Um crossover inusitado entre basquete e cinema
A conexão entre basquete e cultura popular está longe de ser nova. A geração de jovens da década de 90 sonhava em ‘ser como Mike’ (be like Mike), desejo materializado no icônico tênis Air Jordan; voltando ainda mais, o esporte da bola laranja amplificou as tensões da guerra fria e cada novo duelo entre as seleções estadunidense e soviética (seja no feminino, seja no masculino) reverberava a rivalidade e a disputa típica da época. Mais recentemente, o crescimento da WNBA trouxe ao primeiro plano o protagonismo feminino, principalmente de mulheres negras e queers/homossexuais; nada mais atual que os recortes de gênero e sexualidade.
As pontes são infinitas, posto que o esporte é um fenômeno social. Poderíamos propor diversas abordagens; o crossover de hoje, porém, envolve o cinema e homenageia um dos maiores diretores dos Estados Unidos – e do mundo. David Lynch faleceu nesta semana, deixando um rastro de obras primas e um legado artístico impressionante.
Pode parecer estranho um enfoque desses em uma coluna dedicada a basquete feminino, ainda mais sem mencionar a biografia, os gostos pessoais do cineasta. Nada mais David Lynch que o estranho; sua obra refez itinerários do subconsciente e abriu brechas profundas no insólito, na crueza e na imaginação de várias gerações de espectadores. Esperamos que, esteja onde estiver, seja no Black Lodge, seja em uma estrada esburacada do meio-oeste norte-americano, o cineasta autorize o crossover aqui proposto.
Sob a aparente serenidade e constância da vida, borbulha um mundo obscuro que a todos envolve; inocentes e culpados trocam de papéis e impera a aventura e a normalidade do imprevisto. Produzida majoritariamente nos Estados Unidos, falada em língua inglesa, o estrato “real” parte do mundo estadunidense para adentrar em camadas mais profundas da psiquê humana. Para um esporte tão identificado a um país, que conseguiu lograr êxito mundo afora, o circuito universitário produziu gerações de estrelas do basquete. Assim, falemos do cinema de David Lynch, aproximando-o do basquete universitário feminino. De chofre, ainda complementamos os dois primeiros textos sobre a temporada universitária feminina (parte 1 e parte 2).
A série televisiva do início dos anos 90 marcou época e reformulou os padrões do gênero. Com extremo sucesso e índices altíssimos de audiência, a série caiu no ostracismo por um bom período, tornando-se marco de cinéfilos apaixonados. A série, ambientada em uma pequena cidade do noroeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá, foi interrompida após duas temporadas, devido à estranheza de seus capítulos finais e à violência e estranheza retratadas.
A universidade de Tennessee foi a primeira dinastia do basquete universitário feminino organizado pela NCAA. Ao conquistar o primeiro troféu em 1987, não se imaginava que a universidade comandada pela lendária Pat Summitt venceria mais 7 títulos nacionais, o derradeiro em 2008. O sucesso de duas décadas fez subir o nível da competição e impôs novos padrões às concorrentes. Mas, depois dessa fase, veio o ostracismo e uma fase de declínio, ainda que os fãs apaixonados repercutam os feitos do passado.
Twin Peaks gira em torno do misterioso assassinato de Laura Palmer, moça exemplar que tem sua vida devassada pela investigação, na pacata cidade do interior, movida pela exploração de madeira e pela especulação de turismo. A chegada do investigador do FBI, protagonista da série, muda o cenário da cidade; o crime é solucionado, mas a série segue investigando as razões, advindas de um mundo escondido e duplicado ao reverso.
Tennessee localiza-se em Knoxville, bem distante da costa oeste. A direção atlética resolveu promover uma drástica mudança na atual temporada com a contratação da pouco conhecida (e jovem) técnica Kim Caldwell, a primeira técnica pós-Summitt a não ter passagem prévia pela universidade. Aos 36 anos, ela está em sua segunda temporada na divisão principal da NCAA. As impressões iniciais são animadoras: a equipe possui campanha de 15 vitórias e apenas 2 derrotas, ambas apertadas e com chances de vitória nas posses finais. O sucesso inicial trouxe os holofotes de volta à universidade.
Não poderia existir, porém, um estilo de basquete mais diferente ao praticado pelos times campeões de Summitt. Caldwell aposta em trocas de quintetos completos, para manter intensidade altíssima e a defesa individual quadra toda por todos os 40 minutos. Esqueça as jogadas trabalhadas e o cerebral padrão tático de outrora; assim como o investigador da série, a universidade encontrou seu duplo invertido, onde reina o caos. Tennessee agora prioriza a velocidade, os chutes de três (muitos!) e a individualidade. O time lidera o país em pontos por jogo, figura no topo do pace (posses por jogo) e no pódio das tentativas de tiros longos. Por enquanto, vem dando certo.
A série aguardou 17 anos para ser retomada e ter um “final”; para saber se o estilo de Caldwell trará mais troféus para Tennessee precisaremos esperar quanto tempo?
Saindo do mainstream da obra lynchiana, no mesmo período da série, figura o pouco comentado Coração Selvagem. A história não mergulha no oculto, embora o mundo retratado seja estranho, muito estranho. Um road movie centrado no casal estelado por Nicolas Cage e Laura Dern, que empreende uma fuga pelos rincões do país. A equipe feminina de Kentucky não possui o status de sua contraparte masculina, antes passando abaixo do radar.
Não se engane: o filme é muito bom, assim como time comandado por Kenny Brooks, em sua primeira temporada a frente da universidade, após deixar Virginia Tech e fazer as malas. O time gira em torno, e depende, da dupla Georgia Amoore (armadora) e Clara Strack (pivô), ambas seguindo o técnico na mudança de cidade. Pode-se acusar o cinema de Lynch de muitas coisas, menos de seus personagens secundários serem apagados; pelo contrário, pequenas aparições sempre deixam rastro e causam impacto.
Kentucky chegará até onde a dupla – com seu característico jogo de pick and roll – conduzir, mas precisará que o restante do elenco impacte o time. Por mais talentosa que seja, um filme/time precisa de mais que uma dupla para atingir sucesso.
Ainda mais longe do núcleo do cinema de Lynch, marcado pela presença do estranho, seu filme mais realista é o singelo Uma História Real. Talvez visto como seu ‘lado B’, o filme comove pelo retrato de personagens simples e honestos: o protagonista, um velho perto do fim, parte em viagem guiando um trator, em busca da redenção e do reencontro com seu irmão, também perto da morte. Uma viagem por paisagens campestres e pequenas cidades, no qual prevalece o tom emotivo, sem camadas escondidas. O filme foge do padrão de Lynch e, talvez por isso, possa ser dos mais significtivos de sua carreira.
Maryland vem buscando sua redenção, após muitas saídas inesperadas. A técnica Brenda Frese, outrora tida como uma das principais da NCAA, passou por quedas repetidas; antes de cair no esquecimento, ela partiu para o portal de transferência. O time reviveu na temporada e, com campanha de 16v e 1d, surpreende. Um basquete simples, sem grandes invenções, bem praticado, sem grandes estrelas. Não estamos em cenário de grandes estrelas, mas diante dos percalços da vida, da quadra. Poucos tem (Brenda Frese), ou tiveram (David Lynch), tanto domínio de sua arte.