A ilusão de que o Chicote resolve: Manchester United e José Mourinho

Francisco IsaacMaio 12, 201913min0
Mudança em Old Trafford com a saída de José Mourinho do comando dos Red Devils. Terá o português feito de tudo para auto-destruir-se? Ou há algo bem mais perverso por detrás?

Pronto, José Mourinho já está fora do Manchester United e os Red Devils têm todos os seus problemas resolvidos, pensarão alguns “pensadores” e “treinadores-directores-de-bancada”. O treinador português era o Rei (pelo menos é número em alguma coisa) de todas as vicissitudes do colosso inglês que estava seriamente doente, quase exclusivamente à conta dos “antics” (tradução: invenções) de um técnico que não tinha noção do que estava a fazer, destruindo toda a identidade e memória de um clube… pensarão também esses mesmos “comentadores”.

Contudo, e todas as histórias tem este tipo de “mas”, e se dissermos que os problemas do Man United vão bem mais longe do que um simples mau comportamento, tácticas erradas ou má ligação com os jogadores por parte de um único membro do staff?

Se dissermos, e conseguirmos demonstrar, que o problema do maior campeão inglês de sempre estar no topo, em quem decide quem contratar, quanto pagar, que salários dar e qual a estratégia para o clube?

O FIM DO FUTEBOL ROMÂNTICO E A ERA DO “OUTRO” FUTEBOL

Ponto prévio a fazer: o Futebol Moderno matou o Futebol Clássico, isto é, o futebol do lirismo puro, do romântico, das histórias dos heróis que “refundaram” os clubes como Alex Ferguson, Arsene Wenger, Luis Aragonés, Brian Clough, entre outros tantos, não existe mais.

Existe sim uma máquina imparável e insaciável no que toca a fazer lucro com a “marca”, mesmo que isso não signifique títulos. Sim, leu bem, que não signifique títulos como foi o caso do Arsenal, Manchester United, AC Mlian ou FC Liverpoool.

Ao contrário de emblemas como o FC Chelsea, Manchester City, Paris Saint-Germain, RedBull Leipzig que apesar de também serem liderados por milionários, estes têm a consciência de que precisam de títulos para encontrarem o seu “lugar” no Mundo, Red Devils e Reds perderam essa “fome”, muito pela estratégia imputada pelas direcções, que vêm mais valor na “marca” do que o armário de troféus.

Tão simples e cru, tão mortífero que é para os adeptos fiéis aquele pedaço de paixão desportiva que carregam em si durante toda a sua vida, mas tão necessário para continuar a fazer a máquina “girar” e a comer milhões.

É o caso deste Manchester United da segunda década do Século XXI e a mudança total de tons e vontades da administração sentiu-se principalmente a partir de 2009 (altura em que a família Glazer começou a mexer profundamente nas operações estratégias para o futebol do Manchester United, com Ed Woodward a surgir já por trás): 10 títulos entre esse ano e 2018, em contraste com os 14 adquiridos entre 1998 e 2008.

Notar que só três desses troféus foram na Premier League (todos com “Fergie”), com o restante a dividir-se por Taças da Liga Inglesa, Taças da Inglaterra, Taça UEFA e Supertaça Inglesa. Com o envelhecimento de Alex Ferguson (e desenganem-se aqueles que pensam que o treinador escocês teria sucesso actualmente, muito pela mudança de contrastes na própria liga inglesa) a própria estrutura começou a ficar “orfã” do ritmo e idealização estratégia do lendário treinador, entregando esta pasta à família Glazer que tinha adquirido os direitos do clube, por completo, no ano de 2006.

O FIM DA ERA FERGUSON E O INÍCIO DA ERA WOODWARD

Em 2012, e num momento em que o United já estava seriamente a ser posto de lado pelos “novos” ricos Chelsea e Manchester City, Ed Woodward volta a dar o salto dentro do clube passando de director de marketing e comunicação para assumir o papel de vice-presidente da direcção do clube.

Woodward era, e ainda é, considerado um génio no formular de acordos comerciais e marketing tendo levado aos Red Devils fazer encaixes publicitários na ordem dos quase 200 milhões de euros num só ano, mostrando-se um visionário em termos de lucrar com a imagem de um dos maiores clubes de Inglaterra.

Contudo, é precisamente com a entrada de Woodward no board of directors que tudo começa a correr mal à equipa sénior do Manchester United, pois entre 2012 e 2018, passaram pelo clube três treinadores, com apenas sete títulos conquistados em seis épocas e meias, a maioria com o “mau da fita” José Mourinho. Ferguson levantou a última Premier League em 2012/2013 (no ano do seu “adeus”), David Moyes conquistou uma Supertaça (2013), Louis Van Gaal uma Taça de Inglaterra (2016) e José Mourinho uma Liga Europa, uma Taça da Liga Inglesa e uma Supertaça de Inglaterra.

Pelo meio, só Mourinho conseguiu ir além do 4º lugar, terminando em 2º atrás do super-nova Manchester City e à frente do Klopismo do Liverpool, da penumbra do Arsenal de Wenger, do campeão Chelsea e da raça dos Spurs. Nas competições europeias o melhor que atingiram foi os oitavos-de-final da Liga dos Campeões, mais uma vez com Mourinho ou a final da Liga Europa, novamente com o técnico português. Foi isto que se tornou o Manchester United e a culpa não pode ir só para um, dois ou três treinadores que passaram pelo clube.

Coincidência ou não, Alex Ferguson retirou-se praticamente um ano depois de Ed Woodward ter assumido o cargo que durante anos pertenceu a um dos braços-direitos do escocês, David Gill. 2013, marcou por assim dizer o fim do Antigo Manchester United e abriu espaço para o Novo, virado principalmente para rentabilizar a marcar e fazer crescer o clube a uma dimensão dominante em termos de imagem e reconhecimento, ficando as contratações, o scouting, a inteligência na estratégia para o futebol de lado e entregue ao tempo-livre que Woodward disponibiliza para essas pastas.

José Mourinho desde 2016 tinha lançado uma série de críticas à gestão actual dos Red Devils, queixando-se de constantes atropelos no que toca aos reforços, às renovações ou até na relação directa com alguns jogadores, deixando muitas questões no ar em relação ao papel da família Glazer e na liberdade de Woodward na pasta “futebol”.

Alguns exemplos da gestão actual do Manchester United: Luke Shaw, a certa altura um elemento “dispensável” para Mourinho, renovou em 2018 por um salário que está muito acima da sua qualidade enquanto jogador; constantes reuniões para planos-estratégicos com Van Gaal e Mourinho com Woodward a falhar no dia e sem aviso quando podia voltar a reunir-se; a família Glazer desinvestiram no United e desde 2005 já obtiveram cerca de um (1) bilião de lucro no clube.

JOSÉ MOURINHO CULPADO… SOZINHO?

Não significa isto que estejamos a dizer que o futebol instável, bipolar e, por vezes, depressivo do Manchester United seja só culpa de factores exteriores a José Mourinho… não, pelo contrário e o leitor pode e deve reler este parágrafo vezes sem conta para perceber que o artigo não se trata de um auto-de-fé ao treinador português.

Erros na adaptação da equipa a vários jogos, comunicação por vezes demasiado “bélica” com os jogadores (altura em que Martial jogava bem, fez uma crítica à personalidade do jovem francês), más escolhas em alguns reforços (Eric Bailly, Victor Lindelof, Alexis Sánchez, Henrikh Mkhitaryan por exemplo) e sempre a “denegrir” a dimensão do Manchester United.

Contudo, olhando para o que se tornou o clube desde a ascensão meteórica de Woodward, não farão sentido as críticas de Mourinho à forma pobre como o “futebol” dos Red Devils tem sido tratado pela sua administração?

Como é que um vice-presidente do clube se reúne com jogadores à revelia do treinador, toma decisões de renovação sem discutir com o staff e opta por sonegar as recomendações de reforços feitas pelo treinador durante o período de defesa?

É só visitar as páginas oficiais e redes sociais do Manchester United para ler alguns comentários bem interessantes de adeptos que apontam uma série de erros e problemas, deixando o “problema Mourinho” como secundário.

Ao contrário dos jornais portugueses, que passaram o tempo a dar voz aos tablóides ingleses (e se a imprensa nacional não sabe que o The Sun ou Daily Mail são tablóides ao ponto de terem inventado as notícias mais infundadas e escalabrosas possíveis nos últimos anos a todos os níveis, então não faz um trabalho de investigação digno de respeito), os adeptos mais comuns do Manchester United sentiram uma mudança profunda na vida do clube, ao ponto que tudo o que importava para eles deixou de importar para quem manda, tirando toda a mística e capacidade de rasgo que os Red Devils tiveram durante duas décadas.

José Mourinho teve dificuldades em dar outra dimensão ao futebol jogado, mas deu títulos; teve poucos reforços ao ponto que converteu Ashley Young num lateral-esquerdo útil e interessante (dos melhores no Mundial 2018); e nunca deixou de defender o clube ao ponto que os adeptos, jogo após jogo, com ou sem vitórias, aplaudiam de pé o treinador e apontavam o dedo a Ed Woodward sentado sereno e impávido na bancada, como se o “seu” Mundo não se alterasse com a falta de sucesso desportivo do clube.

Até que ponto este “tipo” de Futebol Moderno vai continuar a desvirtuar os maiores emblemas mundiais? Até que ponto é que os treinadores vão ser os únicos analisados escrupulosa e minuciosamente?

O AVISO QUE FICA PARA O FUTURO: NADA VAI MUDAR

O United há-de melhorar nos próximos tempos, Paul Pogba vai sair no próximo Verão e chegarão reforços do nível de Lindelof, Rojo ou Ander Herrera ao emblema, iniciando-se novo processo de “destruição”. Será que treinadores como Zinedine Zidane vão ser mais defendidos por serem da “nova escola” de treinadores, mais virados para lidar com os comportamentos estranhos deste tipo de estratégia no futebol?

Mourinho teve e tem culpa no 6º lugar do Manchester United, foi responsável por alguns dos jogos mais “tristes” dos últimos anos, mas também conseguiu infligir dano tanto no brilhantismo de Sarri, ou excentrismo de Klopp, faltando o título da Premier que o próprio Mourinho disse ser impossível aos Red Devils de atingir nos próximos anos, mantendo-se a estratégia e visão actual.

Nota final para quem diz que o treinador português tinha:

– Gastou mais que o City, Chelsea ou Liverpool em transferências. Mentira… O Manchester City de Pep Guardiola adquiriu cerca de 22 jogadores pela módica quantia de 601M€ nas últimas três épocas; no caso de Jürgen Klopp só contabilizámos os últimos três anos, senão ultrapassaria largamente José Mourinho, mas ficou nos 466M€; e o Chelsea sob a égide italiana de Conte e Sarri só fez um “arrombo” nas finanças de 529M€. O Manchester United de José Mourinho ficou nos 464M€, tendo só lucrado 125M€;

– O plantel do United é tão bom como Manchester City, Chelsea, Liverpool ou mesmo Arsenal e Tottenham. É só olhar e perceber que deste onze mais “fixo” de Mourinho, só dois jogadores saltavam para a titularidade (e mesmo um deles ficam dúvidas) imediata, sendo que os restantes lutavam por um lugar no banco ou eram dispensados: David De Gea; Luke Shaw; Eric Bailly e Chris Smalling; Ashley Young; Nemanja Matic, Paul Pogba e Juan Mata; Anthony Martial/Aléxis Sánchez, Marcus Rashford e Romelu Lukaku.

Tirariam Aguero ou Kane por Lukaku? Removeriam Nicolás Otamendi, Antonio Rüdiger ou Laurent Koscielny  por Eric Bailly ou Chris Smalling? E algum dos laterais do United encaixava no plantel do ‘PoolBlues ou Citizens? Não será esta equipa de José Mourinho “inferior” ou da mesma dimensão de plantel ao do Tottenham que “só” tem Harry Kane, Toby Alderweireld, Dele Alli ou Christian Eriksen?

Até que ponto Van Gaal e Moyes não foram feitos de empecilhos medíocres à conta da falta de estratégia directiva? São estas perguntas que ficam para o Manchester United dos próximos 5 anos.

UPDATE: COMPARAÇÃO ENTRE SOLSKJAER E MOURINHO

Ole Gunnar Solskjaer desde que chegou ao Manchester United em Dezembro foi treinador por 29 ocasiões e pegando nesse registo fizemos comparação com duas fases de José Mourinho ao serviço dos Red Devils: quando chegou em 2016 e nos últimos 24 jogos desta temporada. Considerámos e analisámos todas as competições nesta análise comparativa.

Apesar de um excelente início como treinador ao serviço do United, em que registou 11 jogos sem perder (e 8 vitórias consecutivas), o norueguês acabou a desiludir com 3 derrotas e 2 empates nos últimos 5 encontros.

De uma suposta flexibição e devolução de linhas mais profundas de ataque ao histórico emblema inglês, para um futebol inanarrável, sem sentido e com constantes problemas na transição de jogo (Paul Pogba levantou-se nesta 2ª parte da temporada, mas entretanto decidiu “desaparecer”), o norueguês tem um desafio complicado a ultrapassar na época que se segue.

Olhando para o registo de Mourinho em 2016, o treinador português realmente trouxe algo diferente, levantando os Red Devils numa temporada em que conquistaram três troféus, algo que só o City conseguiu fazer nas últimas quatro épocas. Em 29 jogos, Mourinho montou um ataque goleador (51) e uma defesa ágil mas não muralhada (35 golos sofridos), não conseguindo ter o mesmo registo de Solskjaer em termos de vitórias consecutivas (viria a consegui-lo depois), apesar de ter evitado qualquer derrota durante 12 jogos consecutivos.

Já olhando para os últimos 24 jogos de Mou ao serviço do Manchester United, é claro o problema da defesa permeável e de um meio-campo desatento e pouco dinâmico, consentindo 8 derrotas e 6 empates para além dos 43 golos sofridos. Todavia, e mesmo no pior período como manager ao serviço do histórico emblema inglês, Mourinho não apresentou uma série tão negra como Solskjaer, que averbou 5 maus resultados de forma consecutiva (últimos jogos da época).

Sendo que esta comparação pode não servir uma vez que o treinador norueguês não teve dedo nos reforços da equipa (e igual a Mourinho já começou a levantar dúvidas e problemas em relação ao que a direcção realmente deseja para o clube), há que notar que o efeito chicote só resultou durante um período, voltando tudo à normalidade cinzenta de antes.

Será portanto Mourinho vítima, culpado ou vítima-e-culpado pelo final que sofreu o serviço do Manchester United?


Entre na discussão


Quem somos

É com Fair Play que pretendemos trazer uma diversificada panóplia de assuntos e temas. A análise ao detalhe que definiu o jogo; a perspectiva histórica que faz sentido enquadrar; a equipa que tacticamente tem subjugado os seus concorrentes; a individualidade que teima em não deixar de brilhar – é tudo disso que é feito o Fair Play. Que o leitor poderá e deverá não só ler e acompanhar, mas dele participar, através do comentário, fomentando, assim, ainda mais o debate e a partilha.


CONTACTE-NOS