“Cromos” do Mundial: o caso do Zaire e Milos Degenek

Pedro PereiraDezembro 1, 20224min0

“Cromos” do Mundial: o caso do Zaire e Milos Degenek

Pedro PereiraDezembro 1, 20224min0
A Caderneta dos Cromos traz dois cromos de Mundial... um com sabor amargo, outro com uma história mais positiva e doce

Com um Mundial controverso a decorrer, a Caderneta dos Cromos escreveu duas entradas sobre histórias na maior competição de selecções do Mundo da bola redonda, com o Zaire de 74′ e o “aussie” Milos Degenek a merecerem a atenção.

ZAIRE E UM TRISTE DESTINO

Li que a seleção iraniana foi ameaçada com sanções (prisão e tortura segundo jornalista da CNN) caso não tenham um comportamento “correto” durante o jogo frente aos Estados Unidos. Mas não vou falar desse jogo hoje. Vou falar de outra seleção que foi vítima de ameaças e sanções caso não se comportasse devidamente no Mundial. Zaire, 1974. Primeiro representante da África Subsariana num Campeonato do Mundo. O ditador Mobutu depositou elevadas expectativas nesta participação. Antes do torneio, prometeu casas, carros e férias no exterior caso fizessem boa figura. Financia avultadamente a comitiva de dirigentes para que garantam que os jogadores sejam bem servidos e tenham todas as condições para brilhar. No primeiro jogo, perdem com a Escócia. Rapidamente os jogadores percebem que o financiamento brutal do ditador não era para eles mas sim para os dirigentes encherem os bolsos. Marcam greve em protesto.

A FIFA intervém e paga a cada jogador para que não faltem ao próximo jogo frente à Jugoslávia. Arrastam-se e perdem por 9-0. Provavelmente perderam de propósito, mostrando que mesmo jogando, protestam contra a sua federação. Mobutu, o ditador, não tolera revoltas. Informa que se perderem por mais de 4-0 na última jornada, teráo a sua vida num inferno. Ameaçou-os de que não voltariam a ver a família. Era contra o Brasil, campeão do Mundo. Há um momento deste jogo que ainda hoje é viral. Mesmo na altura, a ignorância imperou. Um comentador da BBC durante o relato chega mesmo a dizer que é “um momento de ignorância africana”. Hoje em dia ainda se ridiculariza o momento, dizendo que os jogadores do Zaire não conheciam as regras. Mentira (em maiúsculas).

Era desespero. Era para queimar tempo. Para desconcentrar o adversário. Estava 2-0 e eles não queriam sofrer mais golos. Muepu Ilunga foi quem deu o chuto na bola. Perderam por 3-0. Regressaram ao Zaire. O aeroporto estava vazio para os receber. A maioria dos jogadores morreu na pobreza. Mobutu morreu com cancro da próstata aos 66 anos com uma riqueza avaliada entre 4 a 15 bilhões de dólares.

MILOS DEGENEK E UM DESTINO DE FORÇA

O que um jogador sente quando joga uma partida de um Mundial não está escrito. Nenhuma outra competição de futebol terá o mesmo sabor que um Mundial. Seres selecionado para um lote bastante restrito para representar o teu país num jogo contra as melhores seleções do planeta é especial. Ainda para mais quando tens tanto para agradecer ao teu país. Funciona como um devolução de carinho por tudo o que ele fez por ti.

É o caso de Milos Degenek lateral que representa a Austrália neste Mundial e nasceu na Croácia, Knin. Degenek partilhou ontem uma imagem com duas fotografias: uma do êxodo de croatas na altura da gu erra da Jugoslavia e outra dele emocionado depois de um jogo num Mundial de futebol. A mensagem final era: nunca desistam de acreditar em vocês mesmos.
Eu acrescento: acreditem, confiem e apoiem refugiados como Milos Degenek.

Acreditar que por muitas adversidades que se atravessem pela frente, o caminho será bondoso e o destino acolhedor. Esse destino somos nós. Países seguros, em paz, capazes de oferecer tanto do que para nós é apenas normal. Foi assim a Austrália. Proporcionou a estabilidade necessária para que Milos e a sua família singrassem na vida.

Nascido na Croácia, foi com 18 meses que se tornou refugiado, indo para a Sérvia. Com a guerra a deixar pesadas e violentas marcas na região da Dalmácia, aos 6 anos vai para Sydney, Austrália. Hoje. é defesa na seleção australiana. Feliz pr representar um país que aprendeu a amar.

Sobre jogar futebol, ele diz que não sente pressão. “pressão é ser um bebé e fugir da guerra. Pressão é aos 6 anos estar no meio de uma guerra. Futebol é a alegria de querer sempre mais e melhor. De querer dizer aos meus netos e aos meus amigos quando for velhote que ganhei um jogo num Campeonato do Mundo.”

Já ganhou. Na vida, fundamentalmente.


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