Um mergulho no passado e na história do Sorocaba/Votorantim

Lucas PachecoMarço 16, 20257min0

Um mergulho no passado e na história do Sorocaba/Votorantim

Lucas PachecoMarço 16, 20257min0
Lucas Pacheco leu o livro dedicado ao Sorocaba/Votorantim, capitais do basquete feminino do Brasil e conta-te a importância desta obra

Em tempos de redes sociais e vida digital, com domínio de preceitos neoliberais, a individualização tende a obliterar a visada coletiva da vida social. Ao atomizar o processo histórico, o tempo presente alça-se como único modo de vida possível, relegando o passado, a História, ao rol do exótico; nossa vida é entendida como fruto de escolhas e ações individuais, não dentro de um processo histórico, com suas contradições e dinâmicas estruturais.

O basquete feminino (o esporte como um todo) brasileiro carece da visada histórica. Temos poucas obras destinadas a contar a história da modalidade, das condições e limitações impostas às pioneiras. A obra seminal Mulheres à cesta, de Cláudia Guedes (O Livro – Mulheres à Cesta), é a exceção que confirma a regra: o livro articula depoimentos das atletas da primeira geração que alçou a modalidade ao primeiro escalão internacional. A medalha de bronze no Mundial de 1971, a circulação das atletas, o cenário interno do basquete feminino nos anos 50 a 70, a disparidade imposta às esportistas são temas recorrentes, que precisam de luz para vir à tona e ampliar o entendimento do presente do basquete feminino brasileiro.

Capa do Livro

A historiografia do esporte deveria ser valorizada, pois realça aspectos importantes da dinâmica social. Não dispomos de sínteses amplas, capazes de relacionar o esporte à sociedade, as ações individuais da geração pioneira aos influxos coletivos e movimentos estruturais da sociedade. No momento, vamos colecionando fragmentos, testemunhos. Nesse sentido, o livro Sorocaba/Votorantim: capitais do basquete feminino do Brasil complementa o escasso e incompleto painel da modalidade.

Mais um testemunho de um personagem importante na modalidade, o livro segue o ponto de vista e a biografia de seu autor, Newton Corrêa da Costa Júnior, conhecido como ‘Campineiro’. Por mais enviesado e personalista que seja, não deixa de ser um importante relato de uma época pouco conhecida do basquete feminino praticado no Brasil. Estamos nos anos 1950 e 60, anterior portanto ao bronze no Mundial de 1971.

Campineiro praticou basquete e foi contratado pelo prefeito de Sorocaba (cidade no interior de São Paulo, distante cerca de 100 km da capital, com muitas indústrias e riqueza) para alavancar o esporte na cidade. A cidade abrigaria os Jogos Abertos do Interior, conquista política obtida com a condição de construção de um ginásio, o qual levou o nome do então prefeito, Gualberto Moreira.

Recortes históricos exigem algumas explicações: muitos esportes eram vedados à participação feminina. Mesmo aqueles que possuíam o naipe feminino, eram amadores, sem metade das condições disponíveis ao masculino. Muitas jogadoras citadas no livro, por exemplo, abandonaram a quadra após se casarem, ou trocaram o  basquete por profissões mais estáveis (como a docência). Os times disputavam campeonatos esporádicos e o livro relata o momento de mudança, ainda pequena e gradual, dessa realidade; não havia campeonatos nacionais (apenas os campeonatos entre estados), o campeonato paulista dava seus primeiros passos e os Jogos Abertos marcaram o principal e  mais constante torneio.

Por essa razão, o empenho do prefeito em sediar os Jogos. Para uma cidade que crescia vertiginosamente, o esporte serviria como propaganda e orgulho para os concidadãos. Campineiro não esconde isso no livro, dando um testemunho permeado de louvores. Fato é que, chegando à cidade em 49, como jogador do masculino e treinador do feminino, Campineiro logo impôs uma mentalidade diferente, criando condições para o desenvolvimento posterior da modalidade (um pulo no tempo demonstra como a estratégia surtiu efeito a longo prazo, pois Sorocaba dominou o cenário interno nos anos 80 e início dos 90- Sorocaba, o retorno | LBF).

Além da formação, por meio de escolinhas e divisão de base (a base era apelidado de ‘Minhoquinhas’), ele participou da consolidação do esporte como política municipal na cidade. Campeonatos entre escolas, mudança dos treinos para um ginásio coberto (antes feito em quadras abertas e precárias), integração entre categorias e implantação de metodologia moderna de treino: o resultado não tardou e Sorocaba alcançou o vice campeonato nos Jogos Abertos de 1950. O esporte brasileiro sempre foi resultadista e a prata deu força ao projeto de Campineiro.

O livro narra diversos triunfos, seu ponto de vista é dos vencedores. Ele não deixa de expressar seus descontentamentos e brigas políticas, que o levaram a reproduzir o modelo sorocabano em outras cidades do interior do estado (novo pulo no tempo: no auge do basquete feminino brasileiro, nos anos 80 e 90, a maior rivalidade ocorreu entre Sorocaba e Piracicaba, cidade onde Campineiro implantou o mesmo sistema de formação e treinamento).

Pouco ficamos sabendo, além da opinião pessoal do autor, sobre os campeonatos, sobre aspectos importantes da prática esportiva. Encomiástico, o livro porém abre brechas importantes – o basquete não teria alcançado o título mundial de 94, ou o vice olímpico de 96, sem a consolidação do interior paulista como pólo preferencial do basquete feminino (novo pulo no tempo: não á toa, 5 das 11 equipes da edição atual da LBF são do interior paulista).

Infelizmente, a leitura do livro é praticamente impossível: trata-se de uma edição local, de editora de Sorocaba, disponível unicamente na biblioteca municipal (PHL © Elysio – Biblioteca Municipal de Sorocaba). Por mais pessoal que seja o relato, o autor/treinador colheu resultados, com diversas jogadoras nascidas em Sorocaba figurando em seleções brasileiras (como Cássia e Genézia), com passagem em campeonatos mundiais. O próprio chegou a comandar a seleção no Sulamericano de 1968. Em uma época restrita, talentos jovens, como Heleninha, migraram para Sorocaba/Votorantim (formavam uma única municipalidade, vez que Votorantim emancipou-se em 1965). Com os olhos de hoje, parece impossível que Heleninha e Maria Helena Cardoso estiveram em  lados adversários – ela saiu de Sorocaba, rumo a Piracicaba, em 58. Norminha é outra jogadora lendária a passar muito cedo pelo comando de Campineiro em Sorocaba; com 19 anos, ela era uma das protagonistas do time.

Sem preocupação historiográfica, o livro cita times/cidades rivais; com todo o personalismo do relato, ainda assim vislumbramos Piracicaba, São Vicente, Santo André, Descalvado e SERI. Muito provável que cada uma dessas cidades possua sua história própria na modalidade, quiçá com relatos e depoimentos escondidos em arquivos empoeirados, em livros de reduzida circulação e acervos mal geridos.

Obviamente, o livro exalta a figura de Campineiro, outro viés muito característico na historiografia do esporte brasileiro, com ênfase no protagonismo mascuilino. Seria necessário mais informações para aferir a realidade desse viés – sem dúvida às mulheres eram restritos os espaços de gestão e comando (aqui prescindimos de pulo no tempo, pois ainda hoje essa é a tônica dominante), o que não impede que mulheres tenham tido tanta importância quanto os homens. Nesse sentido, o livro contrasta com Mulheres à cesta, que privilegia a oralidade das mulheres.

Há toda uma iconografia rica no livro de Campineiro, com fotos em profusão, ampliando os relatos parciais e pessoais do autor (Campineiro e sorocabano). Tentamos reproduzir algumas aqui, com a esperança de que esse quadro amplie-se e estimule novos estudos da história da modalidade.

Uma modalidade tão sucateada precisa relembrar seu passado para construir um outro futuro. Hoje, Sorocaba possui um time feminino, que não vence um jogo em torneios grandes (estadual ou liga nacional) há anos. Sem base, sem campeonatos locais entre escolas, sem envolvimento da cidade, a cidade orgulha-se de seu passado, não de seu presente. Talvez a retomada de uma biografia tão importante (NOTÍCIAS DA CIDADE DE VOTORANTIM: Morre Campineiro, o pai do Cruzeirão) ajude a mudar o rumo do basquete feminino em Sorocaba.


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