouca divulgação da CBB. Funil atrás de funil, aquelas que chegam ao adulto preferem buscar outras alternativas de vida do que permanecer em uma modalidade falida.
Importante dizer: Marcelo Sousa, o ‘Pará’, foi reeleito para permanecer como presidente da Confederação. Embora não fosse o presidente oficial, era ele quem dava as cartas – e seguirá comandando o tabuleiro. O recado é claro e preza pela continuidade em um cenário de terra arrasada. As poucas pessoas com algum poder de mudança optaram pela continuidade, enquanto o naipe feminino afunda.
Impossível mudar um sistema desigual, onde a escassez promove competição ao invés de fomentar solidariedade, articulação, diálogo e planejamento. Poucas áreas desvelam com tanta crueza o individualismo quanto o basquete feminino brasileiro, em que cada um atua pensando apenas em si. As condições estruturais levam para o fundo do poço e os agentes envolvidos (confederação brasileira, federações estaduais, clubes, atletas), ao invés de reagir, sucumbem e cavam ainda mais o buraco. Excrescências éticas (agente de jogadoras parente de gestora da confederação, clube que usa dinheiro público e não presta conta, jogadora recebendo menos que um salário mínimo) passam a ser toleradas, o anormal passa a ser normalizado e vira regra.
Sem comando técnico no adulto, acumulando derrotas na base, com continuidade dos dirigentes, sem renovação tática e mão-de-obra envelhecida. Como criar expectativas nesse cenário? Vamos nos ater a dois resultados desta semana. Nas quartas-de-final do Campeonato Paulista adulto (segundo principal torneio adulto no Brasil), o campeão da LBF (Sesi Araraquara, modelo de estabilidade no cenário interno) perdeu para o Corinthians pelo vexatório placar de 33 x 58; com o detalhe de que o Sesi possui diversas jogadoras da seleção.
O segundo exemplo vem do Sulamericano sub 15, em disputa neste momento. Em 2022, o Brasil perdeu para a Argentina por 37 x 60; passados dois anos desse desastre, nova derrota, ainda maior – 24 x 67. Uma escalada rumo ao fundo do poço, cujo piso parece cada dia mais profundo.
Alguns anos atrás, víamos as etapas iniciais da derrocada do basquete feminino brasileiro com nostalgia. Os anos dourados de Paula, Hortência, Janeth, Alessandra estavam vivos em nossa memória; hoje, o diagnóstico evoluiu para a melancolia. A tristeza melancólica causa a cisão do sujeito, o qual deixa de criticar o objeto para voltar-se contra si; a sensação de perda passa a fundar uma visão entorpecida e pessimista do mundo. No final de 2023, eu rogava “Que a classificação olímpica sinalize a chegada de novos tempos (e novos atores) ao basquete feminino brasileiro”. Por ora, nem sinal dos novos atores.
O “museu de grandes novidades” do basquete feminino brasileiro segue em pleno funcionamento.