Natalia Hejkova no Olimpo do basquete com mais uma Euroliga
Na história da Euroliga, torneio mais longevo e tradicional do basquete feminino, o técnico Raimonds Karnitis sobra na lista dos técnicos mais vezes campeão; os 15 títulos foram conquistados durante o reinado do Daugava Riga, num momento histórico tão distante que exige contextualização. Na era moderna da Euroliga, após o fim do bloco comunista e a liberação de contratação de jogadoras do continente europeu, ninguém chega perto de Natalia Hejkova.
A técnica do USK Praga inaugurou seu impressionante legado com o bi-campoenato consecutivo pelo Ruzomberok em 1999 e 2000, consolidando sua história com outro bi-campeonato, desta vez pelo clube russo Spartak Moscow em 2007 e 2008. Seria suficiente para figurar na segunda posição de técnicos mais vencedores da Euroliga, feito ampliado com o primeiro título do USK Praga dez anos atrás, quando surpreendeu e venceu o grande favorito. Dez anos depois, cá estamos novamente: o USK Praga, comandado por Hejkova, conquistou a Euroliga, após vencer o turco Mersin Çukurova na final na semana passada.
Desde o início da competição, a grande questão era se alguma equipe conseguiria impedir o tri consecutivo do Fenerbahçe. A potência turca manteve sua grande estrela (Emma Meeseman), sua técnica (Valeria Garnier) e o investimento muito superior à concorrência. No mundo Fiba, raramente as equipes com mais poder aquisitivo falham em erguer troféus; o decorrer do torneio comprovou o amplo favoritismo turco, com o time chegando à semi-final de forma invicta. Na teoria, o time aguardava sua adversária, a ser definida no play-in da semi-final, entre o tcheco USK Praga e o italiano Schio.
Tanto esse confronto quanto o outro play-in seguiram roteiros parecidos: os favoritos venceram, em jogos duros e disputados até o fim. Praga venceu um desfalcado Schio, por 79 x 72, assim como Mersin eliminou o francês Bourges com a mesma diferença – 66 x 59. Schio e Bourges chegaram com esperança de vitória, graças aos bons times montados e comandados por seus excelentes técnicos; para avançar às semis, entretanto, precisariam que todas suas peças jogassem em sua máxima potência. Para as italianas, cujo eixo Kitija Laksa foi bem contida nos tiros externos, a ausência da armadora titular Ivana Dojkic pesou, uma peça a menos faria falta – e fez. Para as francesas do Bourges, o time executou bem seu plano de jogo, chegando empatado nos quatro minutos finais da partida, quando suas principais jogadoras (Pauline Astier, Amy Okonkwo e Kariata Diaby) tiveram bons arremessos – e falharam. As duas favoritas avançaram à semi, confirmando os prognósticos.
Na semi-final, Fenerbahçe era amplo favorito contra Praga; no outro lado da chave, predominava o equilíbrio entre Valencia e Mersin – as duas disputaram o status de principal concorrente ao Fenerbahçe, e teriam um jogo para decidir quem chegaria à final. Quando ninguém mais esperava uma surpresa, apareceu a magia e a genialidade de Natalia Hejkova. Acostumada a uma formação titular com uma pivô isolada (ao lado de duas armadoras e duas wings), a técnica promoveu duas mudanças essenciais: sacou a armadora Maite Cazorla (muito mal no play-in) e inseriu a pivô Ezi Magbegor como titular.
A mudança trouxe efeitos em cascata, não previstos pelo Fenerbahçe. Sem perder em mobilidade, defesa pressionada e tiros externos, a equipe ampliou sua altura: Valeriane Ayayi e Veronika Vorackova, acostumadas a alternar nas posições 3 e 4, jogaram de 2 e 3. Gabby Williams enfim teve uma marcadora de porte similar à sua frente, assim como o reforço turco de última hora, a ala Kayla McBride, enfrentou uma ala móvel e com envergadura superior para romper os bloqueios indiretos e impedir seus tiros externos.
A partida começou em ritmo alucinante, com os ataques sobrepondo-se às defesas e aproveitamentos excelentes. Com a chegada do 2Q, porém, o time tcheco manteve sua intensidade enquanto as turcas hesitaram com a rotação: Nyara Sabally reduziu seu ímpeto, as pivôs reservas não equipararam o nível e Meesseman foi marcada magistralmente. A belga sempre foi o motor do Fenerbahçe, uma espécie de hub, foco primário de atenção da defesa tcheca. O objetivo era brecar seu jogo, tanto de finalização quanto assistindo suas companheiras – ninguém mais capaz de tala tarefa que Magbegor, umas das principais defensoras do mundo do basquete atualmente.
O Fenerbahçe, amplo favorito ao título, derreteu: saiu de ritmo, perdeu a fluidez ofensiva e suas alternativas defensivas receberam antídotos de Hejkova. O time apelou à defesa zona e liberou as arremessadoras do Praga. Garnier foi ao intervalo com déficit de 9 pontos e não conseguiu nenhum movimento para brecar o crescimento adversário. Na metade do 3Q, já estava claro que as atuais bi-campeãs, até então invictas no torneio, ficariam de fora da grande final.
Nenhuma estatística pode ser mais significativa: Praga coletou 50 rebotes, contra míseros 18 do Fenerbahçe (Magbegor, sozinha, pegou 16 rebotes!). Messeman finalizou com ridículos 4 pontos, um garrafão inoperante e com seu perímetro anulado. No ataque, Praga manteve sua intensidade e concentração durante os 40 minutos, aproveitando todo e qualquer descuido da defesa turca; as excelentes atuações das reservas Tereza Vyoralova e Gabriela Andelova comprovam o excelente trabalho coletivo. Um esquema simplificado, explorando mismatches e falhas defensivas em bloqueios, resultou na surpreendente vitória por 91 x 71.
A outra semi presenciou equilíbrio muito maior, como esperado. O Valencia chegou a passar no placar com poucos minutos para o término, mas o baixo aproveitamento da linha de três (27%), somado ao alto volume desse arremesso (33 tentativas de três pontos, contra 27 de dois), impediu a vitória. Fizeram falta algumas peças na rotação (Kristine Vitola e Queralt Casas não jogaram), faltou uma bola de segurança nos momentos decisivos. Já o Mersin executou à perfeição seu jogo, repetindo muitas das estratégias utilizadas dois dias antes contra o Bourges.
O técnico Ahmet Kandemir abusou da gravidade de suas excelentes chutadoras (Marine Johannes, Karlie Samuelson e Bridget Carleton), abrindo espaço para as infiltrações das armadoras Yvonne Anderson e Marine Fauthoux (exímias no pick and roll) e para a individualidade de Natasha Howard. A pivô francesa Iliana Rupert fez uma fase final de manual e o time alternou defesa individual com uma zona bem equiparada. Contra todas as expectativas e a despeito dos movimentos questionáveis da diretoria, o Mersin atingiu seu melhor basquete na competição. A cesta da vitória saiu das mãos de Anderson, atacando no 1×1 contra Leticia Romero (destaque pelo Valencia), decretando a vitória por 68 x 66.
Após a surpresa na semi, veremos Praga x Mersin na grande final. E, novamente, testemunhamos um excelente jogo de basquete, com variações táticas, alternância de formações mais altas com outras de small ball e intensidade/concentração no nível máximo. A essa altura, as cartas estavam na mesa e os dois técnicos manejaram suas armas com maestria. Hejkova manteve Ezi Magbegor de titular, mas desta vez não prescindiu de Cazorla na rotação (antes titular absoluta, ela sequer entrou na semi-final); Kandemir, ao ver sua defesa zona bem atacada, logo retornou à individual além de dosar seus principais desafogos ofensivos.
Retornando do intervalo 13 pontos atrás, ele impôs pressão na bola, que aliada ao fechamento das linhas de passe levou o Praga às cordas. Pela primeira vez no Final Six, o time tcheco viu-se sem alternativas e o Mersin chegou a empatar na metade do 3Q. Foi quando os deuses do basquete atuaram a favor de sua nova companheira no olimpo do esporte: as turcas tiveram algumas posses para passar a frente, sem sucesso, enquanto Praga, sem pontuar até o fim do quarto, viu Magbegor converter 5 pontos dificílimos para voltar à liderança.
Daí em diante, Praga soube controlar o jogo e converter as bolas fáceis a seu favor (66 x 53). Brionna Jones, eleita MVP da etapa final, terminou com 24 pontos e 11 rebotes; Ayayi e Vyoralova pontuaram em dígitos duplos e aproveitamento de 50% na linha de três, Magbegor com 11 rebotes – o time todo jogou bem, praticando um basquete coletivo e coeso, com intensidade durante os 40 minutos. Ao Mersin, resta a esperança de uma base bem estruturada, algo não visto em anos recentes, e da continuidade do trabalho (ao invés de apelar a seu dinheiro no mercado da intertemporada) – poucas peças extras na rotação (particularmente uma pivô forte) podem recolocar o time na final.
Dez anos após sua primeira conquista, o USK Praga volta a vencer a Euroliga, sedimentando o status de lenda do basquete para sua técnica Natalia Hejkova. Sem o maior investimento, sem favoritismo, ela montou seu time com maestria e mexeu como somente os gênios são capazes. Sua equipe dominou os rebotes na Final Six, sem perder nada do outro lado da quadra. Na premiação, ela recebeu justa homenagem da torcida em Zaragoza, com gritos de ‘MVP’.
Hejkova encerra sua carreira na Euroliga, com um merecido e suado título. Se ela já tinha vaga garantida na história, a edição recém-encerrada confirmou sua genialidade, sem a qual dificilmente Praga arrebanharia esse troféu.