Israel Folau: falemos do Primado da Lei
É um paradoxo da democracia que a liberdade existe dentro dos limites da lei e que não é por isso absoluta, mas apenas aquela que é permitida pelas regras legais. E vem isto a propósito de Israel Folau e da sua saída forçada do râguebi australiano depois de ter dito no Instagram que o inferno aguarda os bêbados, homossexuais, adúlteros, mentirosos, fornicadores, ladrões, ateus e idólatras. Não foi a primeira nem a última vez que fez declarações do género, mas parece ter sido a derradeira enquanto jogador de râguebi, pelo menos na Austrália.
O público e o privado
Vamos por partes. Enquanto cidadão, Folau goza dos direitos consagrados na constituição australiana, neste caso a secção 116 do capítulo V, que impede o Estado de impor observâncias religiosas ou de proibir o livre exercício de qualquer religião. Afirmar que determinados grupos estão condenados ao inferno, a menos que se arrependam, nada tem pois de ilegal à luz da lei civil. E embora se possa argumentar que lá porque uma coisa é legal, isso não quer dizer que ela seja aceitável, convém lembrar que a liberdade de expressão existe para proteger aquilo de que não se gosta e não apenas o que é agradável.
Nesse sentido, dizer que Folau é livre de acreditar no que quiser, desde que o guarde para si, mais não é do que falsa tolerância, porque as liberdades religiosa e de expressão só o são se puderem ser exercidas não só em privado, mas também em público. Senão tem-se reuniões e culto secretos, como aquando da perseguição dos judeus. Ou, ironicamente, seria como defender que os gays são livres de o serem, desde que às escondidas, sem se mostrarem ou beijarem em público. Isso não é viver em liberdade.
Até aqui tudo bem, mas há uma dimensão que é preciso adicionar e sem a qual a compreensão – e desse modo avaliação – do que se passou fica incompleta: Folau não foi punido pelo Estado australiano. Não foi preso, não foi expulso do país, não perdeu a sua cidadania, não foi obrigado a praticar uma dada religião ou forçado a deixar de ter a sua. Continua a poder exercer as suas liberdades civis, tanto que, em Junho, um mês depois do seu contrato ter sido cancelado, voltou a condenar abertamente a homossexualidade num sermão que deu na sua igreja. O que Folau perdeu foi o seu emprego, não o elo com o Estado de que goza enquanto cidadão.
Regras privadas
Dito de outra forma, o vínculo quebrado foi o que unia o jogador à Federação Australiana de Râguebi, a qual, à semelhança de qualquer instituição, empresa ou organização, tem códigos de conduta a que estão sujeitos, pelo menos por princípio, todos os que têm um elo contratual. Todos os funcionários, associados, colaboradores ou atletas. Incluindo David Pocock.
Quem queira usar o chamado “menino dourado” como prova de que há dois pesos e duas medidas, tolerando-se o seu ativismo ao mesmo tempo que se pune o de Israel Folau, esquece-se que quando Pocock foi preso em 2014, no seguimento de um protesto contra a abertura de uma mina de carvão, foi alvo de uma reprimenda pelo corpo gerente do râguebi australiano. Porque quebrar a lei, mesmo que por uma boa causa, não se coaduna com o código de conduta a que está sujeito uma figura pública com um elo contratual. E embora tenha sido só um aviso e não um despedimento, Pocock não repetiu a proeza. Pisou o risco, foi-lhe dito para ter cuidado e o seu ativismo continuou, mas dentro dos limites da lei, sem mais desobediência civil.
E Israel Folau? Foi avisado em 2018, quando, em resposta a uma pergunta que lhe foi dirigida nas redes sociais, afirmou que o plano de Deus para os homossexuais era o inferno. E isto depois de, um ano antes, ele se ter distanciado – de forma respeitosa, é certo – da cúpula do râguebi australiano quando esta apoiou oficialmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, decorria na altura o debate para um referendo sobre o assunto. Quando, em 2019, voltou a verbalizar opiniões facilmente caracterizáveis como homofóbicas, só por milagre é que não haveria uma reação oficial.
Porque um atleta profissional é uma figura pública cujo comportamento não só influencia o dos outros, como se reflete na organização à qual está vinculado. E por isso mesmo há princípios – como os que abrem o livro oficial de regras do râguebi – compromissos e regulamentos internos. Os que regem o râguebi australiano são claros: a parte 2 do código de conduta diz que os jogadores devem usar redes sociais de forma apropriada (1.7) e que as suas ações não se devem refletir adversamente na equipa, clube ou na própria modalidade (1.8). E depois há a Política de Inclusão, que se destina a extirpar do râguebi australiano cancros como o racismo, xenofobia, misoginia e sim, a homofobia (1.4, 1.6, 1.7).
Valores e credibilidade
A continuarem as declarações de Folau, era pois inevitável que a Federação agisse; e se não o fizesse por sua iniciativa, fá-lo-ia por pressão dos patrocinadores. É que uma marca ou empresa está a fazer um investimento quando se associa a uma entidade desportiva, não só pela visibilidade que ganha, mas também pela imagem que transmite. Os valores da modalidade, o sucesso da equipa, o comportamento dos jogadores – tudo isso reflete-se nos patrocinadores. É ver o que fazem as marcas de cerveja com a seleção nacional de futebol. E tanto se reflete de uma forma positiva, como negativa.
Agora ponham-se no lugar de uma empresa (como a Quantas) que se pretende apresentar como moderna, tolerante, responsável e aberta. E depois imaginem descobrir que estão a dar a cara por um jogador que afirma, publicamente, que homossexuais (e já agora ateus) vão arder no inferno, isto é, que a sua orientação sexual ou a ausência de crença religiosa são condenáveis. É o mesmo tipo de discurso que justifica o bullying homofóbico – o “és doente”, “não és homem a sério”, “devias ter vergonha”.
Se é certo que há grupos que pensam assim, nada obriga uma entidade privada a ser um deles. Aliás, a tendência é para se ser cada vez menos como eles, porque o custo de se ser confundido com esses grupos é claro: perda de valor, de popularidade, de apoios, donativos, associados ou da imagem que ajuda a construir lucros.
O aceitável em mudança
Assim o é, porque há coisas que em tempos foram normais, mas que deixaram – ou estão a deixar – de o ser. Já se achou normal excluir as mulheres do desporto ou vê-las como atletas menores, algo que, para alguns ou nalgumas modalidades, continua a ser verdade. Racismo, infelizmente, ainda o temos em abundância e basta lembrar o que vai acontecendo com claques de futebol ou adeptos efusivos nos seus insultos a jogadores negros. E o mesmo é verdade para a homofobia, a mesma que é contrariada por campanhas, regulamentos e exemplos positivos como os de Nigel Owens e James Haskell. Israel Folau estava no outro lado da barricada, a remar contra a maré e a desconstruir o que se pretende construir.
Perguntarão alguns: mas fala-se em inclusão para afinal excluir do desporto algo diferente? Certamente, porque a tolerância nunca vai ser absoluta, tal como a liberdade em democracia não o é. O que muda são os limites do tolerável. E não vale a pena dizer que uma coisa é desporto e outra política, porque em sociedade tudo o que é público é político, porque diz respeito à polis – à cidade, à comunidade, neste caso à desportiva e o que ela tem por aceitável.
Convidamos à leitura dos seguintes artigos:
https://australia.rugby/about/codes%20and%20policies/all%20codes%20and%20policies
https://news.sky.com/story/gay-people-go-to-hell-says-australian-rugby-star-israel-folau-11317953