Louzantrail – A Divina Comédia

Fair PlayFevereiro 1, 201911min0

Louzantrail – A Divina Comédia

Fair PlayFevereiro 1, 201911min0
A Lousã foi palco do Louzantrail que compreendia as distâncias de 17, 29 e 43 km. O João Bastos esteve na prova de trail longo (29 km) e conta-nos como foi

O editor de natação do Fair Play, João Bastos, trocou a piscina pela montanha e conta-nos como foi a sua estreia numa prova de trail running que aconteceu nos 29 km do Louzantrail. Aqui fica o registo na primeira pessoa


0. Prólogo

Manda a praxis social que um elemento estranho a uma determinada comunidade se apresente antes da prorrogativa de pertencer a ela. Então cá vai:

Olá, sou o João. Bastos para os amigos, beijinho no ombro para os inimigos. Na minha primeira vida desportiva não era do running, mas do swimming. Para complementar a minha preparação aquática dei umas corridas no longínquo ano de 2006. Enquanto o mundo conhecia os Arctic Monkeys, o asfalto almeirinense conhecia as pisadas deste grande atleta.

Os Arctic Monkeys prosseguiram a trajectória ascendente da sua carreira mas eu fiquei-me por aí, depois de atingir o ponto alto de correr os 20 km de Almeirim, que estão para um almeirinense como o Dakar está para um taxista.

Daí para cá, uma mão chega para contar as vezes que calcei umas sapatilhas com a finalidade de elevar os batimentos cardíacos acima dos 120 bpm.

Até que em Agosto achei que o asfalto almeirinense já estava recomposto e voltei a correr. O primeiro treino foram 2 km absolutamente épicos!

Sem saber ler nem correr, em Setembro fui notificado que viajaria à Madeira no último fim-de-semana de Abril (para a malta do trail não preciso de dar mais detalhes, para os outsiders, é o fim-de-semana do Madeira Island Ultra Trail, vulgo MIUT) e desde então tenho literalmente corrido atrás desse prejuízo de 43 km que me foram creditados por conta.

Nesse sentido, a mesma aplicação que me notificou da viagem à Madeira voltou a enviar um snap dizendo que havia uma prova engraçada na Lousã, que era “durinha”, mas que o banho de imersão no xisto lousanense camuflava-lhe a dureza.

O resto da história começa a ser contada no dia 27 de Janeiro às 9:00 horas

Antes da partida | Foto: Matias Novo

1. White walkers

Senti a necessidade de escrever o prólogo anterior não apenas para me apresentar mas para advertir quem busca neste relambório uma crónica subordinada à performance desportiva, que se desengane porque este é um relato de sobrevivência com uma dose generosa de pieguice.

Os 29 km do Louzantrail foram o meu baile de debutantes no multiverso do trail e o respeito que esta prova me impunha fez-me estudar a fundo todos os pormenores, os mais e os menos relevantes. Se o exame fosse teórico sacava um notão!

Assim que foi dada a partida, o pensamento dominante foi cumprir os primeiros 12,7 km abaixo da barreira horária das 3 horas. O objectivo estava tão definido como o obstáculo: 1162 metros de subida que começariam logo após o preâmbulo de 1 km pela vila da Lousã.

Pois, exactamente ao quilómetro dois, o terreno inclinou ao mesmo tempo que estreitou e até ao quilómetro quatro não havia mais a fazer se não andar e esperar, andar e esperar, andar e esperar…ali estava eu em busca de performance e com a inexperiência a ser motor da ansiedade de poder falhar a barreira horária. Mal sabia eu que precioso ia ser este brando carrossel, e a consequente reserva de energia, para o objectivo final.

Quatro quilómetros e a primeira descida, curta e sumptuosa, qual Shakira. Desmantela-se o grande carrossel, erguem-se comboios de média dimensão. Mais dois quilómetros, descida grande na qual apanhei boleia com a senhora de branco.

Eu sou mesmo muito nabo a descer mas esta compagnon de route executava irrepreensivelmente os movimentos técnicos que me fartei de ver em vídeos da especialidade mas que nunca apreendi tão bem como imitando os gestos e trajectórias da senhora de branco que, se me estiver a ler, peço que me mande um poster seu. Tem aqui um fã extremamente agradecido.

Aqui vou eu a liderar (a empatar?) o pelotão | Foto: Paulo Viegas

2. Purgatório

Terminada a descida, avisto um amigo, o Chico que tinha ido aos 43 km. Nos meus 9, ele ia com 14. Conversa em dia e segui para a primeira subida que me deixou mossa. 310 metros para totalizar nessa altura os 1100 de acumulado.

Por volta dos 11 quilómetros recebi um sinal que apenas esperava receber numa fase muito mais adiantada da prova: no corpo uma sensação de frio apesar da temperatura ambiente estar bastante amena e na cabeça repetidamente as palavras do Paulo de Carvalho. Queria saber quem era, o que fazia ali e porque a sorte me abandonava.

Felizmente durou pouco. A proximidade ao primeiro abastecimento, o tempo de prova perfeitamente controlado para ultrapassar a barreira e o encanto da primeira maravilha do xisto em Casal Novo animaram-me e subitamente as cinco letras (LOUSÃ) em madeira erguem-se diante mim. Estava ali a salvação da minha alma parcialmente penada.

Entro na zona de abastecimento e voilá, mesa posta, lareira acesa, rostos animados…a ceia de Natal do Talasnal. Enchi o estômago, as garrafas e as forças e daquela casa saiu alguém muito diferente do indivíduo que dois minutos antes nela tinha entrado.

This is Lousã | Foto: Matias Novo

3. Alive and kicking

Depois de uma primeira fase turbulenta, a segunda etapa seria mais dinâmica. As barreiras horárias já não me preocupavam e a partir dali já estava por minha conta.

Sem a boleia da senhora de branco na descida seguinte optei por recorrer à técnica Tarzan, de tronco em tronco até ao tronco final.

Nova dificuldade, agora até ao Candal. Mais animado fui subindo de conversa com um novo companheiro que tinha sido pai há 5 meses. Percorreram-se quatro quilómetros quase ininterruptos de subida mais e menos suave e a nova junção com o pessoal dos 43 tinha voltado a formar pequenas grupetas. Eu lá fui seguindo com a minha, agora com a audácia de ir saltando para o grupo da frente sempre que me sentisse com capacidade para tal.

E assim cheguei ao segundo abastecimento por volta dos 20 km. Menos composto mas suficientemente reconfortante para os 400 metros que faltavam trepar.

Não ia mal, mas estava longe de imaginar o que se iria passar a seguir.

Sempre na liderança! | Foto: fotojotapê

4. Via Ápia

Na Roma Antiga o castigo para os escravos revoltosos foi a crucificação ao longo da Via Ápia à entrada de Roma. Assim me sentia eu na subida para Cerdeira, crucificado à montanha e prostrado à minha incapacidade. Enquanto os outros sortudos tinham vista privilegiada para Roma, eu não conseguia levantar os olhos num horizonte mais elevado que a ponta dos meus pés. Quando conseguia, via um formigueiro de gente serpenteando montanha acima…bem acima do ponto onde eu estava.

Fazia um esforço hercúleo para não parar. A cada pequeno passo a serra ia ficando cada vez mais bonita e eu cada vez mais feio. Deus tinha passado por ali mas era o Diabo que tinha por companhia.

E percebe-se porquê. Certamente já viram ene representações de Deus e do Diabo. Nosso Senhor é sempre representado por um velhinho. Teso, mas um velhinho. Já o tinhoso tem um six pack invejável.

Não querendo desmerecer as capacidades do Todo Poderoso, mas com 20 km percorridos e ao cabo de quatro horas, era o chifrudo que estava com maior vigor a dar-me sarrafadas nas costas e petardões de força nos quadríceps.

Quando o Belzebu estava prestes a vencer-me e eu a parar, olho em frente e vejo o fim daquela recta madrasta a 200 metros (contados na horizontal, claro está). Estava prestes a transumanar a montanha. Inspirei-me no agente Hartigan do Sin City, dei-me uma oportunidade, retesei as pernas, mantive-me em movimento, cheguei ao topo, talvez houvesse uma saída, ia lá chegar. Cheguei!

Justamente, o topo | Foto: Matias Novo

5. A outra face

Para os últimos 10 km a organização tinha preparado um bombom. Depois das agruras vividas no último quilómetro, tinha a necessidade de me restabelecer para saborear devidamente a guloseima e decidi andar durante um quilómetro no largo estradão que se desenhava a direito no ponto mais alto da prova. Whatever, a prova estava feita. Aquela não me ia escapar!

Com nova junção da prova, muitos companheiros dos 43 passaram por mim, até que ao percorrer a encosta que se seguia me vi completamente sozinho. Ninguém à frente, ninguém atrás.

Senti que a montanha queria ter uma palavrinha a sós comigo, uma palavra de reconciliação. Ela desculpou-se pelo mal que me fez e eu desculpei-me por ter achado que lhe estava à altura. Percebi que a montanha nem sempre é boa, mas é sempre justa.

Se fôssemos namorados sabem o que se seguia…não chegou a tanto, mas foi igualmente prazeroso.

Curva, contracurva, uma recta ladeada de azereiros e quedas de água, uma espécie de síndrome de Estocolmo que preenchia o mesmo âmago que minutos antes porfiava.

Foi já quando a descida mais desceu que recebi novos companheiros, o senhor que perdeu 70 kg desde que começou a correr e o senhor que tinha de controlar os níveis de glicémia. O incentivo que me deram quando lhes disse que era a minha estreia foi mais uma injecção de confiança e ânimo. Mais dois novos ídolos do trail.

Naquele ponto a descida exigia travões que já não tinha, e a preocupação era somente não cair. Não se buscava performance, só sobrevivência.

O terreno ia ficando mais inclinado
E eu tentava não cair.
Estava completamente esgotado
Mas com vontade de sorrir.

A descer sou um aselha,
Mas sentia-me como novo.
O que é uma dentada de ovelha
Depois de ser mordido por um lobo?

Nem tudo é sofrimento | Foto: Matias Novo

6. Nenúfares de unicórnios com bolhinhas de algodão doce a saltitar em arco-íris reluzentes

De volta à vila, voltei a encontrar companheiros que tinha visto em diferentes pontos da prova. A rapariga de verde fluorescente, o senhor das pernas largas, a senhora do Boavista, o new daddy, entre tantos outros. Estava naquelas séries onde no último episódio da temporada aparecem todas as personagens que se foram perdendo pelos episódios. Só já não vi a senhora de branco.

Os últimos metros foram percorridos com tanto de sacrifício como de adrenalina. Ali estava a manga e eu corria lindo, livre, leve e solto (já fiz referências neste texto a Dante, Joyce e Victor Hugo, mas achei que faltava uma referência literária mais erudita, como Pabllo Vittar) em direcção à nave de exposições da Lousã.

Cortei a meta mas corri mais dois metros porque a minha meta é ir mais além (estou a gozar, não fiz isso, mas precisava de um sound bite motivacional para descrever condignamente o momento da chegada).

Assim foi a minha primeira experiência no trail. Se voltarei a repetir? Com certeza. Existem jogos dolorosos, mas as dificuldades realçam-lhes as delícias. Agora a virgindade? A virgindade só perde uma vez…

PS: Para quem busca performance, aqui fica a minha actividade no strava

Talvez a minha cara não ajude a provar que foi mesmo uma boa experiência | Foto: Sara Bermejo

* Foto de capa: Miro Cerqueira


Entre na discussão


Quem somos

É com Fair Play que pretendemos trazer uma diversificada panóplia de assuntos e temas. A análise ao detalhe que definiu o jogo; a perspectiva histórica que faz sentido enquadrar; a equipa que tacticamente tem subjugado os seus concorrentes; a individualidade que teima em não deixar de brilhar – é tudo disso que é feito o Fair Play. Que o leitor poderá e deverá não só ler e acompanhar, mas dele participar, através do comentário, fomentando, assim, ainda mais o debate e a partilha.


CONTACTE-NOS