O (falso) problema com as naturalizações e a “guerra” contra “novos” portugueses

Francisco IsaacSetembro 19, 201811min0

O (falso) problema com as naturalizações e a “guerra” contra “novos” portugueses

Francisco IsaacSetembro 19, 201811min0
A mais recente discussão devido à situação de Pablo Pichardo, voltou a trazer as naturalizações para o centro de um debate complicado. Concordas ou não?

Pablo Pichardo será atleta da selecção Nacional de Atletismo a partir dos próximos campeonatos do Mundo ( se não acontecer nenhum problema físico até lá que o impeça de participar)… e de repente arrumou-se uma discussão que andou nas bocas de muitos durante várias semanas. Ou será que ainda está para começar?

O atleta nascido e criado em Cuba, país pelo qual ganhou medalhas e traçou recordes mundiais, optou por abandonar a sua pátria de origem para abraçar outros contextos e ambientes, colocando a sua carreira ao serviço de outra bandeira. Para alguns esta mudança é vista só com um par de olhos: oportunismo.

Verdade, que existe um sentido de oportunidade por parte não só de Pichardo e do pai deste (a razão pela qual saiu de Cuba passou por aqui e já vamos explicar) como da Federação Portuguesa de Atletismo ou do SL Benfica.

Todavia, esse sentido de oportunidade vai acabar por servir as cores nacionais na obtenção não só de medalhas, recordes, pódios e soar do hino, como poderá vir a garantir visibilidade de Portugal em vários torneios mundiais, entre os quais os Jogos Olímpicos. Mas a introdução de Pablo Pichardo vai tirar lugar a atletas portugueses? E isto não será o início da “descaracterização” do que são os verdadeiros portugueses nas selecções nacionais, estas que parecem estar a preço de soldo?

QUESTÕES NO CAMINHO DAS NATURALIZAÇÕES?

São duas questões que se fizeram sentir (aqui expostas de uma forma mais educada, por assim dizer) nas várias semanas que procederam ao início da discussão pública sobre a naturalização do cubano, agora português. Tentemos olhar para ambas e perceber até que ponto são boas ou más questões com bons ou maus fundos de argumentação.

Os apuramentos para os Europeus, Mundiais ou Jogos Olímpicos são feitos através de metas, isto é, um atleta que queira ir disputar uma prova por Portugal tem de atingir uma meta designada pela Federação Internacional de Atletismo, de modo a cumprir os mínimos exigidos para dignificar a prova. Mas realmente custa atingir essas metas? Sem dúvida alguma, pois requer não só anos de treino, como de evolução sistemática, de uma aprendizagem constante e de uma vontade de melhorar, fazendo sacrificios a nível pessoal e profissional para chegar a esses pontos.

São centenas de altetas portugueses que ficam pelo caminho na corrida às metas, às bolsas concedidas pelo IPDJ ou Comité Olímpico, enquanto que os que “sobrevivem” não só têm de treinar e demonstrar que conseguem manter o nível, como ainda têm de estudar e garantir uma vida profissional no futuro. O atletismo português é “profissional”, com aspas, uma vez que muitos dos atletas portugueses tiram formações, especializam-se e preocupam-se desde logo com o que vai ser o fim de carreira.

Ou seja, talvez só 1 em 10 de  cada duas gerações é que vai conseguir chegar a um nível bom de trabalho e evolução ao ponto de participar em provas internacionais como atleta português. Não é um caminho fácil, as condições estruturais em Portugal não são as melhores e falta mais visão por parte dos órgãos nacionais no fomentar de uma cultura olímpica-desportiva que traga não só resultados, mas multidões às várias práticas e bancadas.

Pichardo surge, assim, como um dos melhores atletas do Mundo do triplo salto e fará parelha com Nelson Évora na selecção portuguesa, tendo Portugal agora dois atletas prontos a atacar pódios, naquilo que é uma americanização do triplo salto português. O cubano-português não é um atleta qualquer, não vem para fazer número e não está contrariado em estar em território português, apesar das várias críticas lançadas pelo próprio de como as “coisas funcionam por cá” (burocracia, condições de treino e dificuldades técnicas).

Mais que tudo, Pablo Pichardo tem vindo ambientar-se e envolver-se na cultura portuguesa sem deixar cair os seus traços cubanos que completam aquilo que se chama de multi-culturalismo. Inclusivé tem aprendido a língua, não se imiscuindo de se “misturar” com a população portuguesa e aprender do que se trata ser português. Fez uma opção de carreira, não escolheu os Estados Unidos da América por exemplo (por questões técnicas e da impossibilidade de ser o pai a dar os treinos) ou França/Inglaterra, e ficou por Portugal.

Também é igualmente verdade quando se diz que Pichardo veio para cá “à conta” dos interesses do SL Benfica em ter um antídoto e que assumisse a cara do Atletismo dos encarnados depois da saída de Nelson Évora. Não obstante, a entrada de Pichardo nas provas e campeonatos nacionais deu um gosto diferente e pode criar um impacto interessante no desporto português, ao ponto de levar as pessoas a interessarem-se a descobrir um pouco mais sobre esta ou outra variante dentro do atletismo.

Tivemos e temos participantes olímpicos que só por si deviam trazer multidões aos meetings tanto de pista coberta como ao ar-livre. Contudo, como aconteceu nos Campeonatos Nacionais em 2016, o Estádio Municipal de Leiria estava vazio, apesar da participação de Nelson Évora ou de outros grandes velocistas do desporto português. Isto encaixa naquilo que se chama de falta de cultura desportiva, um caso cada vez mais assente na mentalidade dos portugueses.

Não sendo este um artigo de apontar dedos, avisamos desde já que a culpa não é do futebol nem dos seus agentes… a culpa é de quem tem levantado dificuldades na “venda” do produto, na promoção das modalidades, na sua valorização, no seu crescimento e destaque. O futebol tem Liga dos Campeões, Campeonatos da Europa e Mundiais, vivendo quase por completo isolado dos fundos estatais, dependendo de investimento e interesse privado. Isto é, tornou-se independente do sistema de apoio ao desporto em Portugal.

O Atletismo, por sua vez, já depende quase totalmente do financiamento conferido pelo Estado português que chega pelo IPDJ ou do crescimento de orçamento do Comité Olímpico. Em anos agrestes a nível económico, os atletas, treinadores e dirigentes foram forçados a “apertar o cinto” depois de já ter o mesmo quase totalmente apertado, retirando fundos no apoio ao desenvolvimento do Atletismo.

CRITÉRIOS, DISCUSSÕES E SOLUÇÕES

O efeito dominó aconteceu e Portugal só agora volta a começar a conferir condições mínimas para ter mais atletas a correr, saltar, nadar ou jogar a nível internacional, com ainda algumas restrições. Ou seja, nos últimos 10 anos têm surgido poucos valores nos 100 metros, salto em altura, salto com vara, triplo salto, maratona, entre outros, devido à falta de fundos para melhorar as acções de captação de novos praticantes e também pela falta de visão dos clubes e instituições nacionais na promoção das modalidades.

Posto este encaixe de contexto, respondemos facilmente à primeira questão: Pichardo não tira lugar a atletas nascidos em Portugal. Tanto seja porque no triplo salto praticamente só Nelson Évora atinge as marcas mínimas ou porque não existem tantos atletas a aparecer nesta variante como se pensa. O saltador do SL Benfica vem para dar um reforço aos atletas olímpicos nacionais e vai conferir medalhas, fundos e visibilidade à modalidade a par de Évora.

Em relação à segunda questão, é igualmente um não mas com algumas reticências. É importante que Portugal consiga ser uma localização atractiva para atletas em crescimento ou que já se tenham afirmado no contexto internacional, sendo uma nova boa “casa” para estes. Se cumprirem os critérios para obtenção da nacionalidade portuguesa (três anos com residência em Portugal), porque é que não podem ser considerados portugueses?

Por Portugal na Liga Diamante (Foto: SL Benfica Twitter)

Têm de existir critérios não há dúvida, como por exemplo o facto de terem de falar a língua portuguesa (até por uma questão de promoção de Portugal) ou dos tais anos de residência, mas não se pode inviabilizar que um atleta queira correr, saltar ou jogar por Portugal só porque não nasceu ou cresceu aqui na maior parte do seu tempo de vida. Veja-se o caso de Pepe, da selecção Nacional de futebol de 11: chegou ao CS Marítimo com 17 anos, despontou na Madeira e depois no Porto ao serviço do FC Porto, merecendo convocação para as Quinas.

Contudo, quando teve acessos de fúria que levaram a expulsões em jogos (Mundial 2014 por exemplo) foi logo “decretado” pelo público e alguns comentadores, que Pepe não era português e que não deveria poder jogar mais por Portugal.

Curiosamente, quando o central foi uma das pedras basilares da vitória no Europeu em 2016, a maioria dos críticos contra-naturalizações desapareceu de vista. É exactamente o mesmo funcionamento dos sistemas de contra-informação, destacando a informação que lhes interessa para depois silenciarem-se quando a situação não lhes corre de feição.

Noutro ponto, não se pode também comparar a situação de Nelson Évora com a de Pichardo em termos de não se poder queixar ou fazer críticas ao processo de naturalização do cubano-português, porque ambos partilham o facto de não terem nascido cá.

Évora veio muito cedo para Portugal, era um desconhecido e aprendeu em Lisboa a correr e saltar e foi aqui que começou a sua carreira como atleta internacional. Pichardo já é um atleta-feito, com honras devidamente reconhecidas, completamente destacado no ranking do triplo salto e esse facto merece não críticas, mas atenção especial.

Poderia ter optado por outro país, poderia ter optado por Espanha, Itália ou EUA, mas quis se envolver com a cultura portuguesa (sim, com base no profissionalismo conferido pelo SL Benfica) e tem demonstrado um interesse claro em saltar por Portugal. É o primeiro atleta-feito com medalhas conquistadas por outro país a participar no futuro por Portugal e isso merece destaque.

Nelson Évora pode criticar, deve expor a sua opinião de uma forma clara, como sempre o fez, e tem em parte razão quando disse,

“Sabendo que já há muita mudança para melhor dentro do desporto nacional, acho que o segredo passa por fazer os nossos acreditarem que podem lá chegar, mesmo com muito trabalho, e todos aqui o demonstram. E não passa por comprar atletas, naturalizar atletas (…).”.

A questão das naturalizações é “falsa” por assim dizer, porque naturalizar ou investir nessa via não significa que não se queira investir na captação de novos valores. O que tem de ser feito é investir nas duas vias, de captar atletas a nível Nacional mas também de abrir as portas a atletas que tenham sido rejeitados pelo seu país ou que queiram ir em busca de outros horizontes devido a dificuldades técnicas, económicas, sociais ou estruturais.

Vai sempre existir uma “guerra” entre Nelson Évora e Pablo Pichardo, não há forma de o evitar… mas será um “combate” saudável, que vai primar pelo desportivismo, pela obtenção de metas e recordes e de dar mais altitude à bandeira portuguesa. Não deverá ser encarado como sucesso, o facto de um medalhado saltador do triplo-salto ter escolhido Portugal como sua morada? E também não deverá ser visto com orgulho o facto de um descendente das antigas colónias ultra-marinas sentir a bandeira de Portugal de uma forma especial?

Serão eles menos portugueses do que alguém nascido em Lisboa, Porto, Loulé ou outra cidade, vila, aldeia ou lugar em Portugal? E todos aqueles luso-descendentes que deram uma força extra à selecção Nacional em França no Euro 2016, não contam também, ou só “somos” na realidade 11 milhões como apregoaram os anúncios televisivos que se esqueceram da Diáspora portuguesa que sente as Quinas com uma paixão única?

Como última nota, mais “cómica”, o facto de Pablo Pichardo ter-se queixado da excessiva burocracia portuguesa e do tempo que esta demora a dar resposta, não será já uma demonstração de que já é português?

O caso de Pepe… 101 internacionalizações por Portugal


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