Mundial de Atletismo 2019 – Apesar de tudo…obrigado, Doha!

Pedro PiresOutubro 26, 20199min0
Recordes, novas marcas, calor desoncertante, estádios bem equipas mas vazios, foram alguns dos destaques analisados pelo Fair Play do Mundial de Atletismo de 2019 realizado em Doha!

A atribuição dos Mundiais 2019 a Doha, capital do Qatar, foi um assunto polémico desde o dia da sua formalização, em novembro de 2014. Muitas críticas de atletas, dirigentes e fãs marcaram os dias, meses e anos seguintes a uma decisão que viria ainda a ser mais polémica, ao ter-se provado que existiram subornos ao mais alto nível (incluindo ao anterior presidente da IAAF, Lamine Diack) para que a capital do Qatar fosse a escolhida.

Muito difíceis condições climatéricas, a previsível falta de público ou problemas organizativos foram sempre um fantasma no decorrer dos Campeonatos, mas qual será o real balanço a fazer da 17ª edição de Mundiais?

O que correu mal…

Comecemos por falar do que correu mal, pois é impossível não mencionarmos o(s) elefante(s) no meio da sala. Sim, as altas temperaturas e a humidade (chegaram a atingir os 32 graus e os 83% de humidade nas provas de estrada de madrugada) foram brutais e afetaram fortemente as performances das provas de estrada, sendo isso notório nas marcas das Maratonas e da Marcha.

Estando no terreno, foi também possível perceber que as condições mais duras foram vividas logo na primeira noite (sentado, escorria água da transpiração!), na prova da Maratona feminina, com 28 das 68 atletas a não terminarem a prova.

É verdade que as condições foram mais complicadas do que o que já era esperado e é verdade que a organização montou uma estrutura de apoio médico que se revelou incrivelmente eficaz, sem a existência de incidentes maiores para qualquer atleta (algo que se viria a repetir em todas as outras provas de estrada), mas foram longe de ser as condições ideais para provas desta envergadura.

Foto: The Telegraph

Há, no entanto, três fatores positivos a retirar das provas de estrada: um deles, claro, a inteligência de João Vieira que conquistou a Prata nos 50km Marcha, a única medalha portuguesa em Doha; o segundo, o facto de em todos os eventos de estrada, a medalha de Ouro ter ido para atletas que estavam no leque de favoritos, mostrando que se prepararam e se souberam adaptar às condições; o terceiro, o facto de que as condições enfrentadas servem de teste e preparação para o que se irá ver em Tóquio no próximo ano.

O que nos leva a um grande sinal de alerta…para o ano, nos Jogos de Tóquio, as condições poderão ser iguais ou piores e não serão de madrugada (acrescentando a insolação à equação…).

A nível organizativo, existiram algumas falhas (no transporte, a nível de acessos, muitas seleções queixaram-se das acomodações e refeições), mas, sinceramente, não é nada a que já não estejamos habituados em grandes competições. Infelizmente, a fava, desta vez, parece ter saído ao grupo de seleções (na maioria, europeias, incluindo a comitiva portuguesa) que estavam num dos hotéis oficiais do evento, sendo que de algumas comitivas – em outros hotéis – apenas se ouviram maravilhas.

É de lamentar, mas não é nada de novo, relembrando que até em Londres existiram vários casos graves de intoxicações alimentares (em hotéis oficiais) que até retiraram potenciais medalhados de finais. Por fim, o público. Isto sim, foi um enorme problema, principalmente nos três  primeiros dias do evento. O Qatar é um país com 2.6 milhões de pessoas, menos de 400.000 nacionais e sem grande tradição no Atletismo. O que é que poderia correr mal? Tudo. Ainda que o país receba um meeting da Diamond League anualmente, isso em nada se compara a receber um evento deste calibre durante 10 dias de competições, tendo um estádio entre 25.000 a 40.000 (dependente dos lugares tapados ou não) para encher.

Foto: Dumferline Press

Nos 3 primeiros dias, a assistência não passou das 12.000 pessoas por dia (péssimos 7.266 no 3º…), sendo que muitos desses espetadores nem sequer ficavam até ao final (sim, a ideia de ter as sessões a terminar depois da meia-noite local não foi muito inteligente…).

A partir daí, as assistências melhoraram, com muitos bilhetes a serem distribuídos gratuitamente em escolas e até entre imigrantes, uma decisão que deveria ter sido tomada bem mais cedo (de qualquer forma, é de realçar que a organização soube atuar sobre o problema). Ainda assim, destaque para o ambiente vivido, especialmente nos últimos 3 dias (a sexta de “Barshim”, com mais de 42.000 pessoas foi especial!), sendo que mesmo nos dias com menos espectadores, os fãs etíopes e quenianos fizeram a festa, principalmente durante as provas de meia e longa distância.

O que correu bem!

A nível desportivo, estes Campeonatos foram os melhores da história. Seja qual for o prisma analisado – a IAAF tem um ranking que analisa as melhores provas de cada competição e outro que analisa todas as provas – Doha teve as melhores marcas de sempre, com a queda de 3 recordes mundiais, 6 recordes de campeonatos, 21 recordes de área (continentais) e 86 recordes nacionais! Felizmente, não se confirmaram as piores previsões de muitos “especialistas” que diziam que a época tinha sido demasiado longa para que pudéssemos ver bons resultados em Outubro.

Estavam errados. Os atletas de elite chegaram ao Qatar no máximo das suas capacidades e existiram mesmo resultados totalmente surpreendentes! Curiosamente, as condições do estádio também terão contribuído muito para as boas performances, uma vez que o espetacular sistema de ar condicionado deixava o estádio a temperaturas ideais, não se fazendo, também, sentir vento em Doha em nenhum dos dias do evento.

Foto: IAAF

No masculino, nos 100 metros, Christian Coleman (USA) correu o tempo mais rápido no mundo dos últimos 4 anos (9.76), enquanto que Steven Gardiner (BAH) surpreendeu com um incrível novo recorde nacional (43.48) para conquistar o Ouro nos 400. Nos 800 metros, Donavan Brazier (USA) – no meio do furacão Alberto Salazar… – bateu o recorde da história dos campeonatos e recorde norte-americano (1:42.34), enquanto que Muktar Edris (ETH) nos 5.000 (12:58.85), Joshua Cheptegei (UGA) nos 10.000 (26:48.36) e Conseslus Kipruto nos 3.000 obstáculos (8:01.35) correram os melhores da temporada, comprovando o poderio africano no fundo. Warholm (NOR) venceu a aguardadíssima batalha dos 400 barreiras, sendo que a grande promessa Grant Holloway (USA) deu-se a conhecer ao mundo nos 110 barreiras.

Nos saltos, Barshim (QAT) surpreendeu muito, chegando aos 2.37m na Altura numa época marcada pela recuperação da sua grave lesão e não menos surpreendentes foram os 8.69m de Tajay Gayle (JAM), batendo todos os favoritos no Comprimento, com a marca do ano e recorde nacional.

Nos outros saltos, os norte-americanos (Kendricks e Taylor) renovaram os títulos, também com excelentes marcas. Fajdek fez história ao chegar ao 4º Ouro consecutivo no Martelo, mas o grande destaque nos lançamentos foi mesmo o melhor concurso do Peso da história, com os 3 primeiros classificados a distanciarem-se por um centímetro (!) e todos com marcas do outro mundo (Kovacs venceu com…21.91 metros)…todos bateram o anterior recorde dos campeonatos!

As mulheres ainda estiveram, no geral, um nível acima dos homens!

Foto: IAAF

Num campeonato marcado pelas mamãs, 4 delas chegaram ao Ouro: Fraser-Pryce (JAM) correu em incríveis 10.71 nos 100 metros, Nia Ali (USA) num enorme recorde pessoal (12.34) nos 100 barreiras, Allyson Felix (USA) venceu mais um Ouro em estafetas (Mistas desta vez, a novidade) e Liu Hong (CHI) voltou a vencer nos 20km Marcha. Chepkoech (KEN) nos 3.000 obstáculos (8:57.84) e Hellen Obiri (KEN) nos 5.000 metros (14:26.72) bateram recordes dos campeonatos e viram Sifan Hassan (HOL) fazer história ao conquistar uma dobradinha inédita nos 1.500 (recorde dos campeonatos e recorde europeu) e nos 10.000 (marca líder do ano).

Dina Asher-Smith (GBR) levou para casa um Ouro (nos 200 metros, com recorde nacional, 21.88) e uma Prata (nos 100, também com recorde nacional, 10.83), mas as grandes figuras dos campeonatos vieram da volta à pista, com e sem barreiras. Salwa Eid Naser (BHR) bateu a favorita Miller-Uibo nos 400 metros, com uma sensacional marca de 48.14, a melhor desde 1985 (e à frente dela só duas marcas muito…suspeitas), numa prova com 5 recordes pessoais, onde Uibo também bateu o recorde da América Central e do Norte!

Dalilah Muhammad (USA) melhorou o recorde mundial dos 400 barreiras para 52.16 (batendo dois recordes em 2019!), numa enorme prova em que a jovem Sydney McLaughlin (USA) correu em 52.23 segundos (há 3 meses…seria recorde mundial!).

Foto: IAAF

Grande concurso na Altura, com Lasitskene (RUS) a vencer a 2.02m, mas com a mesma marca de Mahuchikh (UKR), que estabeleceu um fantástico recorde mundial júnior, sendo que nos saltos horizontais, assistimos a enormes saltos de Yulimar Rojas (VEN) no Triplo (15.37m) e Malaika Mihambo (GER) no Comprimento (7.30m), com a maior diferença para a 2º classificada da história!

Nos lançamentos, destaque para a vitória de Pérez no Disco (69.17m), derrotando Perkovic e para a primeira vitória da história para os EUA no Martelo, com DeAnna Price a conquistar o Ouro. Grande destaque ainda para Katarina Johnson-Thompson (GBR) que não só bateu, pela primeira vez, Nafi Thiam (BEL) em grandes competições, como o fez com um novo recorde nacional britânico.

Portugal

Não foi das nossas melhores prestações a nível de pódios e pontos, com os 49 pontos a ser a nossa 10ª melhor participação (em 17). João Vieira conquistou uma inesperada medalha de Prata nos 50km Marcha (a sua carreira bem merecia isto!) e Patrícia Mamona fez um bom resultado no Triplo ao ser 8ª, o seu melhor em Mundiais. Pedro Pablo Pichardo também foi finalista, no 4º lugar, mas as expectativas eram de que o atleta pudesse entrar no pódio, sendo que o próprio sempre confessou que ia à procura do Ouro. Ana Cabecinha foi 9ª em condições muito difíceis noutro bom resultado nacional.

Foto: FPA

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