A maturidade de Micaela

Lucas PachecoMarço 20, 20247min0

A maturidade de Micaela

Lucas PachecoMarço 20, 20247min0
A armadora Micaela é um dos maiores nomes da LBF e da selecção brasileira de basquetebol e Lucas Pacheco conta a história

A temporada 2024 da LBF (Liga de Basquete Feminino) trouxe um vento de renovação, cobrado por tanto tempo pelos torcedores e sempre adiado pelos clubes. Acomodados com os mesmos técnicos (imensa maioria homens), com as mesmas jogadoras, nos mesmos esquemas táticos, enfim testemunhamos um sopro de novidade. Seja por necessidade (o aumento dos participantes abriu mais vagas), seja por orientação, o início da temporada aliviou nossos anseios.

Aos 11 anos a conquistar troféus (Foto: Arquivo pessoal)
Aos 11 anos a conquistar troféus (Foto: Arquivo pessoal)

Para uma modalidade fora das Olimpíadas e do Mundial a duas edições, nada mais premente. Ainda que catapultado por fatores externos ao meio do basquete, é evidente que a liga passa por mudanças – que elas venham para ficar. Em quase todas as equipes, jogadoras relegadas a partidas definidas, com placares largos, têm recebido oportunidades: Laurah e Melissa, que mal entraram por Santo André em 2023, passaram a figuras essenciais nas rotações de suas equipes (aquela em São José); Ponta Grossa junta Bruna Costa, Julia Letty, Wanessa em várias dos quintetos; Mikaelly vem recebendo minutos em Catanduva; Iza Arnoni, Manu Malta e Carolzinha com chances em Campinas. Até mesmo nas atuais campeãs de Araraquara, com elenco experiente, a jovem Alexia aparece com destaque. Os ventos realmente mudaram de direção.

Embora os exemplos sejam numerosos, nenhuma outra equipe ilustra tanto esse movimento quanto o Corinthians. Montado de última hora, às pressas, o clube combinou muitas veteranas (a maioria pivôs e alas) ao núcleo herdado do projeto de base do Osasco Bradesco, incluindo o técnico Cristiano Cedra, responsável por formar e lapidar as jovens Sther Ubaka (16 anos), Sofia Moschen (17), Raíssa Zanolla (16) e Micaela, todas integrantes do elenco do Corinthians nesta LBF.

A armadora Micaela, de 15 anos e 1,66m, aproveitou a oportunidade e agarrou com maestria seu lugar na rotação. Ainda sem a estadunidense Ta’Shara Jeffries e Tainá Paixão, o elenco necessitava de uma armadora de ofício; com a confiança nela depositada pelo técnico Cedra, o desempenho está acima do esperado.

Micaela, revelada pelo extinto projeto (por falta de verba) da ex-seleção Adrianinha em Recife, apareceu para o grande público na fracassada campanha do Sulamericano sub 15, em 2022, quando a seleção amargou a deprimente terceira colocação. O time assegurou a vaga para a Americup da categoria, sem entusiasmar; com extrema dificuldade em superar defesas pressionadas, a seleção sofreu, sem que ajustes fossem tomadas pela técnica Luciana Thomazini. Ainda assim, a volúpia pelos arremessos longos, a coragem em chamar para si (7,2 arremessos tentados de três pontos por jogo) e o aproveitamento tímido (30,6%) deixaram esperança de crescimento, que não veio na Americup sub 16 do ano seguinte.

Micaela na selecção (Foto: CBB)
Micaela na selecção (Foto: CBB)

Apresentando deficiências idênticas, as adversárias abusaram da defesa pressionada quadra toda, armadilha não solucionada por Thomazini. Para piorar, a competição mais intensa mostrou lacunas na defesa de pick and roll, estratagema que praticamente eliminou o Brasil da competição e nos tirou a chance de disputar o Mundial sub 17. Na sexta posição, Micaela tentou 9,2 arremessos de três por partida, com 30,9%. Estava claro que a geração, de ótimo físico porém crua em fundamentos e tática, precisava de maior investimento.

A evolução vista na competição seguinte, o Sulamericano sub 17, ainda em 2023, deve ser creditada em grande parte ao comando de João Camargo, assistente técnico da seleção adulta. Com menos arremessos tentados (5,2), o aproveitamento de 50% traduziu melhor tomada de decisão e seleção de arremessos. Campeã do torneio, a armadora trouxe um elemento há muito em falta nas seleções brasileiras – o gosto e a acurácia nos arremessos longos.

Lembremos que Micaela sempre jogou em categorias acima da sua idade, disparidade ainda mais evidente nesta LBF, quando ela enfrenta armadoras consolidadas no cenário nacional. Na derrota na estreia, contra São José, Micaela começou como titular, com atuação tímida. Ela sofreu para defender os bloqueios diretos e conter a armadora adversária Tita; porém, não comprometeu e em 14 min produziu 2 pts, 2 reb, 2 turnovers, com saldo de -14. Na segunda partida, novamente titular, contra Ponta Grossa, Micaela enfrentou a armadora titular da seleção colombiana, Manuela Rios, com sonoros 14 pts, 4 reb, 3 ast e 3 turnovers, em 27 min. A boa sequência seguiu na partida seguinte, na vitória fora de casa sobre Blumenau – 6 pts, 4 reb, 4 ast, 4 turnovers e 5 roubos, em 29 min. Por fim, na quarta rodada, contra a experiente Natália, fez 11 pts, 6 reb, 6 ast, 2 turnovers em 31 min.

A jovem armadora não somente produziu bons números, com expressivos 58,3% nos arremessos de três pontos (3 tentativas por jogo), como mostrou maturidade dentro de quadra, em contraste com sua pouca idade. Sem os vícios das jogadoras consolidadas (atividade na defesa, luta para passar por bloqueios diretos, atenção aos rebotes defensivos e infiltrar para conduzir a transição ofensiva), sem forçar arremessos. Talvez ela até pudesse chutar mais, o que deve vir com o tempo; no momento, sua preocupação recai em respeitar o esquema tático, privilegiar o coletivo e criar coesão em um time recém juntado.

Hoje, é impensável sacá-la da rotação, mesmo com a iminente estreia da estadunidense e da possível chegada de Tainá.

O choque de realidade veio na quinta rodada, contra as atuais campeãs do Sesi Araraquara, com seu portentoso trio de armação. A jovem Micaela encarou nada menos que a batalhadora Maila e a titular da seleção brasileira, Débora, verdadeiro carrapato em quadra. O desempenho fraco (4 pts, 1/6, 1 reb, 2 ast, 1 turnover e 1 roubo em 31 min) nos lembra o tamanho do caminho a ser percorrido; contra duas armadoras intensas, a juventude deu as caras. Ainda assim, surpreende sua atitude e postura ao bater de frente contra duas experientes armadoras.

Partidas como essa servem para retornar ao chão da realidade, evitando expectativas irreais; uma jogadora de ponta se forma passo a passo, sem pressão excessiva, com a devida orientação. Nos últimos anos, nos desacostumamos com esse processo de renovação, natural nos esportes, em grande parte devido à restrição do cenário interno (com parcos projetos de base) e à inércia da confederação e federações estaduais.

A dificuldade em lapidar e desenvolver talentos revela-se na migração em peso dos jovens talentos para os EUA. Virou rotina os melhores prospectos saírem do país com seus 17, 18 anos, e retornar somente após as universidades, aos 23 anos. Se por um lado, elas são submetidas a sistemas adequados de treino, por outro o cenário interno envelhece e perde gerações do radar. O exemplo de Micaela levanta a questão do apoio necessário para inverter a dinâmica: a CBB possui um plano específico ou o projeto se reduz a implantar o estilo tático da seleção adulta nas seleções de base? A confederação precisaria estruturar formação e capacitação para, paralelamente às jogadoras, formar os futuros treinadores (vide os exemplos de Dyego Maranini e Luciana Thomazini), o que parece fora do radar no momento.

Por enquanto, Micaela se aproveita das oportunidades da expansão da liga e da migração do projeto/técnico de Osasco para o Corinthians; com todas as dificuldades, naturais para uma jovem de 15 anos, ela demonstra maturidade acima da média, além de evolução rápida em aspectos essenciais do basquete (como na defesa). Os próximos passos de sua carreira deveriam ser monitorados de perto pela confederação e pela comissão técnica da seleção adulta. Enquanto isso, aproveitemos a primeira liga de uma jogadora com todos os atributos para no futuro dominar o basquete feminino brasileiro por muito tempo.


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