“Quem é que tem Covid-19?” ou o jogo de culpabilizar os jogadores
Tem sido normal ver nos últimos tempos alguns jornais desportivos a lançarem-se numa autêntica perseguição às equipas que assinalem casos de Covid-19 em um dado atleta (ou mais), tentando descobrir o nome desse mesmo e expô-lo à opinião pública. Não se dando satisfeitos por fazer esse exercício de fraco jornalismo, também tentam averiguar qual foi a vida que esse dado atleta realizou nos últimos tempos, deixando quase subentendido que o facto de ter jantado com amigos, ter estado numa dada festa ou ter ido férias é tudo reprovável e que deveria ser de certa forma castigado pela ousadia em fazer uso da sua limitada liberdade quer física ou mental. Nestes últimos 7 meses de entrada do vírus SARS-CoV-2 no dia-a-dia da humanidade, assistiu-se a um extremismo letal tanto de opiniões seja científica ou pública como da maneira de trabalhar de vários sectores, não fugindo a imprensa generalista ou de áreas especificas a esta influência negativa de algo que já inflige dano mais que suficiente.
No caso do desporto, enquanto alguns jornais e sites souberam lidar bem com estes tempos anormais (e não aceitamos que se imponha a conjugação das palavras “nova normalidade”), outros optaram por ingressar numa atitude extremista, de tentativa de impor novos comportamentos, de exigir que os atletas se tornassem máquinas desprovidas de vida para além das quatro paredes da sua casa ou do campo de treinos/jogos, de se lançarem a temáticas do impacto do Covid-19 no Mundo quando não é o seu campo de actuação, sem esquecer esta perseguição constante aos atletas, numa atitude a relembrar os paparazzi da viragem dos anos 90 para 2000, que seguiam ao pormenor o dia-a-dia das suas “vítimas”.
Veja-se o caso do Paris-Saint Germain durante a sua pausa para férias (parecendo que não, os atletas profissionais também estão consagrados por este direito inabalável de todo e qualquer funcionário). Alguns atletas foram infectados pelo coronavírus sofrendo imediatamente um ataque total por uma parte da imprensa mundial… se o L’Equipe optou por não tecer críticas à vida privada dos jogadores, aludindo que os mesmos iriam ficar em isolamento até registarem dois testes negativos, outros, como OJogo (um periódio de digno respeito mas que tem optado nos últimos três anos por cair em devaneios polémicos e controversos nada positivos para fomentar uma cultura desportiva de qualidade) optaram por fazer questão de revelar os nomes dos jogadores infectados, como poderão ver pela imagem associada. Este tipo de notícias só tem um objectivo, o de angariar cliques e tráfego nos websites.
Contudo, os downsides desta estratégia são visíveis: o fomentar de uma onda de comentários que vão desde os insultos mais banais até a considerações da vida pessoal de cada atleta; o criar de uma divisão perigosa entre público e os actores de uma dada modalidade, movendo quase uma ira generalizada que poderá levar a perseguições físicas; e a criação de uma cultura não desportiva mas sim social enraizada em princípios críticos e anti-democráticos, que visam acabar com a liberdade pessoal e privada de cidadãos, sejam eles atletas de qualquer tipo de modalidade.
Um exemplo mais local, foi a situação vivida pelo Sporting Clube de Portugal, do Gil Vicente ou do Desportivo de Chaves, e comecemos pelos flavienses. A situação foi mal gerida por todos os lados, a começar no delegado de saúde local que poderá ter tido uma atitude precipitada e demasiadamente agressiva, pondo uma “pausa” no jogo dos transmontanos e o Feirense quando este estava prestes a começar. De imediato tudo e todos tentaram ir ao âmago do problema, responsabilizado Guzzo e Samuel Silva num primeiro momento (foram os dois únicos jogadores a contrair o vírus do SARS-CoV-2) para depois criticar o facto dos atletas e staff técnico do Desportivo de Chaves terem jantado no dia antes do encontro… que é uma situação normal e comum quando falamos de um grupo de trabalho que treina, joga e convive todos os dias durante mais de 11 meses.
Os jornais desportivos tiveram receio de criticar o facto da direcção regional da saúde local e a Direcção-Geral de Saúde não terem seguido o protocolo estabelecido com a Liga de Clubes (Pedro Proença com um discurso de excelência, directo e agressivo, pôs em xeque as decisões das autoridades de saúde), optando por então quase dizer que a culpa de toda a situação era dos atletas, dirigentes e emblema afectado pelo problema. O mesmo aconteceu com o Sporting Clube de Portugal, com a imprensa a ter algum cuidado na maneira como criticava a acção dos “leões” mas sempre que possível tentavam lançar nomes para a “rua”, oferecendo ao público o direito de se solidariadar ou insultar quem foi infectado.
Se quisermos fugir ao futebol, é só ver como o judoca português Jorge Fonseca foi tratado quando este foi um dos primeiros atletas portugueses a contagiar-se com o coronavírus do momento… entre as críticas, houve uma tentativa de perceber se o campeão do mundo no seu peso tinha estado em contacto com pessoas da sua família e bairro, apontado para a irresponsabilidade do atleta não ter se distanciado de tudo e todos… pergunto-me, se os jornalistas responsáveis pelo escrever deste tipo de notícias se não esteve com família e amigos em contacto próximo desde o início destas novas regras de distanciamento físico? Ou são isentos desta “responsabilidade” que desejam imputar nos atletas, dirigentes ou qualquer outra pessoa do âmbito desportivo, político, social ou institucional.
Esta perseguição não se fica só pela prática desportiva, mas não há dúvidas que a mesma tem sido a área mais em foco pelos jornais, revistas, websites e todos os outros meios de comunicação social de maior ou menor dimensão e tem levado a um crescer de repúdio por parte dos agentes desportivos para com quem só quer alimentar os seus motores de cliques pelo lançamento de notícias e artigos de ataque aos indivíduos que foram infectados pelo SARS-CoV-2. Veja-se o caso de António Lobo Xavier, especialista em Direito Fiscal e um dos membros actuais do Conselho de Estado, que sofreu um backlash pelos media preocupante por ter sido infectado, sendo alvo de críticas injustificadas por parte de alguns dos meios de comunicação mais importantes em Portugal, considerando-o quase como um inconsciente e um perigo para a sobrevivência do Estado Português.
A insanidade de comportamentos não é só do público geral, é também da comunicação social que tem sido na sua maioria uma parceira de excelência para o espalhar não do perigo e da responsabilidade em relação ao SARS-CoV-2, mas do lançar de um pânico total e de querer culpabilizar todo e qualquer pessoa mediática que seja infectado, procurando arrastar o nome das pessoas pela lama, provando o actual bipolarismo de uma boa parte da imprensa nacional e, também, internacional. Existe uma autêntica e vergonhosa caça ao homem, ou, caça ao infectado por uma certa imprensa que ainda está imersa no jornalismo disruptivo, desinformativo e desleal para com o público que procura realmente boa informação, montado sobre os aspectos do inteligível e prático. A culpa será totalmente da situação actual ou a “doença” não só existia antes como aumentou no aproveitar-se deste momento em particular?
Judo: Campeão mundial de judo, Jorge Fonseca, testou positivo à covid-19 https://t.co/j5D45GcX5i
— Público (@Publico) June 24, 2020