A Saída de Salvio: um novo paradigma?
A conquista do campeonato pelos encarnados na última época trouxe, não só uma quebra no marasmo em que Rui Vitória havia deixado o clube lisboeta, mas alterações profundas ao nível da matriz de jogo e que transformam o DNA do clube. Mais do que declarações vazias e até deselegantes de Rui Vitória, mencionando que “O Benfica faz sempre grandes segundas voltas” (como se os rendimentos fossem cíclicos como estações do ano), importa perceber que os 72 golos em 19 jogos e a média de 3.8 golos por jogo não surge por acaso nem por questões de sorte.
E as movimentações de mercado da SAD benfiquista demonstram exatamente essa mudança de paradigma: Bruno Lage trouxe, não só know-how tático e uma postura enxuta, mas também uma visão moderna e esclarecida daquilo que é o futebol e as suas exigências. A renovação de Samaris, a contratação de Raúl de Tomás, a procura por um guarda-redes com segurança no jogo de pés, como é o caso de Perin, demonstram essa vontade de imbuir o futebol vertical encarnado de qualidade cerebral.
A saída de Salvio é, portanto, o reflexo de uma nova forma de pensar o jogo, onde jogadores como Cervi, Conti, Fejsa, Yuri Ribeiro, entre outros, deixam de contar. Não porque não tenham qualidades específicas para determinado tipo de estilo de jogo, mas porque não se enquadram nem possuem as valências necessárias para singrar num Benfica que privilegia o toque de bola, a qualidade técnica e, acima de tudo, a criatividade e critério.
Salvio surge em 2010/2011 pela mão de Jorge Jesus, numa época absolutamente desastrosa após a perda de inúmeros ativos e um FC Porto absolutamente estratosférico. Os dribles estonteantes, o rasgo de Salvio, a raça e o seu faro de golo transformaram-no, rapidamente, num dos queridos da torcida, numa época onde jogadores como David Luiz ou Gaitán foram crucificados. Isto demonstra bem a incapacidade do espectador comum em compreender que o futebol é um jogo que não depende apenas de valências físicas e, passados 8 anos, começa agora a ser opinião comum que o jogo se joga mais com a cabeça do que com o coração.
“Toto” Salvio é, na sua génese, um jogador de coração. Amor à camisola, amor ao jogo, vontade do golo, vontade da bola. É um trabalhador romântico, um operário que ama o seu objeto de trabalho. Chegou até a ser líder do seu Departamento. Mas os anos passam e Salvio deixou-se ultrapassar. As lesões contribuíram (e muito) para uma incapacidade física gritante, afetando a grande mais valia do argentino. Eduardo Salvio é uma figura do Benfica, quer se goste ou não dele, mas é, aos olhos do futebol de hoje e da sua condição física, um jogador pouco mais que banal.
Não nos enganemos ao pensar que Salvio não é/era importante para o Benfica. Líder de balneário, é inegável o seu amor ao clube e a forma como o defendeu sempre de tudo e todos (basta relembrar o seu pequeno conflito com Talisca aquando do jogo com o Besiktas na Luz para a CL). Rui Vitória sempre confiou nele, até quando o argentino não era capaz, para motivar a equipa para boas exibições. E o seu talento para o golo é absolutamente inegável, sendo um dos extremos mais competentes em frente à baliza. Mas “Toto” não é “inteligente”, futebolisticamente falando. Capaz de parar quando tem de acelerar, driblar quando tem de passar, passar quando pode atacar, chutar quando deve assistir, um sem-fim de ações inconsequentes que levam qualquer adepto à loucura, mas que sempre foram esquecidos pela sua enorme capacidade de concretização. Golos fazem as pessoas felizes, mas não tornam jogadores banais em estrelas.
O Benfica perde, aos poucos, grandes figuras que permitiram a conquista do Tetra e de muitos outros títulos, mas é uma evolução que acompanha, também, a evolução futebolística do clube. Com Bruno Lage, sente-se um clube moderno, adaptado às necessidades do futebol atual, com um lançamento sustentado de jovens talentos e um predomínio do trabalho intelectual futebolístico relativamente ao talento e força bruta que muitos treinadores ainda privilegiam. Salvio é um exemplo de um futebolista que se deixou ultrapassar pelas necessidades do futebol, muito por culpa das suas lesões. Os benfiquistas devem-lhe respeito, gratidão, ovações e as melhores memórias. Mas também devem a si mesmos a possibilidade de sonhar com um clube com jogadores de qualidade em todas as vertentes, completos, devem a si mesmos sonhar com uma equipa e não um conjunto de individualidades.
O argentino era uma ilha no mar de futebol que Lage implementou. A sua saída vem no melhor momento, para todas as partes, e mostra um Benfica preocupado com os seus atletas, como já o havia feito com Jonas, Luisão e Júlio César, mas também preocupado com o seu futuro futebolístico.