Abdel Kader Zaaf: se pedalares não bebas!
A frase que todos conhecemos não é bem esta. É parecida! Mas o princípio, os efeitos e algumas das consequências são as mesmas se conduzirmos embriagados.
Mas o que é que isto tem haver com as bicicletas, o mundo do ciclismo e o Tour de France? É simples. Uma das histórias mais incríveis e caricatas do mundo velocipédico está relacionada com calor, sede e álcool em proporções maiores que as desejáveis.
Na década de 50, época de ouro do ciclismo, todas as grandes nações tinham um punhado de grandes ciclistas numa autêntica constelações de estrelas. De Itália vinham o “Il Pio” Bartali , o “campionissimo” Coppi e o guerreiro Magni. De terras gaulesas o pequeno Robic, aquele que colocava chumbo nos bolsos para descer mais rápido, Bobet e o imparável Anquetil. De Espanha Bahamontes, da Suiça Koblet e da Bélgica Ockers e Impanis. Uma seleção de luxo no pelotão internacional. Mas havia um nome muito popular entre os adeptos e aficionados pelo ciclismo, sobretudo em França. Vinha de uma parte do globo até então “exótica “para a modalidade e pouco dada a pedaladas. O seu nome era Abdel Kader Zaaf, no ciclismo apenas Zaaf .
Zaaf nasceu em 1917 em Chitouane, na Argélia, tendo emigrado para França mais tarde. Era um ciclista modesto. Tinha no seu palmarés um punhado de vitórias na volta a Marrocos e na volta do seu país natal. Em França apenas conseguiu triunfar em provas secundárias e de menor prestígio, mas a admiração do público era enorme e as suas extravagâncias a par da sua devoção muçulmana uma imagem de marca.
Zaaf, tal como todos os outros ciclistas de segundo plano, tinha um sonho. Um sonho difícil de alcançar, mas que o argelino sempre lutou para o conseguir concretizar. Zaaf queria ganhar uma etapa no Tour de França. Esteve muito perto no Tour de 1950.
A etapa ligava Perpignham a Nîmes num total de mais de 250km. O calor era intenso, os principais ciclistas estavam num frenesim fora do normal, mas Zaaf mantinha-se calmo. Afinal toda esta temperatura não era estranha para um africano. O argelino rezou, como era habitual antes da partida e pensou que era hoje o seu grande dia.
“Inshallah”, pensou ele!
A etapa corria normalmente, até que a 100km de Nîmes, Zaaf decidiu atacar. Ninguém seguiu na sua roda com exceção do francês Marcel Molinés que se colou a Zaaf como uma pulga. Isso não o preocupava, mas tarde ou mais cedo o francês descolava, afinal o calor era cada vez mais e o africano era Zaaf. Os quilómetros passavam, a vantagem para o pelotão aumentava e os dois bebiam muito. Tal como uma etapa de montanha os espectadores ofereciam muita bebida aos ciclistas, regavam-nos com mangueiras e passavam-lhe esponjas por cima do corpo. Toda a ajuda era pouca pois o calor parecia derreter o alcatrão e Nîmes nunca mais aparecia no horizonte.
Já a menos de 20km do fim, Zaaf agarrou numa garrafa vinda da mão de um adepto. Bebeu três longos tragos, mas no último momento sente um sabor muito amargo. Ainda cuspiu, mas grande parte do vinho Corbiéres já tinha sido ingerida pelo argelino. E sendo muçulmano, Zaaf nunca tinha bebido álcool na vida. Estava agora em “maus lençóis” Aos poucos a sua visão ficou turva, fortes enjoos, começou a perder força nas pernas e a pedalar cada vez mais devagar. O francês Molinés já tinha escapado. A 10km de Nîmes, Zaaf perde o equilíbrio e cai no chão. O público depressa o levanta, mas o ciclista argelino começa a pedalar em sentido contrário para cair de novo uns metros à frente.
Zaaf estava bêbedo. Zaaf tinha uma bela “carraspana “!
Tinha terminado o sonho de Abdel Kader Zaaf. O argelino já não seria o primeiro africano a ganhar uma etapa na prova mais importante do mundo.
Socorrido por populares é levado mais tarde para o hospital e não termina a etapa. Apesar de aconselhado pelos médicos a repousar durante uns dias ele não desiste.
No dia seguinte apresenta-se na partida. É com uma chuva de aplausos e cumprimentos de todos os outros ciclistas e público que é recebido. Uma demonstração de reconhecimento e gratidão pela sua coragem e ousadia. Mas o regulamento do Tour era conhecido e o pior confirmou-se. Jacques Godet, diretor de prova, anunciou a desclassificação de Zaaf por não ter cumprido os últimos 10km da etapa anterior. E é de novo com uma forte salva de palmas que o argelino parte em direção a Nîmes para completar aquilo que uma garrafa de vinho não o deixou fazer.
Nada feito, Zaaf foi excluído do Tour onde esteve perto de conseguir a proeza de ser o primeiro africano a triunfar na “Grande Boucle”.
Se pedalares não bebas! Que o diga o argelino Zaaf e a sua valente “carraspana”!
Pedro Manuel Bento
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