Por que atletas devem cuidar da saúde mental?
A decisão da atleta norte-americana Simone Biles de abandonar provas das Olimpíadas de Tóquio para “cuidar da saúde mental” abriu a discussão de como os atletas de alto rendimento lidam psicologicamente com o estresse e as expectativas por resultados. Equipes de psicólogos do esporte são importantes para dar suporte a atletas e comissões técnicas, mas nem sempre conseguem evitar o adoecimento dos esportistas. O que pode fazer a diferença, no entanto, é usar a psicologia como prevenção e não somente para atuar em problemas já existentes, segundos especialistas consultados pelo Fair Play.
“O psicólogo do esporte elabora um programa de desenvolvimento junto aos atletas e à comissão técnica, em que são desenvolvidas competências psicológicas, que englobam o domínio de técnicas e habilidades que são intrapessoais e interpessoais e que favorecem a performance esportiva”, explica Luciana Ferreira Angelo, professora e coordenadora do curso de aperfeiçoamento e especialização em Psicologia do Esporte do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo.
No caso de Biles, especialmente, a expectativa por medalhas e o fardo de carregar no collant de ginástica o símbolo da cabra (Greatest Of All Time ou G.O.A.T em inglês), que significa a “Melhor de Todos os Tempos”, parecem ter lhe causado a sensação de sustentar “o peso do mundo nas costas”, como ela mesma disse, em um prenúncio de que não estava bem mentalmente.
“Quadros de Burnout são mais comuns em atletas do que gostaríamos, porque, na prática, são pessoas que estão sempre superando limites. Transtornos mentais em atletas de alta performance têm uma incidência ainda maior por causa desse estresse”, disse Eduardo Cillo, psicólogo do Esporte do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).
Começar na base
Cillo afirma que o trabalho da psicologia do esporte deve ser encarado como uma ação pedagógica, que precisa ser oferecida aos atletas ainda nas categorias de base. Dessa forma, os aspirantes a atletas de alto rendimento terão oportunidade de ser orientados sobre expectativas, entender como a rotina irá impactar aspectos sociais da vida deles e aprender a lidar com frustrações.
“Com isso você consegue ensinar elementos essenciais na preparação mental para lidar com compromissos, sacrifícios da vida de atleta, para que o jovem possa escolher se ele quer essa vida como carreira”, afirma.
A orientação psicológica dentro das quadras esportivas não é algo recente, mas ainda tende a ser encarada como necessária somente quando o atleta enfrenta problemas, afirma o psicólogo do esporte Alberto do Santos, criador do projeto Psicologia Radical, que atua na comunidade do skate e com atletas do skate de alto rendimento. Santos conta que até um tempo atrás era comum o psicólogo do esporte atuar como “um bombeiro apagador de incêndios”, sem se trabalhar com a prevenção dos sintomas. Mas isso vem mudando, sobretudo no Brasil.
“Anos atrás, o psicólogo só entrava em campo quando havia um problema de resultados fora do esperado, quando alguém não rendia bem nos treinos. Mas, com o tempo, foram entendendo que a psicologia anda junto com o desenvolvimento físico, técnico e tático do atleta”.“É preciso treinar os músculos e as habilidades mentais ao mesmo tempo. Assim, quando chega nas Olimpíadas, essas habilidades já estão refinadas”, completa.
Para o professor e preparador físico Marcio Atalla, a atenção voltada para os atletas durante as competições também aumenta a pressão psicológica. “O atleta que tem chances de medalha não pode colocar um pé fora, que tem 600 pessoas que não são da área, que cobram, fazem perguntas que não tem absolutamente nada a ver e que desconhecem o nível de competição”, destaca.
“No momento de olimpíada, a principal atuação do psicólogo é tentar preparar a cabeça do atleta para ele não carregar o peso do Brasil inteiro”, conclui.
Faltou apoio psicológico à Simone Biles?
A decisão de Biles impactou o mundo do esporte e fora dele, dividindo opiniões. Enquanto muitos citaram a coragem dela em demonstrar vulnerabilidade, outros acreditam que faltou amparo psicológico para a estrela da ginástica artística. Porém, para especialistas, a pressão exercida sobre a atleta, cuja expectativa era de ganhar diversas medalhas, pode ser devastadora até para quem recebe este tipo de apoio.
“Eu duvido que tenha faltado preparação psicológica porque nos Estados Unidos eles são muito bons nisso, há uma tradição. Mas não sei se teria preparação psicológica suficiente para o nível de expectativa que se jogou em cima da atleta. É um peso muito grande”, afirma Cillo.
Para Santos, Biles utilizou sua liberdade de expressão para tomar a decisão de forma empoderada, sem receio da opinião alheia, o que demonstra maturidade e autoconhecimento de suas limitações. “Ela decidiu não carregar as expectativas do outros nas costas e se posicionou”, avalia.
“O empoderamento do atleta é uma das funções da psicologia do esporte. Ensinar o atleta que ele é humano, que tem escolhas. Quando o atleta aprende a se empoderar, lida bem melhor com essas escolhas porque aprende a filtrar as expectativas externas sobre ele”.
O que fazer para manter a saúde mental?
Diante do ocorrido com a atleta dos Estados Unidos, fica a pergunta: o que atletas profissionais, amadores e pessoas comuns podem aprender com o ocorrido? Como podemos cuidar da nossa saúde mental diante de desafios que nos exigem excelência, foco e saber lidar com frustrações?
Psicólogos indicam estratégias, adotadas com atletas, que podem ser úteis também para quem não vive do esporte.
Se permita um momento de lazer
Atleta também é gente e, assim como qualquer mortal, precisa de momentos de relaxamento para se desligar da rotina de treinos e resultados. Mas, como a agenda deles requer rigor, não dá para extrapolar. Por isso, o indicado é separar algum momento do dia – seja no vestiário ou antes de dormir – para uma distração sadia.
Cillo indica que o atleta assista a um filme, série de TV, leia um livro, ou acesse algum conteúdo prazeroso para ele, mas que em nada lembre as competições. Parece algo simples para os não-atletas, mas pode ser a diferença para evitar episódios de estresse ou mesmo de burnout entre atletas, explica.
Ele dá como exemplo uma atleta que só de ter retirado o uniforme entre os treinos, e colocado uma roupa mais confortável, conseguiu relaxar mais e começou a adotar o hábito nos momentos em que podia descansar.
“É uma estratégia muito simples, mas que pode fazer toda diferença para quem vive sob pressão”.
Limitar o uso das redes sociais
Talvez nunca na história dos jogos olímpicos tenha se visto tanta interação de atletas nas redes sociais. Mas o que pode parecer um momento de descontração, também é visto pelos especialistas como perda de foco e distração desnecessários para atletas que devem estar focados.
“É fundamental limitar as redes sociais, já que suprimir é praticamente impossível. O smartphone é importante para a troca de mensagens com que não está na concentração, mas como as redes são acessáveis para todo mundo, tem que pensar se a pessoa que você mandou mensagem sabe proteger a privacidade destas mensagens”, afirma Cillo.
“Ficar interagindo com a expectativa dos outros faz com que o atleta saia do foco do trabalho, da competição”, afirmou Santos.
Técnicas para o controle da ansiedade
Segundo a psicóloga e neuropsicóloga da Unidade Campo Belo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Priscilla Godoy, os treinamentos dos atletas contam com pelo menos três práticas fundamentais: o relaxamento, a meditação e a técnica de visualização. Dentro das técnicas de relaxamento, a psicóloga destaca a respiração diafragmática, que ajuda a diminuir as frequências cardíaca e respiratória, aumenta a concentração e reduz os níveis de ansiedade. Você também pode tentar:
Sente-se numa posição confortável, com as pernas e os joelhos em um ângulo de 90 graus e com as costas eretas. Puxe o ar, contando cerca de 4 segundos. Segure o ar por 4 segundos. A seguir, libere o ar em quatro segundos.
“O número quatro não é fixo, isso depende de cada um. Para algumas pessoas pode ser difícil no início. A ideia é ir aumentando progressivamente”, explica Priscilla.
A psicóloga sugere que a prática seja feita por cerca de 10 a 15 minutos, duas vezes ao dia. “Isso vai moldando melhor nossas frequências respiratória e cardíaca. Além de trazer uma diminuição da ansiedade. Quando ficamos ansiosos, nossas frequências cardíaca e respiratória aceleram. Então, quando modulamos a respiração, mandamos uma mensagem ao contrário, do corpo para o cérebro, de que está tudo bem. O cérebro vai então acalmando”, conta.
Você sabia que a imaginação também pode ajudar no controle da ansiedade? Um dos métodos utilizados no treinamento dos atletas mostra que isso funciona: é a técnica da visualização.
Durante as sessões de terapia, os psicólogos trabalham com aquelas situações que podem induzir a ansiedade, com o objetivo de blindar a mente dos esportistas para o momento real, como uma competição, por exemplo.
“Buscamos construir cenários bem ricos diante de um processo de imaginação de tudo o que aconteceria naquele momento, de todas as variáveis, inclusive do ponto de vista sensorial, o que a pessoa estaria vendo, escutando ou pensando”, explica Priscilla.
“Antes do evento em si, das olimpíadas, por exemplo, o atleta já consegue ir buscando alternativas de pensamento para essas ansiedades e a regulação emocional para essas sensações. Quando ele chega ao evento, já tem um repertório que foi criado em sessão prévia para lançar mão naquele momento”, acrescenta.
Mindfulness pode ajudar?
O psicólogo do esporte Alberto do Santos afirma que entre as técnicas usadas na psicologia do esporte, há técnicas de concentração e de foco com base na metodologia de mindfulness (atuação no presente, espantando pensamentos negativos e ansiosos), que fazem diferença no desempenho de atletas e na forma como eles lidam com adversidades. Claro que, na rotina do atleta, isso acontece com hora marcada, em sessões individuais e em grupos e com foco específico. Mas há profissionais que atuam com a técnica indicada para diminuir a ansiedade e mesmo a depressão.
“O mindfulness é uma das principais técnicas que usamos para o atleta aprender a controlar expectativas porque os ensina a se livrar de pensamentos que não precisariam estar em suas mentes, ajudando a focar na atividade que ele está fazendo durante o treinamento”, disse Santos.
Para Priscilla, o mindfulness é mais do que um método, é um estilo de vida. “O mindfulness é mais do que a meditação em si, é uma técnica de atenção plena. Treinamos essas pessoas para que elas se mantenham atentas no aqui e no agora”, explica.
Segundo a psicóloga, as pessoas que enfrentam quadros de ansiedade estão sempre pensando no futuro, geralmente catastrófico. Já as pessoas em depressão tendem a se apegar aos acontecimentos negativos do passado.
Nesse sentido, o mindfulness busca focar a atenção em cada momento do presente, seja durante um treino, uma refeição ou o simples ato de tomar banho.
“É quase um estilo de vida que ensinamos. São pequenas ações que implementamos no dia a dia para viver de uma forma com atenção plena“, disse.
Procurar ajuda
Parece impossível sugerir a um atleta de elite que está sempre em busca de seu melhor, não se cobrar excessivamente pela excelência, compreender que pode falhar e pedir ajuda se sentir que não está segurando a onda sozinho. Mas quando falta essa compreensão, aumenta a chance de a pessoa ter algum transtorno mental, explica a psicóloga Daniele Nazari, psicóloga do Zenklub e especialista em saúde do trabalhador.
“As pessoas não aceitam a vulnerabilidade e a fragilidade de saber que, mesmo estando tudo sob controle, pode acontecer alguma distorção. Com os atletas, as pessoas se esquecem que tem uma pessoa ali, só focam no papel. Mesmo com todo o suporte, pode dar algo errado. Valorizar o autocuidado nessa hora é mais essencial do que representar um papel para a sociedade”, disse.
A psicóloga Priscilla Godoy explica que conhecer os próprios limites e aceitar essas limitações são atitudes que podem ser trabalhadas na terapia. “Não é uma receita de bolo, mas a terapia de aceitação e compromisso trabalha durante um processo terapêutico, junto com a autocompaixão, a ideia de que eu posso aprender quais são os meus limites e posso respeitá-los sendo compassivo comigo mesmo, assim como eu seria com um amigo”, afirma.
Segundo ela, uma das técnicas da terapia da autocompaixão é o toque compassivo, estimulado no momento em que os pacientes se julgam de forma punitiva.
“Pedimos ao paciente para que ele identifique esse momento, interrompa esse fluxo de pensamento e coloque a mão no peito, por dentro da roupa. É como se o indivíduo tivesse se abraçando e podendo dizer a si mesmo que está tudo bem, que ele tem limitações, e que fez o seu melhor”, disse.
Revista Olímpica# O que ainda pode acontecer em Tóquio? https://t.co/Tk5AfBfeGk
— Fair Play (@FairPlaypt) August 2, 2021