O dia em que Maradona virou Deus

Renato SalgadoNovembro 26, 20208min0

O dia em que Maradona virou Deus

Renato SalgadoNovembro 26, 20208min0
Descubra aqui, todos os detalhes do dia em que Maradona se tornou Deus e a vez em que El Pibe dividiu a cidade de Nápoles, nas semifinais da Copa do Mundo de 1990.

Era um sábado de junho ensolarado na Cidade do México. As quase 115 mil pessoas presentes no Estádio Azteca, e as bilhões assistindo pela TV, sabiam de quem aguardar algo diferente. E ele atendeu as expectativas. Mais do que um craque, dono da Copa do Mundo de1986. Don Diego Armando Maradona ali se transformava em Deus! Em um ser mítico! O “vingador” do massacre sofrido pelos argentinos diante dos ingleses na Guerra das Malvinas, ocorrida quatro anos antes. Mais do que a “Mão de Deus”e a regência da torcida “albiceleste”com a bola ainda rolando, aquele confronto pelas quartas de final do Mundial do México, além de dar a vaga aos argentinos na semifinais no torneio que venceriam, fez de Maradona um personagem que transcende o esporte para o país sul-americano.

Abaixo, uma homenagem do FairPlay, com o detalhamento estatístico e tático do desempenho do “El Pibe D’Oro” no duelo.

Estatística de Maradona contra a Inglaterra em 1986

O gol marcado com a mão foi apenas um dos 189 toques na bola dados pelo camisa 10 naquela partida. Entre eles, muitas conduções em velocidade, com a bola grudada no pé, uma marca de seu futebol, e principal fonte criativa de uma Argentina que foi muito forte no contra-ataque naquele jogo.

Esquema tático usado pela Argentina contra a Inglaterra na Copa de 1986.

Maradona atuava como um “segundo atacante”. Era o companheiro de frente de Valdano, um jogador com características mais “finalizadoras”, mas que acabava voltando mais que o camisa 10 quando a Argentina defendia. Tudo em nome da liberdade para o craque receber a bola assim que a seleção treinada por Carlos Billardo recuperasse a posse de bola. Ele era sempre o alvo. Recebia, conduzia e driblava, como fez no lendário segundo gol, e que tentou repetir diversas vezes antes dos nove minutos do segundo tempo.

Maradona iniciando um contra-ataque para a Argentina. Fazia isso seguidamente com conduções de bola em velocidade.
No momento defensivo, Maradona basicamente não participava. Aguardava a roubada de bola como homem mais avançado.

O potencial criativo da Argentina girava em torno de Maradona. Sempre procurando a região da bola, tinha total liberdade de movimentação. Em fase ofensiva, quase não buscava movimentos de profundidade, voltava alguns metros para articular e iniciar a construção das jogadas. Esperava o posicionamento dos companheiros mais a frente para tentar tabelas e finalizar. Muitas vezes, foi caçado! Recebeu nada menos que sete faltas, mas aplicou 13 dribles e perdeu outras sete bolas ao levar o seu individualismo a toda prova.

Maradona recuava em ataques de fase ofensiva para armar o jogo. Depois buscava tabelas com os companheiros.

A agressividade de “El Pibe” fica nítida pelo número de finalizações tentadas. Foram sete ao todo, mais que a metade de toda seleção argentina naquela partida. Cobrou faltas, escanteios. Foi, como de praxe, o dono de um time pensado para ele por Billardo. Valdano, Burrochaga, Enrique, Brown, Ruggeri, Cuciuffo e Olarticoechea foram ótimos coajuvantes para o brilho de Diego, mas todos sabiam a quem procurar nos momentos de roubada de bola ou de ataques mais pausados no campo ofensivo.

Rever o jogo contra a Inglaterra pela Copa do Mundo de 1986 deveria ser o único exercício obrigatório de futebol nesta mês de luto no esporte. Obrigado por tudo e tanto “Dios”!

Itália x Argentina Copa do Mundo 1990: O dia em que Maradona dividiu Nápoles

Que Diego Maradona deixou marcadores, zagueiros e goleiros adversários desconcertados com suas jogadas, não é novidade para ninguém. Afinal, o argentino foi um dos grandes gênios do futebol mundial. Mas, em 1990, ele provocou algo ainda maior: Maradona fez muitos torcedores da cidade de Nápoles ficarem com os sentimentos confusos em plena Copa do Mundo. Torcer pela Itália que te despreza como cidadão ou pela seleção do seu maior ídolo?

Para entender melhor essa história, o FairPlay volta um pouco no tempo, mais precisamente no ano de 1984. Após lutar até a última rodada para permanecer na primeira divisão do campeonato italiano, o Napoli contrata Maradona, então com 24 anos e vindo do Barcelona. O argentino ainda estava longe da lenda que se tornaria nos gramados, mas seu talento já despertava a atenção do mundo. A apresentação no estádio San Paolo teve direito a helicóptero e presença de 65 mil torcedores apaixonados. Era muito até então para os napolitanos. Embora tradicional na região sul da Itália, o time do Nápoli era quase inexpressivo em conquistas. Até aquele ano, os títulos do clube se resumiam às divisões inferiores e duas Copas da Itália (61-62 e 75-76).

O que os torcedores não imaginavam é que a chegada daquele jovem sul-americano representaria o início de uma era de ouro do Napoli. Sob o comando de Maradona – com grande destaque para os atacantes Carnevale, Giordano e principalmente do brasileiro Careca – o clube ganhou seus únicos dois títulos italianos (86-87 & 89-90), a Copa da Itália da temporada (86-87), a Supercopa da Itália de 1990 e o único título continental do clube, a Copa da Uefa de (88-89). Uma grande façanha de um clube mediano em um país dominado por gigantes com Inter, Milan e Juventus.

Maradona com a Supercopa da Itália no estádio San Paolo, em Nápoles (1990). Foto: Wikipedia.

Além do campo, os feitos liderados pelo talento de Maradona tinham um grande simbolismo social. Era a vitória de Nápoles frente ao preconceito dos moradores do norte do país, que muitas vezes se referiam à cidade sulista como perigosa, suja, e com pessoas pobres e preguiçosas. O craque passou, então, a ser idolatrado por um povo que fazia Nápoles cada dia mais um pouco argentina. Na Copa do Mundo de 90, quis o destino que uma das semifinais fosse justamente Itália x Argentina. E pior, em pelno estádio San Paolo. Venerado pelos torcedores e reconhecido como um gênio, após ter comandado sua seleção para a conquista do Mundial quatro anos antes no México, El Pibe tratou de colocar sua idolatria à prova, ao convocar os napolitanos para torcerem pela Argentina.

“Durante 364 dias do ano vocês são considerados pelo resto do país como estrangeiros em seu própio país e, hoje, têm que fazer o que eles querem, torcer pela seleção italiana. Eu por outro lado, sou napolitano os 365 dias do ano”, disse o camisa 10 argentino, às vésperas do confronto entre as duas seleções. O impacto do apelo de Maradona foi tamanho que o próprio presidente da federação italiana de futebol chegou a ir à televisão pedir para os torcedores de Nápoles apoiassem a Azzurra e pesquisas de opinião foram feitas para calcular até que ponto o craque argentino influenciaria no coração e mente dos torcedores locais.

No dia 3 de Julho de 1990, o que se viu entre os 59 mil torcedores presentes ao estádio foi uma mistura de sentimentos. Nas arquibancadas, uma faixa exibia a frase: “Diego nos corações, Itália nas canções”. Xingado pelos torcedores não napolitanos após o gol de Schillaci, Maradona ganhou o apoio da área do estádio ocupada pela torcida local. “Diego! Diego!”diziam. Mesmo que isso fosse duro à equipe italiana, naquele momento Maradona era quem recebia o carinho e torcida do San Paolo. Parte dos torcedores não se entristeceu ao final: 1×1 e vitória nos pênaltis, com duas defesas de Goycochea. O triunfo levou a nova confusão na final, em Roma.

Os napolitanos torceram para a Argentina, e o resto do país apoiou a Alemanha. A ponto de vaiarem a execução do hino argentino (gesto prontamente respondido por Dieguito com gritos de “hijos de puta”). No final daquele dia, a alegria era dos não-napolitanos: vitória de 1×0 da Alemanha, que conquistava sua terceira Copa do Mundo.

Em Nápoles, a fé em Deus e a idolatria por Maradona andam juntas. Foto: Romain Cherchi

Passadas três décadas desde aquela semifinal, muita coisa mudou em Nápoles. Longe das glórias dos tempos de Maradona, o clube foi rebaixado para a série C após decretar falência em 2004, um fim que não se consolidou. Mas, entre os torcedores, há duas coisas que não mudaram: a fé em San Genaro (patrono da cidade) e o culto a Don Diego Armando Maradona.

 


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