“História de dois jogadores” – A Importância do Treino Mental
As bancadas compunham-se enquanto Zé Tuga e os Lusitanos entravam no campo sob os fortes cânticos da claque portuguesa. Era a final do Campeonato Ibérico e os Lusitanos tinham conquistado o lugar na final contra a equipa que se classificou em primeiro na fase regular, os Blancos de Madrid. Enquanto Zé Tuga driblava a bola à frente da coluna de colegas de equipa em volta do campo, como era habitual nos aquecimentos da equipa, o seu coração batia mais rápido, a sua respiração era ofegante e os seus músculos estavam tensos. E porque não haveria de estar assim? Este era, de longe, o jogo mais importante do ano para os de Portugal que, até este jogo, ainda não tinham conseguido vencer os seus rivais de Madrid. Agora, se conseguissem esta vitória, estavam a um passo de ‘fazer história’.
Vencer a final traria imenso reconhecimento para a equipa visto estarem presentes muitos repórteres locais e, inclusivamente, jornalistas de jornais nacionais e internacionais. Esta era também a hipótese de Zé Tuga impressionar alguns responsáveis de outras equipas que vieram observar Pablo, candidato a melhor jogador deste campeonato. Zé Tuga estava, secretamente, esperançado em ‘roubar’ as luzes da ribalta ao seu adversário. Por isso queria que este fosse o jogo mais importante da sua carreira. Queria o reconhecimento devido para a sua equipa mas queria, acima de tudo, impressionar as pessoas importantes e influentes que estivessem a ver o jogo. Ainda por cima, parecia que o País inteiro se tinha reunido para vir assistir e apoiar a sua equipa neste importante jogo. Como jogador influente, Zé sabia que os adeptos contavam com ele para que a equipa portuguesa conseguisse o primeiro apuramento para a Euroliga. Todos estes pensamentos invadiam a cabeça de Zé enquanto a sua equipa terminava as voltas de aquecimento e se dividia em duas colunas para lançamentos na passada.
Zé atacou o cesto e marcou a sua primeira ‘bandeja’, para em seguida correr rapidamente para trás da coluna dos que apanhavam o ressalto. Enquanto esperava a sua vez para apanhar o cesto/ressalto, olhou para as bancadas para ver se via os seus pais e a sua namorada nova, Vitória. Avistou-os na bancada à frente do banco da sua equipa. Vitória acenou-lhe excitada mas o Zé, por causa do enorme ruído feito pelos ‘ultras’, não conseguia ouvi-la. Mesmo assim, ele percebeu a mensagem: Vitória estava esperançada que ele e a sua equipa conseguissem o resultado milagroso de que precisavam. Zé pensava isto quando chegou a sua vez e, com uma tapinha, colocou no cesto a bola falhada por um colega de equipa.
Quando voltou à coluna dos lançadores, Zé sentiu um pequeno desconforto no estômago e ‘nós’ nos músculos que pareciam ainda tensos demais. Tentou dizer a si próprio para relaxar. Mas quanto mais tentava relaxar, mais ansioso ficava. Decidiu então ignorar a tensão do momento, acreditando que ela desapareceria assim que o jogo começasse.
Após 10 minutos de lançamentos na passada e outros exercícios de manejo de bola, a equipa dos Lusitanos separou-se em vários grupos de 2 para lançamentos alternados de meia e longa distância. Zé colocou-se junto à linha de meio campo e observou novamente a bancada para tentar encontrar esses prestigiados jornalistas e treinadores de outras equipas.
Vislumbrou-os sentados juntos numa secção da bancada. Pena que pareciam estar a olhar para o outro lado do campo, certamente para a estrela dos Blancos, Pablo. Isto tornou Zé ainda mais determinado em mostrar aos ‘notáveis’ presentes tudo o que conseguia fazer dentro do campo.
Quando o colega de Zé lhe passou a primeira bola ele imediatamente driblou até ultrapassar ligeiramente a linha de 3 pontos e pensou “depois de marcar um par de tiros daqui eles passam a olhar para mim”. Mas os seus primeiros lançamentos ficaram curtos, tocando apenas ao de leve na frente do aro. A cada lançamento falhado, Zé olhava para a bancada para ver se os ‘notáveis’ estavam a ver. Felizmente, tal como ele suspeitava, eles ainda estavam a olhar para o outro lado a ver o tal Pablo, da equipa de Madrid. Tuga sentiu-se aliviado mas, ao mesmo tempo, frustrado. Aliviado por não estarem a ver as suas falhas, mas frustrado por ainda não estarem a prestar-lhe a devida atenção. “Eu já lhes mostro!”, pensou. Cerrando os dentes, continuou a fazer lançamentos longos, alguns verdadeiras ‘bombas’. Mas, tal como antes, poucos dos seus lançamentos entravam. Quanto mais lançava mais frustrado se sentia. Sabia que não estava relaxado nem a executar de forma perfeita o seu lançamento, dando-lhe pouco arco. “F***-se! Será que vai ser assim a noite toda? Não consigo meter um…” disse ele ao seu colega numa das vezes em que lhe passou a bola. ”Não consigo entrar no ritmo!”. Abanando a cabeça, Zé Tuga quedou-se junto à linha de meio campo, observando o aquecimento dos de Madrid.
Por esta altura, os jogadores de Madrid também executavam um exercício de lançamento. Tuga viu Pablo perto da linha lateral, esperando a sua vez para lançar. Pablo parecia estar num mundo só dele, alongando os músculos e aliviando a tensão nos braços e mãos. De vez em quando respirava fundo, abanava braços e mãos e deixava-os como que pendurados. Depois, como se estivesse maravilhado, Pablo fixou o seu olhar no aro, parecendo ignorar tudo o que acontecia à sua volta.
“O que se passa com este tipo?”, era a pergunta que Zé Tuga repetia a si próprio. “Parece que não está minimamente preocupado com o jogo!”.
Zé Tuga recebeu a bola e continuou a tentar o seu lançamento longo. Como antes, os tiros saíam curtos, longos, tortos, ou seja, a bola fazia quase tudo menos entrar no cesto. “Anda lá, cromo! Mete essa bolinha no cesto!”, dizia Zé por baixo da sua respiração. Mas, por mais que tentasse, nem o arco nem o backspin estavam a sair como desejava. O remoinho tinha começado! Estava a experimentar emoções que nem sabia que existiam. A sua tensão e frustração continuaram a aumentar com cada lançamento falhado. O ritmo e a confiança enfraqueceram. “Hoje não é mesmo o meu dia!”.
Do outro lado, Pablo começava a sua rotina individual. Mas ao contrário de Zé Tuga, os seus lançamentos eram curtos. Isto surpreendeu Zé Tuga porque Pablo era conhecido como um excelente lançador de 3 pontos. Apesar da sua reputação, Pablo continuou a lançar de curta distância e dentro da área restritiva. Enquanto Zé admirava o backspin e o arco perfeito que, com suavidade, levavam a bola de Pablo a sistematicamente entrar no cesto, perguntava a si próprio porque é que alguém como ele executaria tantos lançamentos tão simples e fáceis. É óbvio que lançamentos mais longos impressionariam muito mais quem assistisse ao jogo. Certamente que não estaria à espera de ter lançamentos tão fáceis contra a equipa dos Lusitanos. Ou estaria mesmo? “Eu paro já essas intenções!”, disse Tuga numa espécie de auto-motivação.
Enquanto Zé lançava de longa distância, Pablo continuou com o seu ritual simples de alongamentos, relaxamento, respiração funda e foco no cesto. Só no final do aquecimento é que Pablo experimentou o seu tiro de longa distância. Nessa altura o seu corpo estava tão relaxado que os lançamentos entravam com regularidade. Sentia-se preparado. Estava completamente ‘focado’!
Assim que buzina soou para o final do aquecimento, as equipas dirigiram-se para os respectivos bancos. Ambas as equipas estavam extremamente excitadas e entusiásticas. Muitos jogadores gritavam palavras de incentivo enquanto outros davam ‘high fives‘ ou batiam palmas. Zé Tuga mostrou um ‘punho cerrado’ aos adeptos, como que a dizer que estava preparado e confiante. Mas o seu coração batia pesado e as suas mãos estavam transpiradas. Zé sabia que não estava no controlo da situação. Estava tenso e incerto, enquanto esperava secretamente que a sorte desse uma ajudinha e os seus primeiros lançamentos entrassem. Assim que começasse a jogar tudo isto passaria.
Enquanto Zé estava com a sua equipa em frente ao banco, mantinha um olhar atento sobre Pablo. Ao contrário dos seus colegas de equipa, Pablo parecia distante. Estava muito calmo e sereno, contudo, completamente absorvido pelo jogo. Se estava preocupado com o desfecho final deste jogo ou com a presença dos jornalistas e olheiros, seguramente não o mostrava. E Pablo entrou em campo com passo decidido e fogo nos olhos.
O jogo começou e a equipa de Portugal ganhou a bola ao ar. A equipa jogou o seu jogo por ‘conceitos até que Zé Tuga apareceu solto na meia distância, a 45 graus do lado esquerdo. Olhou o cesto e soltou o lançamento com arco perfeito. Zé sentiu que este tinha sido um bom lançamento assim que a bola saiu das suas mãos mas, infelizmente, a bola ‘andou lá dentro’ e acabou por sair. A equipa de Madrid ganhou o ressalto e, enquanto corria para a defesa, Tuga murmurou: “Vamos lá, miúdo!”.
No outro lado do campo, Pablo recebeu a bola do lado direito com Zé Tuga a defendê-lo bem de perto. Fez uma finta, depois uma segunda finta, para terminar explodindo na direcção da linha final onde parou e suspendeu. Pablo tinha-se evadido da defesa de Zé Tuga por um momento, mas este foi rápido a reagir de maneira a contestar o lançamento. Com a bola ainda no ar ouviu-se o som do apito. Zé viu a bola a entrar no seu cesto e olhou rapidamente para o árbitro. “Falta? Eu nem lhe toquei, Sr. Árbitro!”. O árbitro respondeu com um olhar ameaçador e avisou: “mais uma reacção dessas e sai uma técnica!”. Zé Tuga não teve alternativa senão observar Pablo a converter o lance livre para dar à equipa de Madrid a vantagem inicial de 3-0.
Zé conduziu então a bola para o ataque, determinado a corrigir o erro acabado de cometer. Negligenciou o ataque colectivo e driblou até ao topo da área onde apareceu um defensor contrário. Mas este defensor era forte, vigoroso e defendeu-o sem dar espaço para o tiro. Na sua determinação e ansiedade, Zé Tuga efectuou um lançamento sem espaço e desequilibrado. A bola mal tocou no aro e ele percebeu que tinha acabado de agravar os seus problemas.
O jogo continuou e Zé Tuga começou a sentir cada vez mais a pressão e a ansiedade. Com cada lançamento falhado a tensão física aumentava até que perdeu todo o ritmo e confiança. O cesto, que em certas noites parecia mais largo do que uma piscina, parecia agora mais estreito que uma chávena. Lançava já sem arco ou backspin. O seu drible era hesitante e as suas mãos inseguras. Estava tão tenso que até lançou uma air ball. Na sua ânsia de corrigir esse tiro lançou-se à bola de forma demasiado agressiva e cometeu uma falta estupidamente desnecessária, que ainda veio piorar o erro inicial. O seu treinador, com muita pena, sentou-o no banco – um perdedor.
Zé Tuga manteve-se em silêncio durante o resto da partida e quando reflectiu sobre os acontecimentos do jogo não evitou a admiração pelo desempenho de Pablo. Pablo fez de tudo nessa noite – marcou, ressaltou, passou aos colegas livres, defendeu colectivamente. Também cometeu erros e falhou alguns lançamentos, mas essas jogadas pareciam não ter qualquer efeito sobre ele. Talvez tenha sido a atitude de Pablo que mais terá impressionado Zé Tuga. Pablo tinha o tal ‘extra’, algo que faltava a Zé, que mais não podia fazer do que olhar penosamente para os segundos que se escoavam do marcador electrónico, agora que a época se preparava para terminar.
Zé Tuga, como tantos e tantos atletas, foi um excelente jogador na formação. Contudo, ele sempre sentiu que nunca tinha chegado a aproveitar todo o seu potencial, apesar de tantas horas a aperfeiçoar os seus movimentos, a sua defesa e o seu lançamento ou ainda de tanto trabalho duro no ginásio para desenvolver a sua força e rapidez. Ele já tinha feito todos os exercícios possíveis e imaginários. Porque não era ele uma ‘estrela’?
Ao analisar os seus pensamentos e emoções no jogo contra a equipa de Madrid, bem como os altos e baixos da sua ‘carreira’ até então, a resposta pareceu-lhe óbvia. Ele nunca tinha encontrado nenhum jogador capaz de lhe causar tantas dificuldades como ele próprio.
FIM
(adaptado do livro “Basketball FundaMENTALs”)
Esta história é, obviamente, ficcional. No entanto, quase todos os jogadores (de basquetebol e não só) têm pensamentos e sentimentos semelhantes aos descritos por Zé Tuga. Porque sentem os atletas tamanhas frustrações? A resposta é simples: nós, os treinadores, muitas vezes negligenciámos a componente mental/emocional/comportamental dos nossos atletas e do jogo. Apesar do muito empenho no treino das componentes técnica, física e táctica, muitas vezes ficamos aquém do desejado ao nível comportaMENTAL.
Podemos então assumir que os atletas receberam pouco ou nenhum treino nesta área porque os treinadores não acredita(va)m que os factores psicológicos são importantes? Muito pelo contrário! Os treinadores sempre acreditaram que a dimensão mental do jogo é um ingrediente importante do sucesso. Lembrem-se da quantidade de vezes que ouviram um treinador dizer: “confiança!”, “calma!” ou “concentra-te!”. Mas alguma vez ouviram um treinador explicar COMO se constrói (e se restabelece!) a confiança, COMO se relaxa ou COMO fazer para se concentrar?