Cortes salariais: legítimo ou início de um precedente crítico?
A pandemia do Covid-19 tem colocado sérias dúvidas em relação ao funcionamento do desporto profissional, com o futebol, andebol, rugby, NFL, NBA e outras modalidades a enfrentarem sérios problemas tanto na sua fluidez nas contas ou na estabilidade orçamental, pondo os salários dos jogadores sob análise e “vítimas” de um potencial corte. Mas será este cenário realmente o necessário para garantir alguma espécie de “almofada” orçamental ou é apenas uma medida para agradar alguns?
CORTES SALARIAIS… PARA QUEM E COM QUE OBJECTIVO?
Do pouco que se sabe, os cortes salariais no futebol profissional vão ser imputados nos atletas e treinadores, sendo estes activos as maiores despesas para as finanças individuais de cada clube. Seja Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Pep Guardiola, José Mourinho, Neymar e afins, haverá provavelmente um corte salarial entre os 15-70% nos vencimentos de Março (parcial), Abril (total) e até quando durar o estado de total paragem no futebol, ficando na dúvida se o regresso à normalidade salarial se vai dar com o reiniciar dos treinos colectivos ou só quando existir calendarização efectiva de encontros oficiais.
Esta situação também já está a ser aplicada em diversas modalidades, como o rugby em que alguns jogadores já assumiram os cortes nas suas remunerações e, por exemplo, o seleccionador da Nova Zelândia (mais conhecidos como os All Blacks) Ian Foster já oficializou que durante os próximos meses só irá receber uma parte do ordenado acordado com a NZRU, de modo a ajudar neste momento de paralisação quase completa na receita mas mantendo as despesas vigentes.
Posto isto, e no que concerne aos dirigentes, empresários e intermediários? Nada foi mencionado até ao momento. E este é um dos pontos críticos que pode lançar uma nuvem de dúvida na solidariedade orçamental aplicada, uma vez que estes cortes parecem vir a ser aplicados somente aos jogadores e treinadores, deixando administradores e dirigentes a auferir os mesmos salários, fugindo a esta onda de cortes provocada pelo Covid-19. Contudo, este cenário parece exagerado e os dirigentes também deverão impor a si mesmos cortes salariais de modo a fazerem parte da solução para manter os clubes a respirarem minimamente bem durante este período de estagnação a nível económico.
O objectivo é claro: cortes salariais para evitar um descalabro total nas contas e possíveis falências ou fechos de clubes. O futebol contemporâneo edificou um sistema altamente rentável que produzia biliões de rendimentos anualmente, cavando um fosso gigantesco de ano para ano com as restantes modalidades, sendo que esse distanciamento acontecia também já dentro do próprio futebol – os clubes ditos de menor dimensão continuam a perder espaço de manobra para os emblemas de dimensões ou patamares superiores. Todavia, e apesar desta solução temporária, é de criticar que as altas instâncias como a FIFA nunca tenham preparado planos de contingência para situações do tipo, tendo chegado tarde estas propostas que sofrem de alguns problemas na sua aplicabilidade ou extensão temporal.
MEDIDA POPULISTA OU FUNDAMENTAL PARA A SOBREVIVÊNCIA?
Por isso, serão estas medidas impostas com um princípio de agradar o público geral, principalmente aquele que tem dúvidas na forma como o futebol contemporâneo é gerido? Parcialmente sim, mas é admissível que estes cortes salariais podem auxiliar uma boa parte dos clubes mundiais de primeira/segunda divisão a conter a situação orçamental negativa, ajudando administrações a centrar as atenções no manter dos patrocínios e investimentos de marketing e publicidade sem esquecer a televisão (de onde vem a maior parte da riqueza do futebol) que vinham a ser um dos pilares da economia do futebol de equipas de média divisão.
Por outro lado, é preciso lembrar que tanto os atletas como os treinadores profissionais e semi-profissionais vivem totalmente ou parcialmente destes rendimentos conquistados com muito sacrifício (para quem pense que ser futebolista ou manager é um “paraíso” desengane-se, já que para chegar ao alto nível é preciso prescindir de vários elementos ditos normais do cidadão comum) e que o corte salarial pode implicar contrair dívidas fiscais e de outro género, que a longo prazo podem vir a ser nocivas para a vida de cada um, algo partilhado com a maioria da população afectada por esta paralisação de quase todo o sistema laboral económico.
Se no caso do FC Barcelona houve um entendimento entre o plantel e direcção para um corte salarial de 70% para cada jogador da equipa principal (os atletas blaugrana vão ainda ajudar no pagamento dos ordenados dos empregados do clube), já por exemplo no emblema escocês do Hearts tem se assistido a uma postura extremista e de terrorização para com os atletas que não aceitem baixar o ordenado em 50% durante os próximos 4 meses, prometendo uma suspensão total dos vencimentos de quem não aceite esta medida a partir de 31 de Março como a sua proprietária, Ann Budge já veio dizer. O SL Benfica pelo seu lado recusou fazer qualquer tipo de corte na sua folha salarial, garantindo que os direitos dos seus atletas mantenham-se intactos durante este período de maior stress e dúvida em relação ao futuro, evitando criar um cenário dantesco como alguns dirigentes de outros emblemas internacionais têm vindo a tentar fazer vincar.
A FIFA, em reuniões prolongadas na penúltima semana do mês de Março de 2020, chegou a uma série de consensos que formalizaram propostas a serem aplicadas pelas várias federações e clubes, seguindo uma recomendação geral para a descida dos salários – sem previsão para o seu regresso aos números pré-descida devido ao Covid-19 -, manutenção de todos os postos de trabalho, evitando assim que se permitiam despedimentos por se tratar de uma situação excepcional, e criação de um fundo que ajudará a confederações, federações, clubes, televisão e empresas associadas à modalidade, entre outras medidas significativas. A descida dos salários é, na opinião da instituição que rege o Desporto-Rei, para evitar despedimentos de funcionários sejam eles atletas séniores ou de formação, treinadores e restante staff… todavia, clubes e federações não podem demitir funcionários sem motivos reais para tal podendo incorrer numa situação de ilegalidade que ficará entregue a possíveis processos judiciais que poderão vir agravar o estado das finanças das instituições que optarem por esta via.
No meio deste caos e algumas faltas de entendimento entre vários clubes (na Bundesliga têm se assistido a uma diferenciação de decisões aos cortes na despesa mensal de cada clube), há que ter noção que os profissionais do futebol ou rugby (a World Rugby, ao contrário da FIFA, nunca se pronunciou sobre esta situação da mesma forma deixando ao critério das federações e clubes a gestão da actual crise, deixando só o discurso que ajudará as Unions a fugir a possíveis falências) têm direitos contratuais e não podem ser encarados como o “inimigo” por parte das suas próprias entidades patronais, como já aconteceu em alguns casos.
OS NEGÓCIOS MILIONÁRIOS SÓ SERVEM PARA UM “FIM”?
No meio deste momento profundamente conturbado a todos os níveis para a sociedade mundial, o futebol tem que fazer uma reavaliação na sua forma de estar. Não se pede ou exige que se façam mudanças extremas ou que se encete por outros caminhos como alguns já fizeram vociferar nas suas redes sociais ou até em blogs desportivos, mas é necessário olhar para a total inflação dos números de mercado como se dá no caso das transferências e contratações de jogadores, um ponto que só cria um cenário preocupante em termos de “bolha”.
Como é que o Atlético Madrid gastou 120M€ num dado jogador ou o PSG em Neymar por 220M€ e agora se imponha o discurso de que precisam de fazer cortes na despesa de modo a assegurar o futuro do clube? Fica exposta alguma hipocrisia na forma como os clubes e negócio do futebol é gerido, ficando provado que uma boa parte das direcções das SAD’s ou do management boards vivem numa realidade completamente diferente e que fazem uso dos seus activos até esgotarem-nos, rechaçando-os para depois adquirir novo activo e perpetuar um ciclo vicioso que tem marcado infelizmente o processo normal de vida do futebol actual.
Têm se visto exemplos positivos de como lidar com a situação actual, evitando entrar em histerismos ou em atitudes agressivas/rebaixadoras ou antagonistas para com os seus activos, olhando para um futuro positivo e em que o cenário do “Fim dos Tempos” não é aceitável e admissível.
O problema dos cortes salariais é a forma como os clubes poderão fazer uso deste “pacote” para evocar os mesmos cortes em futuras situações problemáticas para a suposta sobrevivência desse emblema, lembrando que há uma série de administradores que são adeptos do manobrar as regras em seu proveito. É necessário que a FIFA imponha clareza nestas matrizes de redução de custos momentâneos, evitando que direcções de clube se escondam em tribunais e aconselhamentos jurídicos para fazer regra da redução dos vencimentos dos jogadores profissionais… caso a maior instituição mundial desportiva falhe neste período, o futebol pode ficar efectivamente refém de quem dirige a partir da sua sala de reuniões.