O Baú de “Mister’s”: Guy Roux, o Chevalier de Auxerre

Francisco IsaacJaneiro 6, 202110min0

O Baú de “Mister’s”: Guy Roux, o Chevalier de Auxerre

Francisco IsaacJaneiro 6, 202110min0
Quem é Guy Roux, o mítico treinador francês que passou 43 anos ligado ao mesmo clube? Fica a conhecer mais sobre este senhor do futebol francês que marcou para sempre o Auxerre

Sir Alex Ferguson, Arsene Wenger, Willie Maley, Vittorio Pozzo, foram treinadores que se dedicaram quase por completo a uma só equipa na sua longa carreira, ficando no mínimo 20 anos ao serviço de emblemas como a Itália, Manchester United, Arsenal, Celtic FC, elevando-os a um patamar superior seja a nível de títulos, vitórias (é inesquecível aquela época de Wenger pelos Gunners, em que não perderam um único jogo em 2003/2004 para a Premier League) e estatuto de favoritos entre os adeptos. Contudo, há outro técnico que vai ficar na história como o treinador com mais anos de serviço a um só clube: Guy Roux. Para os adeptos mais novos, este nome não soará familiar até porque a última vez que apareceu num banco de suplentes foi no fim do Verão de 2007, naquilo que seria uma aventura de dois meses ao serviço do RC Lens depois de 40 anos… sim, 40 anos ao leme do AJ Auxerre, completando quase 2000 jogos ao serviço de um emblema que chegou a ser campeão da Ligue 1.

Mas será Guy Roux um nome incontornável do futebol francês e europeu? Sim. E porquê? Se o único título de campeão da Ligue 1 do Auxerre não é suficiente – e uma pessoa poderia argumentar que talvez os diplomates com outro treinador tinham conquistado mais, mas isso é apenas um “se” -, então o que dizer da quantidade de estrelas formadas por si como Bruno Martini, Basile Boli, Phillippe Mexès, Enzo Scifo, Abou Diaby, Djibril Cissé, Fabien Cool, Yaya Sanogo, Eric Cantona, entre outros tantos, que referiram e referem Guy Roux como essencial na sua carreira enquanto jogadores profissionais mas também como pessoas. O incontestável e mágico Eric Cantona descreveu a importância de Roux durante o tempo que passou pelo Auxerre, numa entrevista à Four Four Two,

“Eu deixei a minha família em Marselha e fui viver para Auxerre, que são 600 kilometres de distância com apenas 15 anos. Para os jogadores mais jovens do Auxerre, Guy Roux era como um pai. Eu gostava dele, respeitava-me e eu respeitava-o. Em alguns clubes a ligação entre treinador e jogador não é próxima, mas ele fez questão de tornar o Auxerre uma grande família. Se eu tivesse ido para outro clube, talvez a minha vida no futebol tinha sido muito diferente. Mas em Auxerre encontrei a minha verdadeira família.”.

Portanto, Roux agraciou o Auxerre com um título, formou uma série de jogadores que atingiram dimensão de estrelato – alguns campeões do Mundo pela França em 1998 – mas o seu futebol era algo de interessante? Ou foi na motivação, no saber liderar e no estruturar totalmente um clube/formação que foi referência durante mais de uma década e meia? É difícil dizer em relação à primeira, já que o futebol do Auxerre transitou entre um ataque incisivo e persistente de procura solidária em que os jogadores do meio-campo para a frente fossem vistos como ameaça pelos seus adversários em todos os momentos, para algo mais trabalhado colocando a defesa num patamar de exigência alta, de controlo total e de criar processos mais lentos e calculados na saída com bola do que entrar num contra-ataque desenfreado.

Não trouxe nada de novo, não criou uma nova era em termos de execução de um tipo de táctica ou estratégia mas percebeu que para criar uma dinastia seja a nível local, nacional ou internacional, era necessário desenvolver algo que nem todos os clubes pareciam preocupados: academia. Guy Roux procurou profundamente revolucionar a formação não só do Auxerre, mas também de inspirar outros clubes a seguir o mesmo caminho e de valorizar a posição geo-estratégica francesa, observando jogadores por toda a Europa, escolhendo os melhores para trabalhá-los e oferecer assim uma carreira de qualidade a todos os níveis.

Viajando até ao passado, Guy Roux foi jogador amador/semi-profissional entre os anos 50 e 70, alinhando pelo Auxerre, Limoges, entre outros de menor dimensão, tendo percebido os problemas que uma boa parte dos jogadores sofriam na sua caminhada para chegar a outro patamar. Em 1962 foi convidado para assumir o lugar de treinador-jogador do Auxerre e a viagem de 40 anos começou assim… primeiro campeonato em que treinou o Auxerre? Quarta divisão francesa. Em 1970 conquistaria o primeiro título pelo clube, a Division D’Honneur de Bourgogne e chegaram assim à 3ª divisão (Roux reformou-se como jogador nesse ano), para conseguir nova subida agora para a Ligue 2 em 1974. O clube foi desenvolvendo as suas escolas, com o treinador principal sempre muito presente nestes desenvolvimentos, atento tanto ao como se trabalhavam os jogadores jovens e como os treinadores iam aprendendo novas competências, sendo um profundo apaixonado por todos os contrastes do Desporto-Rei, como o próprio afirmou em diversas ocasiões,

“Quando eu tinha 7 anos queria jogar futebol a minha vida toda. E quase que o fiz, não foi?”

O trabalho de uma vida do treinador continuou em crescendo e depois de sedimentar o clube na Ligue 2, com boas posições na classificação, chegada a uma final da Taça de França (1979) e formação de jogadores de qualidade, foi capaz de garantir nova subida agora ao mais alto escalão do futebol gaulês em 1979/1980… mas será que o Auxerre teria as condições para sobreviver na Ligue 1?

Num primeiro momento, o dinheiro que entrou graças à chegada à final da Coupe de France e de novos investidores interessados em apoiar o AJ Auxerre poderia ter sido alocado em jogadores profissionais, mas a direcção do clube e Guy Roux optaram por outra ideia… aplicar os fundos no desenvolvimento de uma academia de qualidade estrondosa que conseguisse desenvolver ainda melhores jogadores, para além de se lançar a um scouting incisivo e inteligente. Em 1982 o centro de formação e a academia foi oficialmente estreada e dentro de alguns anos surgiram as grandes referências contemporâneas do AJ Auxerre como Éric Cantona, Basile Boli, Roger Boli, Pascal Vahirua, Frédéric Darras, Stéphane Mazzolini, Patrice Garande e Jean-Marc Ferreri, pavimentando a “estrada” que levaria o Auxerre ao título de campeão de França.

Os anos 80 foram de consecutivo desenvolvimento de todo o clube, profissionalizando uma estrutura que tinha saído dos campeonatos amadores franceses em 1970, mostrando-se Guy Roux irredutível no que toca a ir contratar jogadores mais conhecidos (isto é, mais caros), preferindo aplicar os fundos vindos de investidores e patrocínios no trazer de novos treinadores ou jovens desconhecidos mas que se revelariam atletas de boa qualidade e leais ao clube. Em 1984 teriam a sua primeira experiência nas provas europeias, com ida à Taça UEFA onde até jogaram contra o Sporting Clube de Portugal, revelando alguns traços interessantes de uma equipa irritante na defesa – Bruno Martini era o guardião que dominava entre os postes-, fisicamente intensa no meio-campo e agressiva na abordagem ao ataque, onde já despontava Pascal Vahirua, Christophe Cocard e, principalmente, Eric Cantona.

A estreia de Cantona pelo Auxerre

Passada a página dos anos 80′, os 90 – já sem Cantona – foram outro “Mundo” para o Auxerre, com uma presença mais normalizada na Europa (Taça UEFA) e constantemente a tentar se intrometer na luta pelo título. Entre 1988 e 2001 foi uma época mais vibrante da Ligue 1, já que nessas 14 temporadas houve sete campeões diferentes e um deles seria o Auxerre de Guy Roux. Fast Forward para o ano de 1995/1996 e para aquela equipa formidável dos diplomats: Lionel Charbonnier, Laurent Blanc, Taribo West, Alain Goma, Frank Rabarivony, Bernard Diomède, Phillippe Violeau, Moussa Saib, Sabri Lamouchi, Corentin Martins e Lilan Laslandes/Stéphane Guivarc’h.

Categoricamente o Auxerre assumiu-se como o grande candidato, impondo no relvado aquela astúcia à le Guy Roux que criava constante celeuma aos seus principais adversários, principalmente na forma em como não conseguiam fazer destoar aquela harmonia que existia entre as unidades dos diplomats. Num campeonato emotivo e jogado praticamente até à última jornada, o Auxerre levantou o título com o melhor ataque (69 golos) e defesa (30), ficando à frente do PSG e AS Monaco, conseguindo ainda arrecadar a Coupe de France para fazer a dobradinha num ano memorável de um clube que em 1970 estava na 4ª divisão. Até ao fim da sua carreira como treinador do AJ Auxerre, Guy Roux ajudou o emblema do centro de França a acrescentar mais três taças e uma Intertoto (título partilhado com Bastia e Lyon), abandonado o clube em Junho de 2005 após a final da Coupe de France.

Mas no meio destes feitos, caminhos conquistados e de uma história especial e única, era Guy Roux um nome consensual no futebol francês? Bem, digamos que não. Havia uma série de treinadores adversários e comentadores desportivos que apelidavam de Roux como um tirano no Auxerre, de um autêntico ditador dentro e fora do balneário, que se sobrepunha a tudo e todos, seguindo de perto as acções de todo o staff técnico, seja nos séniores, juvenis, infantis ou administração, com Michel Platini a ser um desses críticos,

“Só pensava em ser número um. Não existia mais ninguém para além dele…”.

Mas seria isto verdade? Entre o “pai de família” de Eric Cantona ao “monstro” ditatorial de Platini, Guy Roux tinha todo o tipo de facetas, mas a verdade é que para aguentar 44 anos no cargo de treinador do mesmo clube e permanecer imutável com as várias eras que o Mundo viveu no entretanto é natural que desenvolvesse um carácter duro, de impedir da mudança da rota traçada para o Auxerre, procurando sempre construir um legado único e inabalável. Como diz e bem o These Football Times,

“Resumidamente, Guy Roux era Auxerre. Antes dele ter chegado, eram essencialmente um clube diferente e quando ele abandonou, no ano do centenário, ele tinha sido funcionário há quase 50 anos… de amadores longe da subida para um clube com uma presença normalizada na Europa e candidatos ao título, o maior triunfo que se tira é a longevidade.”.

Guy Roux é uma lenda do futebol europeu, alguém que foi capaz de aguentar anos a fio no mesmo clube – e não lhe faltaram convites para assumir outros emblemas franceses – e de transformar algo completamente desconhecido num projecto vencedor e que incomodou os seus (novos) maiores rivais. Deixamos duas frases de Guy Roux que são tão icónicas como o próprio treinador,

“Eu faço questão de deixar uma luz acessa no meu escritório todo o dia e noite, como se fosse uma vela numa igreja para demonstrar que estava lá.”.

ou

“Algumas vezes penso quanto custa a uma pessoa vir 5 vezes por semana nos ver atrás de uma baliza… pessoas que às vezes não têm o que comer mas conseguem vir aos jogos. Saber que eles podem sair tristes por causa de uma derrota ou má exibição, é uma responsabilidade pesada para mim.”.

O dia que o Auxerre foi campeão da Ligue 1


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