A Mitologia Grega e as transmissões da Libertadores no Brasil
A Copa Libertadores 2020 está de volta! A principal competição sul-americana reiniciou suas partidas na semana passada, para alegria dos adeptos. Porém, com os estádios ainda vazios, restou aos torcedores o acompanhamento dos jogos pela televisão. Uma tarefa que parecia simples, mas que se tornou uma verdadeira epopeia para os reles mortais, graças às decisões tomadas pelos deuses do Olimpo, em salas com ar condicionado e algumas reuniões virtuais.
No Olimpo…
A Rede Globo de Televisão (RGT) é a principal emissora de TV do país. Seus telejornais e novelas ultrapassam as fronteiras tupiniquins e sua influência é conhecida no mundo todo. A RGT dominava o monopólio da transmissão da Libertadores em TV aberta há vários anos, até que veio a pandemia de Covid19 para bagunçar todo o cenário de exibição das partidas do certame.
Tudo começou quando a RGT solicitou uma revisão dos valores dos contratos de transmissão junto à Conmebol, entidade que organiza a Copa Libertadores. Com a interrupção dos jogos durante a fase mais dura da pandemia, a RGT quis diminuir o valor pago à Conmebol, que não aceitou os argumentos da gigante televisiva brasileira.
Tal qual um jogo de pôquer, a RGT blefou ao ameaçar o rompimento do contrato na esperança, ou talvez na certeza, de que a Conmebol iria rever seu posicionamento. Pois a entidade sul-americana dobrou a aposta do pôquer e aceitou rapidamente o rompimento do contrato. Os direitos de transmissão da Libertadores estavam à venda…
Na Terra…
Os adeptos ficaram perplexos. “Como assim, a Globo não vai transmitir os jogos?” era a pergunta de dez entre dez torcedores das equipas participantes. O sentimento era de orfandade. Estávamos no início de agosto, o futebol a retornar aos poucos no país, e a incerteza de como seriam os jogos da Libertadores sem a poderosa Rede Globo tomava conta dos corações e mentes dos brasileiros. Com a saída da principal emissora do cenário, restou aos mortais apenas os canais pagos, ou as redes sociais e streaming.
O problema é que o Brasil é um país extremamente pobre, e palavras como streaming ou redes sociais não fazem parte do dia a dia de milhões de brasileiros que dependem apenas da TV aberta para poderem torcer e acompanhar seus clubes do coração.
O mês de setembro se aproximava, e todos já estavam a se conformar com a ideia de voltarmos ao bom e velho rádio, até que…
No Monte Sagrado…
O segundo escalão das emissoras do país estava em polvorosa. A Libertadores estava ali, disponível para quem quisesse, pois a monopolizadora RGT estava fora da mesa de jogo. As apostas foram feitas e o bolo foi fatiado. O Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) do empresário, apresentador, locutor, comunicador e ex-camelô Silvio Santos ganhou a partida de pôquer e trouxe a Libertadores de volta à TV aberta. Assim, no dia 10 de setembro, pouco mais de um mês após a saída da Globo e a seis dias do reinício da competição, o SBT divulgou o seu grande feito: iria transmitir a Libertadores da América. E comunicou seus telespectadores de forma muito divertida, ao utilizar um de seus humoristas para fazer uma sensacional imitação de Galvão Bueno, principal narrador da Globo:
O humorista Alexandre Porpetone, do SBT, imita Galvão Bueno, principal narrador da Globo
E os mortais…
Enquanto o jogo de pôquer acontecia no Panteão, os mortais se dividiam. O Brasil de hoje é um país extremamente bipolarizado, onde todo e qualquer assunto torna-se rapidamente politizado, e com o futebol isso não poderia ser diferente. O presidente Jair Bolsonaro, que foi citado pela Revista Time entre as 100 pessoas mais influentes do mundo, possui uma legião de seguidores que o apoiam cegamente, quase como num culto religioso. Eles batizaram a RGT de “Globolixo” e utilizam este termo pejorativo em todas as redes sociais. Os seguidores de Bolsonaro adoraram a saída da Globo, enquanto as pessoas mais coerentes observavam tudo isso acontecer com certo grau de preocupação.
Quando o SBT anunciou que havia assinado com a Conmebol, uma chuva de memes invadiu as redes sociais. O Brasil é o país dos memes e um assunto com esse peso não poderia passar batido.
A sensação era de alívio. Poderíamos assistir aos jogos da Libertadores em TV aberta. Mas havia um problema ainda a ser resolvido. Na fase de grupos, temos 7 brasileiros a disputar a competição, e o contrato do SBT previa apenas uma partida a cada rodada em transmissão aberta. Nos tempos da Globo, havia toda a rede dos canais por assinatura (Sportv) que poderiam transmitir as partidas. O SBT não possui canal por assinatura. Estávamos a dois dias da realização da partida entre Santos x Olimpia, e o jogo já havia sido batizado de “jogo fantasma”, pois não seria transmitido por nenhuma emissora de rádio ou televisão, nem mesmo nas redes sociais.
Na Montanha Sagrada…
Os deuses se reuniram para resolver o imbróglio. A Bandeirantes (Band), uma das emissoras que briga pelo segundo lugar em audiência com o SBT, possui canais por assinatura. Assim, rapidamente costuraram um acordo com a Conmebol e criaram a Conmebol TV, o canal mais lépido da história da TV brasileira.
O jogo do Santos, que seria um “jogo fantasma” na noite anterior, já tinha seu meio de transmissão certo. A Conmebol TV contratou a toque de caixa narradores e comentaristas, que foram duramente criticados nas redes sociais em seus primeiros jogos. O jogo do Santos teve sinal aberto para todos, a título de degustação.
Na terra brasilis…
Os santistas ficaram felizes com a transmissão. E todo mundo parou pra ver o novo canal, que entrou na grade de programação de um dia para o outro e pegou muita gente desprevenida. Nas redes sociais, as pessoas se perguntavam “Que canal é esse?”, “É de graça?” e falavam mal dos narradores e comentaristas. Mas todos gostaram da novidade.
O que não se sabia é que a conta viria em seguida. Na partida entre São Paulo e LDU, realizada em 22/09, apenas o primeiro tempo teve sinal aberto. No intervalo do jogo, o sinal caiu e quem quisesse assistir ao segundo tempo teria que pagar 40 reais (cerca de 6,5 euros) por mês para ver o restante da partida e as partidas subsequentes.
No alto da montanha…
Conmebol, Band e SBT comemoram com champanhe o resultado final do jogo de pôquer. A RGT não participou da festa.
Nas ruas do Brasil…
Os discípulos de Bolsonaro comemoram a saída da “Globolixo” do cenário do futebol na Libertadores. Por outro lado, os mais sensatos percebem que entre mortos e feridos, salvaram-se todos, mas quem pagou a conta foi o adepto. Cerca de seis euros pode parecer pouco, mas num país em que o salário mínimo não consegue servir para o mínimo, essa quantia faz uma enorme diferença. Há quem celebre a aparente derrota da Globo e prefira pagar a conta, mas definitivamente não é o meu caso.