A raridade do fenómeno seguido por Erling Haaland

Ricardo João LopesJaneiro 22, 20257min0

A raridade do fenómeno seguido por Erling Haaland

Ricardo João LopesJaneiro 22, 20257min0
Um contrato de quase uma década que Ricardo Lopes analisa entre outras coisas neste artigo dedicado a Erling Haaland

Erling Haaland e o Manchester City surpreenderam o mundo do futebol ao anunciarem a extensão do contrato do avançado norueguês até ao verão 2034. Afinal, não é todos os dias que um vínculo é prolongado desta forma, com uma data bem a longo prazo e em que o escandinavo terá peto dos 34 anos de idade e possivelmente já tinha passado o seu ‘prime’. Ainda assim, mesmo com os discursos sentimentalistas de Haaland e de Guardiola, poucos acreditam que o jogador se mantenha no clube até a esse verão, antevendo-se uma saída no mesmo espaço temporal da do técnico espanhol, que certamente não ficará no Etihad até 2034.

A verdade é cada vez menos verificamos extensões de contrato tão longas, principalmente nos grandes campeonatos europeus, sendo quase uma raridade, digna de abertura de telejornal. Usualmente, o máximo ao que assistimos são a prolongamentos de cinco anos, com mais um de opção. O Chelsea contrariou esta ideia, mas sabemos bem porquê. Os vínculos até 2030, 2031 ou 2032 não significam crença no jogador e nas suas habilidades, mas exibem a arte de ludibriar o fair-play financeiro, encontrando uma brecha na lei, que entretanto já foi alterada, por culpa da turma londrina.

Erling Haaland assinou um contrato histórico, certamente com um salário ao nível dos melhores do mundo e com uma série de bónus, mas possivelmente também acredita no projeto e que poderá conquistar mais algumas Premier Leagues, além de ambicionar com a chegada da Bola de Ouro. Estamos a abordar igualmente um caso de topo. Há poucos clubes mais fortes que o Manchester City, com melhores condições. Apesar da cidade horrorosa e um clima que não deixa ninguém sair de casa, Erling Haaland tem todas as condições para se transformar no melhor do mundo por lá, sem ter que rumar a Madrid, Barcelona ou Munique, por exemplo.

O escandinavo seguiu o exemplo de outros, aos quais se tem que dar valor. Recordemos dois casos famosos, bem longe do nível do Manchester City. Jon Moncayola firmou um novo vínculo com o Osasuna em 2021, por 10 temporadas, chocando o futebol espanhol, já que era considerado um atleta capaz de dar o passo seguinte na sua carreira, preferindo fazer praticamente toda a sua carreira no El Sadar, turma que representa desde as camadas jovens e que o fez crescer enquanto atleta e homem.  O médio na altura declarou o seguinte:

«Estou aqui desde os 10 anos de idade e nunca vi um compromisso tão forte com as pessoas como hoje. Essa é uma das razões pelas quais decidi continuar, estou muito contente. Este ano ajudou-me a afirmar-me na equipa principal. É verdade que no ano passado estava um pouco verde para transmitir às pessoas como eu era, e este ano dei um passo em frente nesse sentido».

Oihan Sancet, em 2023, assinou o seu mais recente contrato com o Athletic, até 2032, conseguindo fazer algumas capas de jornais. O médio ofensivo, hoje em dia um dos craques da equipa (e um ou dois patamares acima de Jom Moncayola em términos futebolísticos) foi sincero e admitiu que prolongou a sua estadia pelo País Basco porque se sente em casa:

«Estou feliz, em casa, onde quero estar. O Athletic é um desafio para os jogadores do País Basco e eu quero fazer parte dele. Não há melhor clube para progredir como futebolista e como pessoa. O clube comprometeu-se muito comigo quando eu era cadete e volta a fazê-lo agora com um projeto muito ambicioso. Quero retribuir em campo toda a confiança que depositaram em mim».

Ainda existem clubes que conseguem estas raridades. O Athletic e o Osasuna, entre outros, estão numa zona geográfica em que a tradição e os valores regionais são fundamentais, onde a aposta na formação é uma peça importante, com os ‘miúdos’ a crescerem com o sonho de jogar no San Mamés ou no Anoeta, deixando de lado o Real Madrid ou o Barcelona. Falamos de casos isolados, impossíveis em outros países, que mereciam inclusivamente um texto extenso para os explicar. Em Portugal esta situação é inimaginável e mesmo nos outros países, descontando os clubes de topo, é praticamente algo impossível.

Tudo isto é ‘culpa’ do desenvolvimento do futebol. Pessoalmente não tenho nada contra o progresso, já que o desporto está melhor a cada dia que passa, além de mais complexo. O que quero dizer é que antigamente, leia-se anos 60,70,80, numa era em que o futebol nem era profissional, os jogadores queriam jogar nas equipas das suas cidades, no clube do coração e fazer lá toda a sua carreira. Temos inúmeros casos em Portugal de atletas que chegavam a Benfica ou Sporting e ficavam por lá, o que ajudou ao desenvolvimento do nosso campeonato. Claro que não existia scout, mal havia televisão, o que tornava mais complicada a missão dos emblemas lá de fora olharem para os portugueses.

A Lei Bosman mudou radicalmente o paradigma e ainda bem, já que os atletas passaram a ser donos do seu próprio futuro, deixando de estar presos a equipas, mesmo quando não tinham contrato com as mesmas. Um jogador tem o direito de decidir o que quer fazer na sua carreira, cumprindo naturalmente com as obrigações com o seu empregador, até à data limite do acordo entre as duas partes. Isto claro se o clube também não estiver a falhar. São recorrentes as situações de salários em atraso um pouco por todo o mundo.

Contudo, a maioria dos jogadores já não querem ficar numa equipa por 10 anos, tornarem-se exemplos para os miúdos, que procuram incessantemente contar com ídolos na equipa que apoiam. Hoje em dia o futebolista comum procura chegar ao topo, um pouco como Erling Haaland fez. Assinar contratos valiosos, preferencialmente em equipas que lhes possam dar títulos e sucesso a curto prazo. Todos querem jogar no Real Madrid ou no Barcelona, poucos ambicionam por algo diferente, algo que Moncayola ou Sancet preferiram, mesmo sabendo que poucas ou nenhumas vezes disfrutariam de um hino da Champions League no relvado.

Os próprios clubes, especialmente os vendedores, também não querem que os atletas fiquem muitas épocas no plantel. É necessário fazerem vendas, de maneira a cumprir com a legislação financeira, e para isso os melhores jogadores têm que sair, consoante propostas elevadas (daí parte da razão para a existência das cláusulas de rescisão). Por muito que os adeptos gostem do atleta X ou Y, a vitalidade da instituição está e estará sempre em primeiro lugar. Afinal, que benfiquista não gostaria que João Neves ficasse toda a carreira pela Luz?

Tudo isto resulta no fim dos one club man, mesmo nos casos em que já se cresceu numa turma de topo. O mercado transformou o futebol em algo rotativo, menos estático e cada vez menos serão os exemplos de jogadores que vão ficar a sua carreira inteira num só clube (mesmo com uma aventura saudita ou americana já mais perto dos 35/40 anos).

O exemplo de Erling Haaland, mesmo com a desconfiança de que em 2034 não estará por Manchester, é uma raridade e que alguns jovens atletas poderão ver como algo a seguir, mesmo em patamares distantes ao do City.  Veremos o que nos traz o futuro.


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