Fair Play apresenta… Ultras
Em tempos de confinamento, o consumo de séries e filmes assume um papel importante para “desligar” de uma realidade desconfortável e preocupante, transportando-nos para um mundo distinto, mais livre e mais alegre. O scroll pelos conteúdos que as várias plataformas de streaming têm para oferecer substituiu, em grande medida, o zapping e, de quando em vez, somos presenteados com algumas pérolas desconhecidas. É este o caso de “Ultras”, uma produção italiana da Netflix.
A abertura do filme alerta-nos para que qualquer semelhança com pessoas e acontecimentos verídicos é pura coincidência e que nenhum dos elementos das claques do clube Napolitano participaram no filme. Apesar de esta comunicação trazer pouco conteúdo acerca da história e ser, no mínimo, discutível, a verdade é que nos demonstra outra faceta desta obra: não é suposto ser documental. E é este o ponto fulcral do filme que, não pretendendo transmitir a realidade tal qual ela é, permite-nos afastar em direção a um mundo fantasioso, mas alicerçado no real, que se apresenta como mais universal.
Seguindo duas personagens que guiam a ação, Sandro e Angelo, o filme segue uma estrutura bastante comum de filme de redenção. Sandro é Mohicà, líder histórico da claque “Apache”, figura carismática e incontornável no desenvolvimento do grupo. Angelo é um jovem adulto, irmão de um dos fundadores da claque, Sasà, que morrera anos antes em confrontos na capital, Roma. A escassas jornadas do final do campeonato, a equipa da Sicília segue na frente e em direção à conquista do campeonato, discutido na última jornada em casa dos rivais Romanos, num confronto épico. O twist? Sandro é um dos muitos ultras banidos dos estádios pelos seus comportamentos violentos no passado e que, em conjunto com os fundadores da claque, tentam manter o seu controlo, a sua ligação, a um grupo que não podem apoiar dentro do estádio.
É nesta tensão entre presença e ausência, entre o passado e o futuro (Sandro com 50 anos e Angelo na casa dos 18), entre o futebol e o modo de vida, que o filme trabalha e prospera.
Longe do Estádio e da Redondinha
Apesar da clara influência do “Desporto-Rei” no filme, a verdade é que o espectador não deve partir para este filme à espera de ver grandes jogos e momentos épicos dentro do Estádio. Apesar do amor que grande parte de nós nutre pelo fenómeno, a Vida vive-se em mais momentos do que aqueles que se passam “Ao Domingo, às três”, como cantam os ultras na cena final. E o trabalho de Francesco Lettieri, napolitano de gema, é o espelho desta busca na humanidade defiguras que não existem apenas no dia do jogo.
Com uma grande bagagem na realização de videoclipes para artistas italianos (dos quais se destacam os do rapper napolitano Liberato), a estética e a abordagem de Lettieri baseiam-se no uso dos néons, do slow-motion, na captura dos momentos fugazes da juventude, dos pequenos prazeres da vida, mais do que na vivência exagerada de um fenómeno desportivo. Não interessa demonstrar com veracidade como é que funcionam as claques napolitanas (que se organizam de uma forma muito mais complexa do que se possa pensar, com facções, disputas por poder e imensas divisões internas, muitas baseadas em bairros da cidade), nem o próprio jogo (é curioso como são raríssimos os momentos em que é possível vislumbrar um jogo de futebol profissional e como os próprios ultras insistem em ouvir o jogo na rádio, ao invés de o ver na televisão). Trata-se de um filme que procura humanizar estes intervenientes, demonstrar os seus erros, as suas falhas, mas também as suas virtudes e tentativas de redenção.
Vale a pena?
Como já afirmado acima, não se trata de um filme convencional de Desporto, preocupando-se mais com o drama das vidas das personagens e as suas histórias de crescimento e de redenção, do que com uma claque ou com um clube. Altamente estilizado, tal como os videoclipes que o realizador vinha fazendo, o filme é visualmente interessante e apresenta uma visão fantasiosa, mas bela, de uma cidade complexa, violenta e perigosa. A banda sonora é magistral, com o rapper napolitano Liberato a honrar a sua cidade e as atuações são competentes, sem deslumbrar.
No entanto, a história acaba por cair em alguns clichés que lhe tiram o valor de choque e de impacto junto do público. São criados momentos emotivos, de arrepios, mas não é fácil sentir empatia pelas personagens, que habitam um mundo e uma cultura muito diferentes da nossa. Um bom entretenimento em tempos de excessiva realidade.
Nota do Fairplay: 6.5/10