O estalar do verniz no judo nacional: factos e discussão
Antevia-se um mês de agosto de trabalho, com a elite do judo português focada na preparação para os campeonatos do mundo de Tachkent, que decorrerão na capital do Uzbequistão no início de outubro. Contudo, no dia 11 de agosto, uma carta aberta subscrita por 7 judocas do Projeto Olímpico, com acusações graves à Federação Portuguesa de Judo (FPJ), em especial ao presidente, Jorge Fernandes, originou um verdadeiro rebuliço, abrindo uma ferida profunda entre a atual direção da FPJ e os atletas subscritores.
Jorge Fernandes
O atual presidente da FPJ, Jorge Fernandes, tem um percurso no Judo com diversos momentos polémicos, decisões pouco consensuais, ou altamente questionáveis, alianças, ruturas… Liderou a Associação Distrital de judo de Coimbra, cidade onde cresceu e desenvolveu a atividade ligada ao judo, como judoca, treinador e dirigente. Ali reside e fundou o seu clube, o Judo Clube de Coimbra (JCC), há aproximadamente 19 anos. Envolvendo-se sistematicamente no processo eleitoral, apoiou diversas direções federativas, com especial destaque para as direções lideradas por António Lopes Aleixo, até ter ganho as eleições, como candidato a presidente da direção, para o quadriénio de 1017/2020. Em 2021, voltou a vencer as eleições para o quadriénio de 2020/2024, desta vez como líder da única lista que se apresentou a votos.
Numa análise objetiva e factual da prestação do judo português, foi no mandato de Jorge Fernandes que o judo português conquistou o conjunto de resultados mais notável e consistente a nível internacional, tanto no género masculino como feminino, bem como nos diversos escalões etários. No que respeita à gestão da Federação, conseguiu trazer para o nosso país uma etapa do “desejado” circuito mundial da federação internacional do judo, organizou um europeu de séniores em 2021, entre outras importantes competições internacionais que cá se realizaram, ou que estão confirmadas para visitar o nosso país nos próximos anos. De acordo com a informação que me foi disponibilizada, os pagamentos às associações distritais têm decorrido sem grandes sobressaltos ou atrasos, o que permite que o judo a nível distrital e regional continue em atividade.
Quando rebentou a crise pandémica, Jorge Fernandes conseguiu garantir uma rápida resposta, ao disponibilizar à elite do judo português, condições para que continuassem em atividade, montando uma operação em Cernache, arredores de Coimbra. Cernache que assim se tornou epicentro do judo de competição português.
O seu modelo de liderança é caracterizado por uma tendência, muito questionável, de concentrar em si a maior parte das decisões, havendo, inclusivamente, relatos de interferir nas convocatórias dos atletas. Isto apesar de estar rodeado por uma equipa com provas dadas, muito experiente, tanto na questão desportiva com na gestão “burocrática” da Federação. Contrariamente ao que sucederia caso se focasse no que é espectável e exigido ao presidente da mais importante instituição do judo português, este modelo de liderança tem-lhe provocado muitos dissabores, pois acaba inevitavelmente em polémicas totalmente evitáveis.
Destaco a sua cruzada, ou imposição, de concentrar eventos, competições e estágios, na cidade de Coimbra, ou arredores, o que tem sido objeto de muitas criticas, pois, como já tive oportunidade de referir em artigo anterior, nos últimos 3 anos temos assistido a uma autêntica romaria para Coimbra, de atletas, treinadores e árbitros, o que do ponto de vista da descentralização pode ser interessante, mas que não pode deixar de ser avaliado na perspetiva de custo/benefício face ao número de deslocados , sendo que na proporção que hoje se verifica, é totalmente inadequado e incomportável, especialmente porque tem associados gastos significativos (portagens, combustíveis, alojamento, alimentação).
A cereja no topo do bolo têm sido as constantes denúncias de ilegalidades e incompatibilidades, muitas delas por parte de elementos que o apoiaram no passado, em tempos muito próximos de Jorge Fernandes, das quais destaco a acusação, enviada ao Instituto Português da Juventude (IPDJ) de acumular vários cargos, ocupando ilegalmente o da presidência do JCC, o que é uma clara violação do consagrado nos Estatutos da Federação Portuguesa de Judo.
Sete dos 10 atletas do projeto olímpico de judo acusam a Federação Portuguesa de Judo, nomeadamente o seu presidente, Jorge Fernandes, de discriminação e ameaças, no que dizem ser um “clima insustentável e tóxico“.
Sabe mais: https://t.co/xUggUf7LKf pic.twitter.com/QHLsWtMBUM
— maisfutebol (@maisfutebol) August 11, 2022
CARTA ABERTA
O dia 11 de agosto de 2022 ficará marcado por um dos dias mais polémicos do judo nacional. Uma carta aberta, assinada por 7 dos 10 atletas atualmente integrados no projeto olímpico, Anri Egutidze, Bárbara Timo, Catarina Costa, Patrícia Sampaio, Rochele Nunes, Rodrigo Lopes e Telma Monteiro, foi publicada e objeto de destaque nos principais canais noticiosos do nosso país.
Na carta pública, e não vou entrar em muitos detalhes sobre o conteúdo da mesma, constam acusações gravíssimas. Fica evidente, face ao conteúdo da mesma, que o clima na seleção nacional é péssimo, ou tóxico, como é referido, e nada recomendável quando se aspira a salvaguardar os atuais resultados de excelência. São descritos e relatados diversos episódios lamentáveis; imposição de regras que causam desgaste físico e emocional aos atletas; falta de comunicação e articulação entre a federação e os clubes; desvio de verbas oriundas das bolsas atribuídas aos atletas por parte da FPJ (para suportar os gastos associados à manutenção dos treinos em Coimbra); censura e proibição imposta aos atletas de abordarem ou comentarem os problemas com que se têm deparado (em especial os relacionados com a saúde mental); descriminação dos atletas luso brasileiros… .
Vários atletas, ex-atletas, treinadores e dirigentes partilharam publicamente a sua solidariedade e apoio aos subscritores da carta. Foi o caso de Ana Oliveira, diretora do Benfica Olímpico, ou da atual treinadora nacional feminina, Ana Hormigo, que escreveu nas redes sociais “Não são apenas sete, mas foram estes sete com coragem para ‘dar a cara’ pelo judo nacional, por aqueles que não têm força, nem voz para se expressar”.
Os alarmes soaram, e as reações foram instantâneas, desde o presidente da FPJ, que negou tudo, mas acabou, em direto, por se contradizer… até ao Comité Olímpico de Portugal (COP), passando pelo Secretário de Estado do Desporto. A FPJ , o COP e o Governo acabaram por responder em conjunto ao conteúdo da carta, num encontro que tentou um entendimento entre as partes, com o anúncio, por parte do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, de um ajuste ao valor atribuído aos judocas para apoios a deslocação, entre outras medidas.
Se é muito positivo este desenvolvimento, o diálogo é fundamental para resolver estes diferendos. É evidente que muitas das questões, algumas demasiado graves para serem ignoradas, ficaram por responder. Intencionalmente, ou não, passou-se a ideia de que se atirou dinheiro para o problema e ficou tudo resolvido. Mas parece-me que há esclarecimentos que ficaram por dar e são indispensáveis.
Qual a posição do COP e do Secretário de Estado sobre o que se passou com os atletas luso-brasileiros? Qual a posição sobre a pressão e imposição para que os temas da saúde mental não fossem referidos ou partilhados pelos atletas? O que dizer da coação, por parte do presidente da FPJ, para que Telma Monteiro assinasse o relatório de contas da FPJ, quando ela não concordava com a rubrica relativa à alocação dos valores da sua bolsa de atleta? Ou será que sou o único a ter este entendimento?
Antes de terminar, confesso que para um “fervoroso” adepto do judo, é penoso e constrangedor ter de escrever sobre esta infeliz sucessão de acontecimentos. O estatuto e reputação que o judo ganhou na sociedade portuguesa, será irremediavelmente afetado. Espero que tudo se resolva, rapidamente, pois temo que o ciclo olímpico de Paris 2024 possa ficar irremediavelmente comprometido
Finalmente, prometo que nos próximos dias irei escrever um artigo com a antevisão dos Campeonatos do Mundo de 2022, a prova mais importante do ano, que terão início no próximo dia 6 de outubro na capital do Uzbequistão, Tashkent.