O caso Caster Semenya e os novos (e futuro dos) 800m

Pedro PiresOutubro 3, 20199min0

O caso Caster Semenya e os novos (e futuro dos) 800m

Pedro PiresOutubro 3, 20199min0
O pódio do Rio 2016 não vai estar nos Mundiais de Doha e tudo advém de uma decisão da IAAF sustentada pelo TAD. A história de Caster Semenya e da impossibilidade de competir nas condições actuais

Quem assistiu aos 800 metros femininos do último meeting de Birmingham assistiu a um cenário pouco provável de se antecipar há 1 ano atrás. Ajee Wilson vencia num tempo acima dos 2 minutos, sem mostrar uma superioridade avassaladora, ainda que seja, por esta altura, a grande favorita à conquista do Ouro nos Mundiais de Doha que se iniciam no final de Setembro em Doha. Acontece que os 800 metros são hoje uma prova muito diferente do que foram nos últimos anos e muito se deve à nova legislação da IAAF relativamente às atletas com níveis anormalmente elevados de testosterona.

A nova legislação

Resumindo tudo de uma forma simples (se é que tal é possível), e para começar, é preciso identificar quem são os atletas afetados. A nova legislação da IAAF dirige-se especificamente a atletas que se identificam como mulheres (ou intersexo) e que têm uma específica forma de diferenças de desenvolvimento sexual, isto é, atletas que têm cromossomas XY (cromossomas usualmente designados como “masculinos”) e não XX; elevados níveis de testosterona (níveis muito acima dos normais em mulheres sem esta condição) atletas com testículos (internos ou externos) e não ovários. A IAAF considera que estas diferenças – em especial a testosterona – são aquilo que explica a habitual diferença (10-12% em média) entre performances masculinas e femininas. Esta é a premissa para um caso que afeta, por exemplo, todo o pódio dos 800 metros dos Jogos do Rio (Caster Semenya, Francine Niyonsaba e Margaret Wambui)!

Ao contrário do que é referido por grande parte da imprensa (até a usualmente mais credível tem sido incrivelmente sensacionalista em relação a este caso), estas atletas não estão impedidas de competir na prova feminina.

Podem fazê-lo livremente na prova masculina (uma vez que possuem características masculinas também) e podem fazê-lo na prova feminina, desde que reduzam os seus níveis de testosterona, através de um tratamento hormonal. Ainda que os valores de testosterona em mulheres se situem usualmente entre 0.06 e 1.68 nmol/L, a IAAF decidiu que apenas iria requerer que as atletas com esta condição baixassem os seus níveis até aos 5 nmol/L (relativamente perto dos 7.7 nmol/L, limite mínimo que os homens usualmente apresentam), uma vez que este é o limite máximo que uma mulher com ovários pode ter.

De forma a reduzirem os níveis de testosterona, as mulheres podem fazê-lo através de uma de três formas:

  1. a) podem tomar uma pílula contracetiva diariamente
  2. b) podem optar por uma injeção mensal que reduz os níveis de testosterona
  3. c) alternativamente, poderão retirar cirurgicamente os testículos (internos ou externos)

Os dois primeiros tratamentos são reversíveis, sendo que os seus efeitos passam quando as atletas deixarem de o fazer, enquanto que o terceiro é permanente. As atletas decidem que tratamento utilizar e devem apresentar níveis normais de testosterona (até 5 nmol/L) nos 6 meses anteriores a competirem num evento internacional (não existe legislação para provas nacionais).

A legislação aplica-se apenas a provas entre os 400 metros e 1 milha, uma vez que a IAAF garante que apenas tem dados suficientes para poder comprovar a vantagem competitiva destas mulheres nestes eventos. A Federação admite que a legislação pode-se expandir a mais eventos no futuro, caso possua amostras que permitam um estudo mais aprofundado nesses eventos, sendo que, de momento, o número de atletas nesta condição a competir em outros eventos não é significativo.

Os atletas afetados

Claro que o nome mais sonante de todo o caso é Caster Semenya. A sul-africana é a bicampeã olímpica e tem também 3 títulos mundiais. Não perdeu uma prova de 800 metros em mais de 4 anos e os grandes eventos globais que não venceu (Mundiais 2013 e 2015) foi quando a IAAF conseguiu aprovar pela primeira vez uma legislação do género (na altura caiu por terra, por ser considerada discriminatória, sendo que a regra atual está bastante mais sustentada científica e legalmente).

Durante esses 3 anos, os melhores anuais de Semenya foram 1:58.92, 2:02.66 e 1:59.59. Boas marcas, mas muito longe das extraordinárias marcas que ela voltaria a alcançar quando regressou em 2016 – entre 2016 e 2019 correu sempre os seus melhores anuais na casa dos 1:54 ou 1:55. Estes segundos fazem toda a diferença no Atletismo.

Como já referimos, Francine Niyonsaba – a que sempre vencia quando Semenya não estava e dupla campeã mundial em pista coberta – e Maraget Wambui (o pódio do Rio) apresentam também esta condição. No passado, foram várias as campeãs (principalmente de 800) que levantaram suspeitas no que à mesma condição diz respeito.

Sem divulgar ao público nomes ou mesmo o número exato em cada evento, a IAAF diz que a frequência de atletas (7,1 em cada 1000 atletas) com Diferenças de Desenvolvimento Sexual no atletismo de elite é cerca de 140 vezes superior ao que se encontra na população em geral e que essa proporção é ainda bem maior nos pódios das grandes competições.

Até ao momento, nenhuma das atletas afetadas assumiu ter começado o tratamento, tal como previsto na nova legislação. Nas redes sociais, Semenya diz mesmo que “enquanto algumas portas se fecham, outras se abrem”, mantendo secretismo quanto ao seu futuro.

Todo o pódio do Rio ficará fora dos Mundiais de Doha (Foto: BBC)

Atual ponto da situação

Depois de um longo período de estudo e de preparação da argumentação legal a apresentar, a IAAF lançou a 1 de Novembro do ano passado os princípios base da nova legislação. As atletas nesta condição recorreram ao Tribunal Arbitral do Desporto, que viria a dar razão à IAAF a 1 de Maio deste ano, fazendo algumas recomendações à Federação Internacional.

Caster Semenya, a nível individual, com representação jurídica, recorreu ao Supremo Tribunal Suiço (o Tribunal Arbitral do Desporto tem sede em Lausanne e por isso responde à legislação suiça) e a 31 de Maio esse Tribunal decretou que a sul-africana deveria ser autorizada a competir enquanto uma decisão final não fosse divulgada. Após essa data, Semenya competiu mesmo, no Meeting de Stanford (nos EUA), vencendo os 800 metros em 1:55.70.

Mais tarde, a 30 de Julho, o Supremo Tribunal Suíço decidiu alterar a sua decisão e deu uma pequena vitoria à IAAF, estando a nova legislação atualmente em vigor. Caster Semenya não irá mesmo marcar presença nos Mundiais de Doha.

Ainda que o caso continue a ser julgado, em recurso, o último acórdão do Tribunal Suíço refere que “numa primeira análise (…) o recurso de Caster Semenya não parece ter grande probabilidade de ter sucesso”.

A nossa opinião

É um assunto bastante polémico e não há, claramente, uma opinião certa. Se é verdade que Caster Semenya (usaremos o exemplo da sul-africana, mas aplica-se a outras, como já referimos) nasceu assim e não fez nada de ilegal para obter uma vantagem, também é verdade que tem uma vantagem própria do sexo masculino e isso pode também ser discriminatório para a esmagadora maioria das mulheres que não nascem com essa condição e competem numa categoria protegida.

Muito ouvimos dizer que outros atletas, como Michael Phelps ou mesmo Usain Bolt nasceram com características genéticas ideais que também os diferenciam da esmagadora maioria da população.

Acontece que o Atletismo tem duas categorias: masculina e feminina. Uma delas é protegida (feminina) e estas atletas apresentam características que só se encontram na categoria que não é protegida (masculina).

Não falamos aqui de características genéticas que podem ser (anormalmente) encontradas em ambos os sexos (homens ou mulheres mais altas podem existir, assim como homens ou mulheres com vantagens no seu tecido muscular, por exemplo).

Falamos de características que só podem ser encontradas em atletas do sexo feminino caso tenham cromossomas masculinos, possuindo características de ambos os sexos. Aí parece-nos óbvio que estas atletas devem limitar as suas características da categoria não protegida, de forma a poderem competir na categoria feminina.

Não é um assunto fácil e aqui falo em nome próprio, esta é uma opinião pessoal. Na esmagadora maioria das vezes, coloco-me no espectro que encoraja as diferenças, do lado contrário a qualquer tipo de discriminação, mas aqui estamos no meio de uma situação muito complexa e parece-nos que uma escolha tem que ser feita.

Tal como o Tribunal Arbitral do Desporto mencionou na sua decisão favorável à legislação da IAAF é uma decisão entre discriminar raras ocorrências ou discriminar a esmagadora maioria da população feminina, que não possui características genéticas unicamente masculinas.

Não me sinto confortável em dizê-lo, até porque simpatizo com Caster Semenya por tudo o que passou e pela sua capacidade de se erguer ouvindo críticas (e insultos) muito, muito injustas para quem não tem qualquer culpa em relação a este assunto, mas considero que a IAAF está correta nesta questão e que a legislação apresentada dá margem a estas atletas para competirem na categoria feminina, necessitando apenas de retirar a sua vantagem masculina.

O futuro dos 800 metros

Como dissemos, os 800 metros são hoje uma prova muito diferente. A norte-americana Ajee Wilson (1:55.61 de melhor pessoal, 1:57.72 este ano) e a jamaicana Natoya Goule (1:56.15 / 1:57.90) são duas das atletas que parecem em boa posição para assumir o favoritismo nos Mundiais de Doha, mas esta é essencialmente agora uma prova muito aberta. As marcas deixam, mais uma vez, de ser o mais importante e poderemos voltar a ver provas mais táticas numa disciplina que sempre esteve entre a velocidade dos 400 e a estratégia dos 1.500.

No meeting de Paris, que decorreu neste último sábado, mesmo sem Ajee Wilson, assistimos a uma muito entusiasmante prova com 7 (!) mulheres abaixo dos 2 minutos. É um futuro diferente para os 800 metros e o “fantasma” de Semenya continuará a pairar por lá durante algum tempo, mas a prova voltará a ser tão entusiasmante como sempre foi.

Ajee Wilson é a favorita para conquistar o Ouro em Doha (Foto: RunnerSpace)

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