A pioneira Keiko Namai
Olhamos o presente para ele nos conduzir, muitas vezes sem intenção, ao passado. Ao escrever uma ode à atual seleção japonesa de basquete feminino, com seu estilo vistoso, ágil, coletivo e fluido, retornamos de chofre à década de 70, período áureo da modalidade no Japão. Um dos mais exitosos experimentos do esporte contemporâneo em atualizar a tradição, modernizá-la a ponto de render a inédita medalha olímpica em 2020/2021.
O sucesso recente não veio da negação da “escola japonesa” de basquete, com sua velocidade, chutes precisos e baixa estatura; antes, da sua remodelação a tendências modernas, a padrões táticos oxigenados, velozes e com ênfase nos tiros longos. Infelizmente, a história do basquete feminino é pouco conhecida, com diversos sombreamentos, ainda mais evidentes se olhamos para outros centros fora do ocidente.
A década de 70 marcou o auge do selecionado feminino japonês de basquete. Em 1970, o primeiro ouro veio na Copa Asiática, na terceira edição da competição, cujas primeiras duas (além das duas seguintes) foram conquistadas pela Coréia do Sul. Em 71, as japonesas bateram na trave no Mundial (vídeo dos minutos finais da partida contra o Brasil disponível no texto anterior). Em 74, em outro torneio continental, os Jogos Asiáticos em Teerã, na edição inaugural do basquete feminino, o Japão fatura o ouro de forma agônica, desta vez contando com a sorte ao seu lado:
“Faltando 20 segundos para o fim do segundo tempo, perdendo por um ponto, 69-70 (naquela época, o primeiro tempo e o segundo tempo duravam 20 minutos cada; os arremessos de 3 pontos não haviam sido introduzidos), a seleção coreana tinha a posse de bola. Eram os dias em que o cronômetro de chute marcava 30 segundos. Se mantivessem a posse de bola, a seleção japonesa não teria conseguido vencer. No entanto, faltando 11 segundos para o final, a seleção coreana, talvez avaliando mal a crescente pressão da defesa nacional japonesa, atacou agressivamente e tentou marcar a uma distância de aproximadamente 5 metros, faltando 11 segundos para o final.
No entanto, isso acaba sendo um tiro perdido. Yokimi Wakita (nome atual Kai, então membro da Unitika Yamazaki) agarrou o rebote e conectou-o a Kimiko Hashimoto (nome atual Nagai, então membro do Daiichi Kangyo Bank). Hashimoto viu Ikui correndo para a frente esquerda e mandou um passe em forma de flecha perto da linha de lance livre na quadra de defesa.
Faltam 2 segundos, falta 1 segundo… Ikui acertou um chute de longa distância de cerca de 10 metros, a cerca de 2 metros além da linha central. Em seguida, o som de uma pistola sinalizou o fim da partida. Este chute se transformou em uma recuperação dramática, e a seleção japonesa conseguiu derrotar seu arquirrival Coreia do Sul por 71-70.”
O trecho merece destaque por destacar a jogadora responsável pela cesta do ouro: chamada Ikui, trata-se de Keiko Namai (aspectos culturais, como a onomástica, são determinantes para nosso olhar sobre a história), intitulada em seu verbete da wikipedia japonesa como “a melhor jogadora japonesa de basquete da história”. No basquete, os grandes nomes aparecem nos momentos decisivos – a conquista em Teerã possibilitou a participação da seleção no Mundial do ano seguinte, disputado na Colômbia.
Restritos a fontes oficiais dos torneios da Fiba, cujos registros antigos são incompletos, não temos acesso aos pormenores e detalhes da competição. O Japão, em 1975, conquistou sua inédita e única medalha em Mundiais, a prata resultante da excelente campanha de 6 vitórias e 2 derrotas. Novamente contando com a sorte, a derrota na fase inicial para a Austrália acabou descartada (pela desclassificação precoce das australianas); na fase final, a única derrota ocorreu perante a imbatível URSS.
Tão impressionante quanto o resultado final foi a própria caminhada, aberta com vitória contra os EUA (73×71) e seguida por outro êxito inesperado, contra a Tchecoslováquia. Keiko Namai, com 23 anos, findou o torneio como cestinha da seleção, com 15,9 pontos de média. No imponente triunfo sobre as estadunidenses na estreia, ela saiu-se com 25 pontos!
A segunda colocação no Mundial, por sua vez, assegurou a presença japonesa nas Olimpíadas de Montreal, no ano seguinte, edição de estreia do naipe feminino da modalidade (com 40 anos de atraso frente ao masculino). Quis o destino que a partida inaugural pusesse, mais uma vez, frente a frente, Japão x EUA; Keiko Namai fez questão de repetir o mesmo resultado do ano anterior. Com 35 pontos anotados (uma das maiores marcas da história dos Jogos, em um período sem linha de três), Namai foi a principal responsável pela vitória por 84 x 71.
Engana-se quem imagina uma seleção estadunidense fraca, contando com Lusia Harris, Ann Meyers, Nancy Liebermann e Pat Head (posteriormente acrescido seu sobrenome de casada, Summitt). Diferente do Mundial de 75, com escassos registros do torneio, as Olimpíadas de 76 possuem mais relatos e fotos; vejam como os estadunidenses reagiram à catimba de Namai e à derrota frente às japonesas.
A sequência da competição dissipou as chances de medalha (adiando a medalha olímpica para 2020/2021), após derrotas para as seleções europeias (Tchecoslováquia – em vingança de 75, Bulgária – por míseros 3 pontos, e URSS). As 2 vitórias e 3 derrotas sedimentaram a quinta colocação. Se do ponto de vista coletivo o resultado não foi condizente com as expectativas, do ponto de vista individual Keiko Namai voltou a se destacar: eleita a MVP e cestinha dos Jogos, com 20,4 pontos de média.
Infelizmente, seu nome passa despercebido ao grande público do basquete, embora sua imagem esteja armazenada em uma das fotos mais icônicas da modalidade. Namai é a número 12 que tenta contestar o arremesso da jogadora mais vitoriosa da história, a pivô letã (representou a URSS) Semjonova, de 2,13m. A foto entrou para a história porque demonstra seu domínio, cercada de cinco jogadoras japonesas, todas baixas.
Embora tenha superado a gigante letã na pontuação do torneio, Keiko Namai, com seus 1,62m, aparece nos registros/na foto como uma mera coadjuvante. Ela permanece na sombra, ocultando parte significativa do basquete japonês (a maior jogadora da história do país) e mundial (cestinha e MVP da primeira edição de olimpíadas com o naipe feminino).
Com quase nenhuma fonte sobre o basquete japonês, a não ser páginas pouco confiáveis da internet e dados oficiais da Fiba, certo que a carreira de Namai não fugiu à regra de suas contemporâneas. Sem perspectiva profissional no esporte, ela abandonou o basquete depois dos jogos de Montreal, aposentou-se, casou e teve três filhos. Ela não mais disputou grandes torneios mundiais. Se algo perpassa a todos os centros de basquete referente às mulheres, é a incrível ausência de continuidade em grande parte da história.
O Japão passava pela reconstrução do pós guerra, influenciado e financiado pelos Estados Unidos. Tal qual no país fundador do esporte, também na Japão as mulheres tinham parcas oportunidades; Namai permaneceu no basquete enquanto teve cargos de treinadora e professora de educação física.
Seria necessário aguardar quase 50 anos para uma nova geração, com mais oportunidades de evolução e intercâmbio, levar o Japão de volta ao pódio de competições mundiais. Com uma liga profissional, com modelos de feminilidade menos rígidos, as japonesas realizaram o sonho de suas pioneiras – sem abrir mão da tradição e de sua história.
Mecânica de arremesso da escola japonesa, 1976 x 2020 pic.twitter.com/k5auGwqf6T
— lucas (@filetlpf) May 27, 2024