A extrema-direita e o basquete feminino

Lucas PachecoJulho 17, 20246min0

A extrema-direita e o basquete feminino

Lucas PachecoJulho 17, 20246min0
Lucas Pacheco fala da luta do basquete feminino contra a extrema-direita e como isso tem passado por vários atletas da WNBA à LBF

A extrema-direita chegou no basquete feminino. Nos Estados Unidos, a popularidade de Caitlin Clark e Angel Reese ampliou o público da WNBA, cujas partidas e audiência televisiva (inclui streaming) batem índices históricos; junto à chegada de novos fãs, era inevitável que os discursos extremos, muito difundidos na política e nas redes sociais (principais meios de comunicação da atualidade), aterrisassem na liga.

A essa altura, o mecanismo é de amplo conhecimento: todas as temáticas com potencial de estourar as bolas comunicacionais são apropriadas pela extrema-direita. Mais que um interesse genuíno pela modalidade, as duas jogadoras viraram símbolos que carregam os discursos extremistas. Obviamente, a guerra cultural em jogo utiliza procedimentos discriminatórios presentes na sociedade; não à toa, a seita de admiradores de Clark sobrepõe o racismo ao basquete. Enquanto Clark é pintada como a “maior de todas”, desconsiderando a história da liga e do esporte, Reese é taxada com termos pejorativos.

O racismo ganha assim uma nova arena para se disseminar, com tendência a naturalizar o discurso extremista e relativizar crimes de ódio e preconceito. Os efeitos podem ser vistos a olhos nus, em qualquer pesquisa rápida nas redes sociais das jogadoras.

https://twitter.com/WNBAUncut/status/1801313904733143289

O fenômeno não se restringe aos Estados Unidos, onde os extremistas já elegeram um presidente e buscam retornar ao poder nas eleições que se aproximam. A extrema direita atual não se resume à arena política e associa-se ao neoliberalismo, motor econômico que apregoa o livre mercado e a desregulamentação da vida social.

Interligada mundialmente, compartilhando de táticas fabricadas em “gabinetes de ódio”, fenômeno parecido aconteceu no Brasil recentemente, envolvendo diretamente a seleção feminina de basquete. A ala da extrema-direita do Congresso, detentora da maioria dos votos, tentou aprovar uma lei anti-aborto (uma das bandeiras transnacionais do movimento); ancorado em visões religiosas fundamentalistas, na prática, a lei criminalizava todo e qualquer tipo de aborto, mesmo aqueles fruto de estupro. O absurdo era tão gritante que um estuprador, caso a lei fosse aprovada, teria pena menor que uma vítima de estupro ao buscar o aborto.

O projeto de lei recebeu atenção pública e a sociedade movimentou-se para debater o projeto, suas implicações e seus pressupostos. A imensa pressão da sociedade, liderado por movimentos feministas, fez o tiro sair pela culatra – uma pauta tida como dominada pelos extremistas gerou repercussão negativa para os deputados que a apresentaram, a ponto de parte da extrema-direita pretender se livrar da responsabilidade pelo projeto. O risco permanece, amenizado em função da mobilização social.

Onde entra o basquete nessa discussão?

A tática da extrema-direita é contra-atacar e dominar as narrativas, em movimento nada orgânico insuflado pelas redes sociais. O então preparador físico da seleção feminina de basquete do Brasil, Diego Falcão, publicou posts em suas redes defendendo a lei, prontamente respondido pelas atletas, as quais cobraram um posicionamento oficial da Confederação Brasileira de Basquete (CBB). Na visão das atletas, o post (e as opiniões do preparador) ofendia as mulheres, dando uma opinião sobre um projeto que afeta diretamente as mulheres. Mais que uma simples opinião, o post reverberava o domínio masculino no seio da seleção feminina; Diego é o escudeiro fiel do então técnico José Neto. Obrigada a tomar uma posição, a CBB desligou o preparador físico, o que motivou o técnico José Neto a pedir dispensa, alegando restrição à sua liberdade de opinião.

Novamente, estamos de frente às táticas de ampla circulação da extrema-direita. Em formato de pirâmide, uma vez atacado o projeto de lei, os adeptos da seita vêem-se obrigados a se posicionar. As repercussões do ecossistema comunicacional e político da extrema-direita brasileira à demissão de Falcão evidenciam a coordenação; vários políticos e influenciadores (a bem da verdade, todos os “formadores de opinião” da direita) defenderam Falcão e Neto, cujos seguidores triplicaram do dia para a noite.

A celeuma foi barulhenta, porém durou pouco. A extrema-direita quer ampliar o rol de assuntos sob sua hegemonia; o esporte mais popular do Brasil produziu diversos políticos desse espectro político (Romário, por exemplo, atual senador do estado do Rio de Janeiro). O vôlei, segunda modalidade, segue dominado, liderado por vozes como Maurício, Wallace, Ana Paula. A natação forneceu um dos pilares da extrema-direita no Brasil.

Ou seja, o esporte alimenta os discursos extremistas e forma quadros de ídolos para tal projeto. Das diversas áreas da sociedade, o esporte é o reino da meritocracia, argumento central nessa lógica de mundo. Na arena esportiva, em uma quadra de basquete por exemplo, vence quem desempenhar melhor. Simples assim: o mundo emularia essa dinâmica, relegando a desigualdade de condições para fora do discurso explicativo.

Tampouco essa transposição imediata é nova: o sucesso do vôlei brasileiro nos anos 90 teve o técnico Bernardinho como um pilar de sustentação, cujo discurso de liderança/motivação/cobrança/resultados virou febre no meio esportivo. Naquela época, porém, o discurso vestia a roupagem da social-democracia/centro-direita; hoje o recrudescimento do fascismo, visto na última década, engolfou o campo do esporte para a disseminação da extrema-direita.

Os exemplos são amplos e podem ser vistos mesmo no restrito basquete feminino. Jogadoras lendárias da seleção apoiaram candidatos de extrema-direita nas últimas eleições; a jogadora mais conhecida da geração atual chegou a postar mensagens de apoio às tentativas de golpe militar alguns anos atrás. A CBB, por sua vez, deu guarida a José Neto mesmo depois de seguidas eliminações e ausências dos principais torneios mundiais; ele seria mantido no cargo se não fossem as postagens de seu companheiro.

Não podemos omitir a importância do posicionamento das jogadoras (com destaque para Damiris e Clarissa), que exigiram uma resposta imediata da CBB. Na prática, se elas tivessem ficado caladas, a comissão técnica permaneceria a mesma; uma comissão de atletas mulheres que desconsidera o direito de expressão e autonomia. José Neto e Diego Falcão fizeram-se de vítimas após as demissões e apoiaram mensagens de ódio às jogadoras que, até semanas atrás, eles dirigiam.

 

A seleção brasileira de basquete feminino, às vésperas do Sulamericano e do pré-Mundial, encontra-se sem comissão técnica . Nas condições em que se desenrolou a celeuma, a saída da dupla (posteriormente, todos os membros da comissão técnica pediram dispensa – todos homens) é razão para comemorar.

O burburinho passou tão rápido quanto chegou. Diferentemente dos Estados Unidos, onde o basquete é popular, no Brasil o basquete feminino não gera repercussão e a extrema-direita não tem interesse em lutar em uma esfera tão diminuta. De qualquer maneira, a luta contra o fascismo surgiu como o embate de uma geração e o basquete não passaria incólume. É preciso estar atento e forte.


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